Dificuldades muito além da crise

Caxias vem acumulando perdas significativas em empregos e empresas devido à queda na competitividade. A atual recessão expôs com mais força esse cenário, mas o problema já existia até mesmo em período de balanços positivos. Acompanhe a partir de hoje uma série de matérias com essa temática. Na primeira reportagem, conheça a história de algumas empresas que deixaram a cidade.


Publicao em 30 de julho de 2016

Texto

Ana Demoliner

ana.demoliner@pioneiro.com

Imagens

Diogo Sallaberry

Jonas Ramos

Porthus Junior

Vinicius Fruet, divulgação


Infografia

Guilherme Ferrari

Dificuldades

muito além da crise

Antes da retração econômica dar qualquer sinal no Brasil, Caxias do Sul já vivenciava um problema sério: muitas empresas estavam indo embora da cidade ou então expandindo para outros lugares. Sem a atual crise, porém, o impacto desse movimento estava camuflado pelos bons índices de emprego e de crescimento do município. Para muitos, parecia que os postos de trabalho levados para outras cidades e Estados — juntamente com a arrecadação de impostos e a massa salarial — não fariam falta.

Agora o cenário é outro. Cerca de 20 mil vagas foram fechadas nos últimos cinco anos apenas no setor metalmecânico caxiense. O ramo que já englobou 55,2 mil trabalhadores no final de 2011 emprega, atualmente, apenas 35,4 mil.

— Faltou um planejamento. Caxias ficou igual o hino nacional: deitada eternamente em berço esplêndido. Ninguém das últimas administrações mudou isso, criando um novo distrito industrial, por exemplo. Caxias se achou no direito de não fazer nada — analisa Nelson Sbabo, presidente da Câmara de Indústria, Comércio e Serviços (CIC) de Caxias do Sul.

A perda de competividade é apontada como principal causa de tantas saídas e expansões de empresas para outras cidades (tanto vizinhas, como Flores da Cunha, quanto localizadas em regiões do Sudeste e Nordeste do país), nos últimos anos. Os gastos com logística, especialmente, dispararam devido à localização da cidade e à infraestrutura precária.

— O município de Caxias tem de ser muito mais competitivo que os de outros Estados porque ele tem um ponto fraco muito grande: as matérias-primas estão no centro do país e a maioria dos clientes também está no centro do país. Nós somos, portanto, a ponta. Caxias tem que ter um diferencial para atrair e manter as empresas do município. Mas não existe um plano de desenvolvimento, de competitividade econômica e estamos hoje sentindo esse reflexo — detalha Jaime Lorandi, presidente do Sindicato das Indústrias de Material Plástico do Nordeste Gaúcho (Simplás).

A falta de acolhimento público (leia-se leis menos complexas e burocráticas) é outro fator citado pelos empresários nas causas que vêm afastando companhias da cidade. Enquanto outros Estados oferecem até incentivos fiscais, sobram entraves ambientais e de infraestrutura em Caxias.

Discutir e implementar soluções para amenizar esse ambiente preocupante se desenha como tarefa urgente. Até porque, alerta Lorandi, esperar pode ser muito tarde:

— Algumas empresas estão querendo ir embora agora e não vão justamente porque estão em crise. Elas estão sem dinheiro para transferir empresas nesse momento. Pode ser que, passada a retração, se acentue o movimento de saída de empresas significativas porque elas estão procurando mais competitividade — alerta o empresário, que também transferiu há sete anos sua empresa de Caxias para Farroupilha (leia mais abaixo).



'Alguém tem de fazer alguma coisa'





Com 50 anos de contribuição para o setor metalmecânico caxiense — sendo boa parte deles em atuante participação nas Empresas Randon —, o diretor de Economia, Finanças e Estatística da CIC, Astor Schmitt, analisa o cenário atual como preocupante.

O executivo destaca que o sucesso de Caxias sempre ocorreu, basicamente, por três fatores: o DNA empreendedor da população, o capital humano qualificado e o forte apoio do Estado. Nos últimos anos, entretanto, apenas a vocação empreendedora da cidade segue como diferencial:

— Com o tempo, perdemos o apoio estatal. Há quanto tempo não temos uma obra grande na cidade? A infraestrutura simplesmente parou nos últimos 25 anos. Já o capital humano, embora siga bom, está tanto quanto ou até mais caro do que em outras regiões produtivas. Assim, Caxias passou a perder vantagens e não consegue mais competir com quem está mais perto dos clientes — analisa Schmitt.

