Um lar feito para durar

Ottokar Doerffel levou dez anos para construir o imóvel que virou referência em Joinville

Enquanto os moradores da recém-fundada Joinville vislumbravam um teto que suprisse as urgências básicas de sobrevivência, para o imigrante Ottokar Doerffel ter uma moradia estava ligado a um projeto de vida. O alemão não pretendia só abrigar confortavelmente a esposa Ida quando comprou o terreno na esquina entre as ruas Quinze de Novembro e Jaraguá logo após sua chegada ao Brasil, em 1854. Segundo pesquisas do historiador Dilney Cunha e do crítico de arte Walter de Queiroz Guerreiro, a construção, que levou dez anos para ficar pronta, preserva indícios de que Ottokar pretendia fazer dela um templo pessoal.

Vista da casa em 1866, dois anos depois de ela ser construída

As centenas de cartas enviadas para a família na Alemanha descrevem detalhes do quão idealizado foi o projeto de construção do casarão. A folha, escrita a próprio punho e remetida à irmã Thekla, em 10 de janeiro de 1866, dois anos depois de terminada a obra, é talvez o primeiro relato completo sobre o espaço. A carta, traduzida por Helena Remina Richlin, faz parte de uma coleção reunida pela família Doerffel na Europa e há pouco tempo disponibilizada, já digitalizada, para Jutta Hagemann, joinvilense que mantém contato com muitas das famílias de imigrantes. Nela, Ottokar expressa o alívio trazido com a nova morada — ele a esposa viviam em "dependências apertadas e baixas", nas palavras dele — e dá detalhes como a justificativa pela localização da construção.

— A posição da casa foi escolhida de tal modo que as suas dependências não sejam incomodadas pelo sol do meio-dia e pelo sol da tarde — afirma Ottokar no texto.

Junto à carta, Ottokar enviou um desenho a mão livre que mostra com mais clareza os arredores do casarão. O jardim, onde "há duas lagoas, cada qual com uma ilha", é traçado com detalhes da vegetação, ricamente mantida pelo proprietário. Jutta afirma que, em outras cartas enviadas à família, o alemão comenta sobre as suas plantações de aipim e cana-de-açúcar e como o cheiro espalhado pelos pomares de laranja os deixava tontos.

Reprodução do desenho feito por Ottokar para apresentar a residência à família

Seis degraus acessam a parte mais charmosa da residência, a varanda, "formada por colunas maciças com arcos ogivais, as quais, na parte inferior, estão interligadas entre si por meio de um parapeito de pedras furadas". O ambiente com paisagem privilegiada era o lugar preferido de Ottokar no verão. — Nós almoçamos e jantamos nela, quando temos vontade, tiramos um cochilo por lá mesmo, e muitas vezes passamos o final de tarde nela, até a hora de ir para a cama.

A partir do salão principal, com lareira, é possível acessar todos os quartos. Uma porta nos fundos da casa leva até uma segunda varanda, por onde é preciso passar para se chegar à cozinha, construída em um mezanino. Ottokar menciona a existência de um sino acionado sempre ao meio-dia e compara o tamanho dos novos quartos com os da antiga residência:

— Os quartos da casa têm sete côvados de altura, enquanto que a nossa casa anterior tinha apenas cinco. Agora, imagine de que forma nós vivemos e nos movemos dentro dela.

Ottokar se limita a contar poucos detalhes internos da casa. Além do sino, cita o fogão com chaleira e o galo do cata-vento que fica no telhado, peça que continua preservada. No Museu Nacional de Imigração e Colonização, outros dois itens do casarão podem ser vistos: uma caixinha de música presenteada a Ida e um chuveiro fabricado pelo próprio Ottokar.

