O Calor do Inverno #4: A sopa é o agasalho da alma

Durante a estação mais fria do ano, série do Pioneiro irá apresentar 10 histórias para aquecer a alma.


Publicao em 16 de julho de 2016

Texto

Andrei Andrade

andrei.andrade@pioneiro.com

Imagens

Porthus Junior

porthus.junior@pioneiro.com

Infografia

Guilherme Ferrari

O Calor do Inverno #4:

A sopa é o agasalho da alma

Enquanto o prato de sopa numa noite fria não se faz um direito universal garantido, a cada vez que o outono cede lugar ao inverno no Hemisfério Sul pelotões de um exército do bem saem a percorrer as ruas da cidade para estender uma porção àqueles a quem a vida negou quase tudo: teto, família, emprego, consideração.

Na casa do bairro Cruzeiro, em Caxias do Sul, onde um desses esquadrões intitulado Anjos Voluntários recrutou um senhor chamado Geraldo Vergani, seu fogão e suas duas panelas de 50 litros, o ritual da sopa beneficente começa por volta das 22h, sempre às terças, quintas e domingos. Por uma rápida associação de fatores, o prato de sopa, quando se trata de ajudar a um desvalido, é a primeira lembrança: se o que mais aflige é fome e o frio, que se ofereça então um alimento que nutra e esquente, e que também seja barato e prático de preparar. A sopa é o agasalho da alma.

Enquanto o tomate e a cebola fritam no óleo, o grupo de cinco ou seis voluntários pica a batata, a cenoura, o chuchu e a moranga que irão se misturar ao caldo. Quando a sopa está pronta, seu Geraldo vira sobre ela a panela de massa ou de arroz. Às 23h30min, a sopa está pronta para ser distribuída junto de alguma fruta para a sobremesa e das caixinhas de leite cuidadosamente higienizadas, que servirão de recipientes.



O Calor do Inverno #4: A sopa é o agasalho da alma

Embora a maioria dos beneficiados seja de pessoas que romperam com a família por conta do abuso de drogas, para a trupe da sopa só importam três coisas: todos têm frio, todos têm fome, todos são vítimas.



Em um Polo preto e com vidros escurecidos, a distribuição se concentra na Avenida Júlio de Castilhos. Quem está na rua não ganha apenas a sopa, mas também um aperto de mão, um abraço e um sorriso. É como houvesse um aviso de que a sopa não pode ser entregue separadamente. O voluntário Eumar Alves explica que o grupo não faz qualquer distinção. Qualquer um merece ser alimentado. Travestis que fazem ponto nas esquinas, por exemplo, são beneficiadas cativas. A sopa, diz uma delas, contém calor, carinho e amor. Usuários de crack também recebem sua porção. O único pedido é que não estejam fumando no momento de receber a porção. Eumar conta que até um homem que recentemente o assaltou em uma parada de ônibus, alguns dias depois também foi convidado a se servir enquanto assistia à entrega. Sem jeito, aceitou. Trata-se de um exercício bastante duro nos primeiros dias, de quebra de preconceitos de ambos os lados.

Alguns habitantes da rua são vítimas recentes da crise econômica, que perderam o emprego e acumularam dividas até ser despejados. Um deles, que se abriga sob uma marquise da Júlio, conta que desde novembro não arruma um bico sequer. Ele não bebe, nem usa drogas, e lamenta que aos olhos da sociedade seja tão descartável na rua quanto foi para o mercado de trabalho. Embora a maioria dos beneficiados seja de pessoas que romperam com a família por conta do abuso de drogas, para a trupe da sopa só importam três coisas: todos têm frio, todos têm fome, todos são vítimas. Não apenas de uma sociedade que queima mendigos, mas também do preconceito daqueles que negam aos voluntários fixar um cartaz com pedido de doações no comércio.

Além da Júlio, o grupo passa pelos arredores do Pronto-Atendimento 24 Horas, além das escadarias e o viaduto do bairro Euzébio Beltrão de Queiroz, quando cerca de 15 habitantes do local recebem a rapa da panela, já por volta de 1h da madrugada. A cada noite, são cerca de 50 litros distribuídos. No dia seguinte, cada voluntário acorda cedo para tocar o seu cotidiano. Cansaço? Nenhum. Tem a ver com a razão que o faz destinar uma fração do próprio tempo a diminuir a dor do próximo. A sopa não dá energia apenas a quem a ingere. Ela fortalece muito mais a quem a oferece.