Além da saída de empresas, o executivo reforça que as expansões de companhias para outros Estados também acendem o sinal de alerta. Randon, Marcopolo e Agrale, por exemplo, agora contam com unidades na região Sudeste do país:

— Esses investimentos, ou ao menos parte deles, poderiam ter sido feitos aqui se a situação fosse outra. Outra pergunta que precisamos nos fazer: qual é o projeto relevante que Caxias aportou nos último 10 anos? Estamos perdendo empresas e não estamos atraindo mais ninguém.

Para Schmitt, é preciso que se crie um ambiente mais amigável para o empreendedorismo. Outra medida urgente é recobrar um Estado mais eficiente:

— Sabemos onde estão as carências, mas precisamos de mais ação. Alguém tem de fazer alguma coisa.



| 1: Referência em inovação, Keko emprega mais de 400 em Flores




Líder brasileira em acessórios para personalização de veículos automotores, a Keko passou 25 dos seus 30 anos em território caxiense. Desde 2011, conta com a sede da empresa na vizinha Flores da Cunha, na Linha 80.

Antes da transferência, a Keko ocupava seis unidades alugadas em Caxias. A intenção de unir todas as operações foi o que moveu a companhia a procurar uma área para construir uma nova sede.

O presidente executivo da Keko, Leandro Scheer Mantovani, relata que a empresa chegou a comprar um terreno em Caxias, mas entraves ambientais impediram a continuidade da operação. Depois disso, a empresa ensaiou a mudança para Farroupilha, já que lá havia uma licença prévia de atuação. Foi, então, que a prefeitura de Flores chamou os proprietários da Keko para conhecerem a atual área da companhia:

— O valor do terreno estava bem convidativo. Pagamos na época R$ 1,085 milhão para 10 hectares (o que representa 100 mil metros). Em Caxias, com esse valor, compraríamos 10 mil metros quadrado ou até cinco. Também tivemos água encanada, rede de energia elétrica na porta da empresa, acesso asfaltado... Somamos tudo e vimos que economizaríamos alguns milhões e decidimos então vir para Flores — explica Mantovani.

A Keko abrange hoje uma área construída de 25 mil metros quadrados e emprega mais de 400 pessoas. Desses trabalhadores, estima-se que 50% sejam moradores de Flores.

Na nova sede, a empresa praticamente dobrou o faturamento: chegou com R$ 84 milhões anuais e projeta fechar 2016 alcançando o montante de R$ 150 milhões. Cinco anos depois de deixar Caxias, a empresa analisa a decisão de transferência como acertada:

— Nos inserimos bem na comunidade e somos muito bem tratados pelos órgãos públicos e entidades. A gente avalia que talvez falte em Caxias um cuidado melhor com os empresários. Não falo em liberação de verba, falo em apoio, atenção. Esse terreno que compramos aqui era da prefeitura. O poder público de Caxias não tem terras assim, preparadas para receber novos negócios. E não falo de doação, falo de venda mesmo. Penso que algo deveria ser pensado para a cidade estar mais preparada — acredita Mantovani.

Referência em tecnologia, a Keko investe um terço do faturamento em inovação (como novos produtos e novos projeto). A Toyota e a Fiat figuram entre os principais clientes da marca.



| 2: Robertshaw fechou as portas demitindo 450




Um dos casos mais recentes de empresa que deixou Caxias foi o da Robertshaw. No início deste ano, ao voltarem das férias coletivas, 450 funcionários foram informados que não teriam mais emprego, já que a companhia estava deixando a cidade e transferindo todas as atividades para a planta de Manaus.

Na época, a diretora de Recursos Humanos da empresa, Kecy Ceccato, destacou que a decisão foi tomada em âmbito mundial. A sede da Robertshaw é nos Estados Unidos.

O Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos chegou a conseguir uma liminar que suspendeu as demissões por um tempo e a prefeitura de Caxias também tentou interceder. A decisão, porém, já estava tomada.

— A decisão foi tomada de maneira fria, analisando números e balanços. Quem decidiu isso provavelmente não sabe nem onde fica exatamente Caxias — analisou Getulio Fonseca, na época presidente do Simecs e agora diretor da entidade.

A Robertshaw, que produz principalmente termostatos, tem no Norte seus principais clientes — indústrias de ar-condicionado e micro-ondas. A transferência, portanto, diminuiu os custos de logística da empresa.

