Como é típico de uma criança de um ano e meio, Vicente não para quieto. Literalmente. Anda, senta, brinca, mexe no celular, pede colo, tudo acompanhado por gritos de satisfação, risadas e os primeiros esboços de palavras. Ele não sabe que para os atores liderados por sua mãe, Manoella Carolina Rego, som é algo preciosíssimo, talvez por ser inalcançável.

 

Vicente também não faz ideia que, graças a sua mãe e ao grupo que ela criou, o Libração, esses jovens puderam sobrepor o silêncio que cerca as pessoas surdas e fazer uma arte que lhes permitiu ter expressão, coragem e lugar no mundo. Enfim, ter uma voz.

 

Curiosamente, foi praticamente por obra do acaso que Carolina chegou ao ponto de mudar vidas. Aos 15 anos, ela fez parte do grupo de teatro Bytes e Parafusos, que era comandado por Silvestre Ferreira na Escola Técnica Tupy. Após a faculdade de informática e um tempo atuando na área, a arte falou mais alto e ela foi fazer cursos com Silvestre no Dionisos Teatro, no qual acabou ingressando e onde ficou por cinco anos atuando, produzindo, cuidando da técnica e da parte administrativa.

 

Em 2009, a fim de estudar, Manoella escolheu, por pura curiosidade, fazer o curso de língua brasileira de sinais (Libras). Nas aulas, a professora convidava surdos para calibrar a conversação. Uma delas, Dayane, soube que Manoella fazia teatro e comentou que ninguém em Joinville se apresentava com eles e nem para eles.

 

– O que existia eram ações muito assistencialistas, que os tratavam como coitadinhas – lembra.

 

Depois disso, dois acontecimentos confluíram para a criação do Libração: as aulas de teatro do Dionisos, das quais Dayane foi aluna, e o curso avançado em Libras concluído por Manoella. Então, em 2011, ainda como um curso de teatro, o Libração começou a andar, com seis deficientes auditivos atuando. Não demorou muito para o primeiro espetáculo ser montado: Vida de Surdo.

 

– Conversamos sobre a rotina deles, em casa, na escola, no trabalho, as coisas boas e ruins. Isso abriu a minha cabeça, e foi aí que aprendi Libras de verdade – revela a diretora.

 

Tanto quanto a linguagem dos sinais, Manoella percebeu as dificuldades dessas pessoas.

– É difícil, porque as pessoas não sabem Libras e os tratam como deficientes mentais, "mudinhos", mal-educados. Até dentro de casa, já que muitos familiares não sabem Libras.

 

Quase quatro anos depois de formado, o Libração acumula seis peças e inúmeras apresentações, inclusive no 1º Encontro Nacional de Teatro Playback, em outubro. Numa dessas montagens, No Ritmo, de 2014, os atores fizeram uma verdadeira imersão nos instrumentos percussivos do Grupo Morro do Ouro.

 

– Alguns deles nunca tiveram o estímulo de som, de ritmo. Eles choravam. Isso aumentou a confiança nos sons que eles fazem. Não é porque eles não ouvem que não podem fazer barulho –

afirma Manoella.

 

Hoje com cinco integrantes, o grupo já viu cerca de 25 jovens passarem por suas fileiras. Manoella está certa de que mudou a vida deles tanto quanto viu a sua mudar graças ao trabalho com o Libração. Em seu íntimo, ela compreendeu que, apesar das limitações, qualquer um pode fazer arte, e arte bem-feita. Já em seus pupilos viu outra postura, mais confiança, a consciência de que podem ser protagonistas.

 

– A arte permitiu isso: serem eles mesmos, artistas completos, não apenas pessoas surdas. Acho que o Libração é isso: mostrar que o surdo pode fazer qualquer coisa. Mas eles precisam ser orientados de verdade, e não ser tratados como coitados –  alerta Manoella, que tem tatuadas no braço direito as máscaras-símbolo do teatro e, logo abaixo, um conhecido sinal da linguagem dos surdos. Se um dia Vicente perguntar, sua mãe lhe dirá que, no mundo inteiro, ele significa "eu te amo".

A arte permitiu isso: serem eles mesmos, artistas completos, não apenas pessoas surdas. Acho que o Libração é isso: mostrar que o surdo pode fazer qualquer coisa.