Testemunhar Maria de Lourdes Pacheco de Vasconcelos abrir a garagem de sua casa é quase como ter uma visão do céu, ao menos para quem ama livros e leituras. Exagero? Pois imagine duas portas sendo escancaradas e revelando um interior com prateleiras, do chão ao teto, repletas de títulos, além de gibis, jogos, fotos, alguns pufes e almofadas, enfim, um ambiente singelo e acolhedor para se mergulhar nas páginas.

 

Porém, por mais apaixonada que seja por literatura, Maria de Lourdes não montou a biblioteca para seu deleite: tudo o que há nela está à disposição do povo do bairro Aventureiro, o modo que ela encontrou de cultivar nos outros o amor pela leitura e elevar a cultura da vizinhança.

 

Ajudar os outros, ensinar e encaminhar para o maravilhoso mundo das palavras parecem mesmo ter nascido com Maria, que há 72 anos nasceu em São Paulo, mas cedo se mudou para o Rio de Janeiro com a família. O hábito de ler, por sinal, veio principalmente do pai, ferroviário, dono de uma biblioteca em casa. Aos nove anos, alfabetizou o filho da empregada, três anos mais novo, que entrou na escola sabendo ler e escrever.

 

– É uma satisfação ensinar, qualquer coisa que seja. Ver alguém desenvolver sozinho algo que você ensinou é uma alegria tão grande que não sei por que as pessoas não querem mais ser professores – diz.

 

Curiosamente, ela não cursou magistério. Formou-se em belas-artes e jornalismo. Em 2000, veio morar em Joinville com o então companheiro. Decidida a não ficar de braços cruzados, vendo o tempo passar, ela ingressou em um mutirão de alfabetização patrocinado pela Secretaria Municipal de Educação, no qual ficou por dois anos e assistiu 17 alunos – cinco deles efetivamente aprenderam a ler e escrever. As aulas aconteciam na garagem de casa, a mesma que, a partir de 2004, passaria a ter um destino mais grandioso do que apenas abrigar o carro.

Sempre exercendo o dom de ensinar, Maria de Lourdes dava aulas de pintura em sua sala. A habilidade dos alunos com o pincel a incomodava menos do que os vícios de linguagem. A filha, Lúcia, que mora no Rio, serviu de inspiração duas vezes: primeiro, por incentivá-la a tentar mudar a situação; segundo, por ser dona do centro cultural de onde veio parte dos primeiros livros e gibis do Clube de Leitura & Atividades Lúdicas Lucius’s, batismo dado em homenagem à filha e ao genro, Lúcio.

 

Com a remessa da filha, as obras que tinha em casa e as doações constantes – encaminhadas por funcionário da Biblioteca Pública Rolf Colin, com quem Maria de Lourdes fez amizade –, o espaço chegou a ter quatro mil títulos em suas prateleiras. Hoje, são cerca de dois mil.

 

– Eu doei uma parte, e assim incentivei outras pessoas a fazerem a mesma coisa – explica Maria de Lourdes, que criou a biblioteca para ajudar as pessoas a falarem melhor, sim, mas também pelo incômodo de perceber a queda de interesse por livros após a chegada da internet. Sem contar a dificuldade que muitos têm de se deslocar do Aventureiro até o Centro, onde ficam a biblioteca pública, as livrarias e os sebos.

 

Na garagem, chega quem quiser, escolhe o livro que quiser e fica com ele quanto tempo quiser. Maria de Lourdes anota o empréstimo num caderno, mas garante que nunca uma obra deixou de retornar. Há os que pegam até dez títulos de uma vez só. Já as crianças trocam os quadrinhos que têm em casa pelos disponíveis na Lucius’s.

 

O espaço, é bom frisar, também serve a lançamentos literários e recebe palestras com profissionais de áreas diversas, principalmente da saúde. Estes encontros, organizados por Maria de Lourdes, chegam a reunir 30 mulheres do bairro.

 

– A ideia inicial é servir ao próximo, e é o que continuo fazendo – garante Maria de Lourdes, que, como se vê, não tem somente o dom de ensinar.

É uma satisfação ensinar, qualquer coisa que seja. Ver alguém desenvolver sozinho algo que você ensinou é uma alegria tão grande que não sei por que as pessoas não querem mais ser professores."