Fonseca acredita também que o custo da mão de obra, que é bem mais cara em Caxias, pesou na decisão. E há ainda um terceiro motivo para a saída: em Manaus, a empresa conta com benefícios fiscais que amenizam a tabela de custos da companhia.



| 3: Excesso de burocracia levou Plásticos Itália para Farroupilha




Quando a área alugada de 3,5 mil metros quadrados no bairro De Lazzer começou a ficar pequena para a Plásticos Itália, o empresário Jaime Lorandi decidiu iniciar uma busca por um espaço maior para a empresa caxiense. O ano era 2005 e o período de procura e transferência durou quase quatro anos.

Ao todo, 19 áreas chegaram a ser cogitadas: 10 em Caxias, quatro em Flores da Cunha e cinco em Farroupilha. A ideia inicial da empresa que estava em solo caxiense há cerca de 20 anos era ficar na cidade de origem, mas sobraram motivos para uma mudança de município:

— As áreas de Caxias eram muito caras e ao mesmo tempo haviam muitos impedimentos legais e ambientais. A legislação caxiense inibe o empreendedorismo em comparação a municípios vizinhos ou a outras cidades do Estado, com leis muito rígidas, limitadoras e muita burocracia. Optei então em comprar uma área em Farroupilha, no bairro Ipanema, porque além da área ser bem acessível, o município permitia a instalação de uma indústria— conta Lorandi.

O empresário também cita como diferencial do município vizinho o "acolhimento" do poder público. Mesmo sem ter solicitado, a empresa recebeu ajuda da prefeitura no processo de instalação da empresa.

— Recebemos o valor da terraplanagem, aprovado pela Câmara de Vereadores, que foi de R$ 50 mil. Em dois meses, o município recebeu de volta esse dinheiro investido com o pagamento de impostos. Em Caxias, a legislação proíbe a autoridade pública de investir na propriedade privada. Ou seja, Caxias não pode ajudar mesmo se for uma empresa que vai gerar 10 mil empregos ou milhões de ICMS que vão voltar pro município. Essa pouca flexibilidade prejudica o empreendedorismo — analisa Lorandi.

Na época em que se mudou para Farroupilha, em 2009, a Plásticos Itália empregava 60 pessoas. Atualmente, 112 pessoas estão trabalhando na empresa e a produção triplicou na nova fábrica.



| 4: Após oito décadas, Cooperativa Aliança deixou Caxias




De todas as transferências de empresas que Caxias já registrou, possivelmente a mais simbólica foi a saída da Cooperativa Aliança. Depois de passar praticamente oito décadas em solo caxiense com forte envolvimento com a comunidade, a empresa mudou-se para a vizinha Flores da Cunha.

A troca de cidade-sede foi finalizada no final do ano passado, mas as negociações começaram ainda em 2008. A necessidade de uma matriz nova surgiu quando a cooperativa se uniu com outras entidades — a São Vitor, também de Caxias, a São Pedro, de Flores da Cunha, a Santo Antônio, de Nova Pádua, e a Linha Jacinto, de Farroupilha — formando, assim, a marca Nova Aliança.

— Decidimos que iríamos fazer uma sede nova em um dos municípios de origem das cooperativas que formaram a Nova Aliança, então passamos a sondar todas as cidades. Acabamos escolhendo Flores porque eles já tinham uma política de incentivo para empresas, enquanto Caxias e os outros municípios possíveis não apresentavam nenhum — conta Alceu Dalle Molle, presidente da Nova Aliança.

O poder público de Flores ofereceu uma área de oito hectares para a cooperativa. O terreno naquele ano foi avaliado em R$ 1,3 milhão.

— Não era interessante pra gente que o terreno fosse apenas cedido, porque ficaria no nome do município e isso acaba dificultando algumas operações financeiras. Negociamos então para que a área ficasse no nome da cooperativa e fomos pagando o valor com condições especiais de juros e de parcelamento — relata Dalle Molle.

Desde que a transferência iniciou, os números da cooperativa só evoluem. Antes da mudança, a Aliança empregava cerca de 70 funcionários e hoje chega a 220. O faturamento mais que dobrou: R$ 60 milhões em 2011 e R$ 135 milhões no ano passado. Para este ano, a expectativa da marca é ultrapassar os R$ 150 milhões.