A demora para concluir a construção é atribuída, segundo registros, ao atraso na chegada dos materiais. Mesmo possuindo uma olaria no próprio terreno, Ottokar importava a maioria da matéria-prima da Europa. As lajotas da varanda, alguns tijolos e as madeiras atravessaram o oceano. Já o calcário utilizado no reboco das grossas paredes (de um metro de espessura) era extraído de conchas de sambaquis da região.

Helga Loyola frequentou a casa depois que o imóvel foi vendido para a família Lepper

Ida faleceu em 1889. Ottokar viveu no casarão até seus últimos dias, em 1906. Como não deixou filhos, a casa ficou de herança para a família Barthol, formada por primos dos Doerffel, até ser vendida para os Lepper. Sobrinha de Affonso Lepper, Helga Loyola costumava frequentar a casa assim que chegou ao Brasil, na adolescência. Ela se lembra das reuniões que aconteciam no pátio entre a cozinha e a entrada dos fundos, do aconchego das cadeiras de vime que ali ficavam e de como o tio preferia sentar-se no centro da varanda frontal.

— Havia galinheiro e uma horta. O poço ainda era utilizado — lembra Helga ao revisitar o imóvel em recuperação no início de março. Os últimos moradores do casarão — a viúva de Affonso, Helene, morreu em 1971 — ainda mantiveram o jardim bem cuidado, com um lago maior do que o que se vê hoje. O terreno era rodeado por uma cerca viva e naquela época ainda não havia calçamento que levasse até o estacionamento.

O primeiro proprietário

Ottokar construiu uma forte imagem na história de Joinville. O currículo político e a participação na criação de uma série de grupos culturais estão por trás de um homem que sonhava em transformar Joinville em um lugar parecido com seu lar de origem. De acordo com o historiador Dilney Cunha, o imigrante empenhava esforços para dar continuidade aos laços alemães no Brasil.

— Ele trabalhou na unificação da língua e da cultura em Joinville. Queria fazer da cidade uma pequena Alemanha — avalia o historiador.

Ottokar (sentado, ao centro) com parentes em frente à fachada da casa

Como Joinville recebia alemães de diversas regiões e, portanto, com dialetos e culturas diferentes, Ottokar imaginava que todos pudessem chegar a um denominador comum, ter um sentimento de pertencer a um mesmo povo.

Ottokar chegou a Joinville em situação diferente da dos demais imigrantes. Atravessara o oceano em busca de uma vida nova, sim, mas não porque tivesse sido enxotado pela pobreza como a maioria. Formado em ciências jurídicas, era envolvido nas agitações político-militares na Saxônia. Segundo relato do livro Era uma Vez um Simples Caminho — Fragmentos da História de Joinville, de Elly Herkenhof, Ottokar procurou tolher a marcha de rebeldes de Glauchau sobre Dresden, mas não conseguiu. Foi condenado à morte por alta traição, porém absolvido em terceira instância. Desgostoso, ele decidiu abandonar a pátria e seguir o mesmo destino de centenas de outros imigrantes: a Colônia Dona Francisca.

Chegou aos 36 anos com Ida, em setembro de 1854. Em menos de um ano, já estava envolvido na criação da primeira sociedade da cidade, a Culturverein, que tinha como objetivo o progresso da agricultura e da indústria em Joinville. Ainda participou da fundação da primeira loja maçônica, da Sociedade Harmonia-Lyra, em 1858, e criou o primeiro jornal da cidade, o Kolonie-Zeitung (Jornal da Colônia), que circulou por quase oitenta anos. Conquistou o cargo de tesoureiro da diretoria da Colônia até a morte do diretor, Louis Niemeyer, em 1873, quando assumiu as funções de diretor interino. Em 1875, ele foi nomeado cônsul da Alemanha.

— Foi de muito destaque também o seu papel na política, sendo membro do Partido Conservador. No entanto, o seu grande, o seu incomparável mérito reside no muito que realizou nas áreas social, cultural, administrativa e econômica de Joinville, durante o primeiro meio século de história da cidade — registra Elly Herkenhof.