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MARCO FAVERO, BD, 29/09/2016

pacientes recorrem à justiça para sobreviver Cerca de 23 mil catarinenses recebem medicamentos por ordem judicial. Valor demandado em 2017 daria para manter 13 hospitais por dois meses e meio
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uando tinha seis anos, Eduardo começou a reclamar de dores de cabeça, abdominais e nas pernas. Os sintomas, a princípio simples, levariam a um diagnóstico só um ano depois: mucopolisacaridose do tipo 1. A doença genética rara e sem cura leva ao enrijecimento das articulações, dificuldades respiratórias e cardíacas, alterações no crescimento e deformações ósseas. Os pais viram o caçula perder a visão, deixar de comer e andar e descobriram uma pesquisa pioneira no Canadá. O experimento reverteu o estado vegetativo e evitou agravamento da doença.

– Até hoje me emociono, parecia um milagre – conta a mãe, Margareth Carreirão, que preside a Associação Catarinense de Doenças Raras.

A solução tinha nome: Laronidase, um remédio produzido nos Estados Unidos. Graças a ele, Eduardo completou 29 anos no início de setembro, contrariando todas as previsões médicas que diziam que ele não passaria dos nove. Mas o milagre também tinha um preço: R$ 240 mil por mês. Em 2005, Margareth se viu obrigada a acionar a Justiça e conseguiu que o governo estadual bancasse o tratamento, único voltado para a síndrome e que não era fornecido pelo SUS. As preocupações não cessaram. Sob alegação de orçamento apertado da Secretaria de Saúde, no início deste ano o fornecimento passou a falhar. Margareth teve que esperar um mês para a chegada dos frascos e percebeu imediatamente que Eduardo teve ainda mais dificuldades para andar e sofria com a falta de ar. Nos meses seguintes, a entrega sempre veio com algum atraso, e agora já são três semanas de angústia sem a medicação:

– Se faltar o remédio, não tem opção, ele morre. É um desespero como mãe, cada dia sem remédio é um dia a menos para o meu filho.

Eduardo é um dos 23 mil pacientes que atualmente recebem medicamentos da Secretaria de Estado da Saúde por ordem judicial. Em 2016, foram em média 18 ações novas por dia obrigando o governo a pagar medicamentos e tratamentos. Esse gasto representou 11% do orçamento da saúde no Estado. Neste ano, o pico das ações judiciais chegou a 60 em alguns dias e já foram R$ 220 milhões demandados para a compra de insumos judicializados, o que daria para manter por dois meses e meio os 13 hospitais sob gestão estadual. Os gastos e o número de ações crescentes levam a Secretaria da Saúde a apontar os medicamentos pagos via judicial como uma das causas para explicar a crise da saúde no Estado.

– Com o aumento da judicialização, faltam recursos para outras áreas, é um efeito cascata. Ela está banalizada, está sendo instrumento de prioridade em fila, atendimento.

A gente acaba atendendo uma demanda individual ao invés da coletiva – defende a consultora jurídica da Secretaria de Saúde, Janine dos Santos.

Ela acrescenta que o Estado gasta pelo menos 30% a mais com o medicamento judicializado do que se fosse um processo de compra normal.

O desembargador do Tribunal de Justiça de SC Ronei Danielli discorda. Autor do livro A Judicialização da Saúde no Brasil: do viés individualista ao patamar do bem coletivo, defende que a requisição de remédios via judicial “é efeito da deficiente prestação desse serviço essencial pelo Estado” e não uma causa da crise:

– A resposta tradicional de que não se tem recursos já não basta. Se o Estado não cumpre com obrigações básicas, o Judiciário não pode deixar de garantir estes direitos.

A promotora de Justiça Caroline Cabral Zonta, coordenadora-adjunta do Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos do Ministério Público de SC, acrescenta que, a partir do momento que a Constituição Federal definiu que todos têm direito à saúde, cabe ao poder público adotar as medidas necessárias para efetivar o acesso a esse direito:

– A demanda existe, apenas não está sendo atendida pelo Executivo e requer a intervenção do Judiciário.

 

Quem paga a conta O Judiciário considera que municípios, Estado e União são solidários nas ações judiciais na área da saúde, mas a conta é do governo estadual. A Justiça Federal é mais rígida e acaba sendo mais fácil e comum entrar contra o Estado. Além disso, cada ente assume responsabilidades: União responde por alta complexidade, Estado por média e municípios por remédios da rede básica. o que é exigido Tribunal de Justiça de SC definiu que nos casos de pedidos judiciais de medicamentos não fornecidos pelo SUS deve ser comprovada a falta de condição financeira para arcar com o medicamento e também que o tratamento ofertado pelo poder público é ineficiente ou não existe. Caso o remédio requisitado estiver padronizado pelo SUS, o paciente precisa ter procurado antes a Secretaria de Saúde municipal ou estadual e não precisa comprovar a falta de recursos. Em todos os casos, é preciso apresentar um pedido formal de um farmacêutico e um médico. O TJSC adotou posicionamento depois que julgou um processo e a decisão passou a ser adotada em todas as ações semelhantes.
sem cumprimento, SAÍDA É O SEQUESTRO DE RECURSOS DO ESTADO

Mas nem sempre o Estado cumpre as decisões judiciais que obrigam o fornecimento de medicamentos. A própria Secretaria admite isso:

_ Quando vem uma demanda em que existe medicamento para tratamento no SUS o descumprimento da ordem judicial às vezes é priorizado. A gente descumpre porque não pode deixar faltar uma cirurgia, uma emergência no hospital. Todo mundo quer tratamento, mas os recursos são escassos _ justifica Janine.

Ela cita que muitas vezes os juízes dão prazos de 48 horas para o Estado cumprir uma liminar, o que também torna inviável o cumprimento diante do tempo necessário para licitação. Neste ano, a Justiça já sequestrou R$ 23,2 milhões dos cofres da saúde em SC para garantir o cumprimento das ações.

O desembargador Danielli defende que os descumprimentos judiciais no fornecimento de remédios e tratamento são inadmissíveis e mostram que há um descontrole por parte do governo:

_ Não há dúvidas que os recursos são escassos, mas, muitas vezes, a postura do Estado no enfrentamento destas questões levam a um dano maior, pois permitem, em razão do descumprimento das medidas judiciais, o sequestro de valores para o custeio do tratamento, com o pagamento de preços elevados, desordenando a administração e impondo um ônus desnecessário à sociedade.

Ele cita que as defesas por parte do Estado, na grande maioria, se limitam a textos padronizados e que muitas vezes a própria Procuradoria solicita "que não se aplique multas e sim sequestre valores das contas públicas".

Em nota, o procurador-geral Adjunto para Assuntos Jurídicos, Ricardo Della Giustina, confirma que em alguns casos é optado pelo sequestro por ser menos oneroso. Ele cita como exemplo a determinação para concessão de um medicamento que custa R$ 10 mil e estabelece-se R$ 50 mil de multa por dia de descumprimento. Se o Estado não consegue cumprir, por burocracia, não encontrar o medicamento em laboratórios ou falta de recursos, é preferível o sequestro. Porque em uma semana de descumprimento o Estado teria que pagar, além do medicamento, R$ 350 mil em multa.

Para a aposentada Patrícia Laureano, 41 anos, a única saída foi solicitar o sequestro do dinheiro. Há 27 anos, a moradora de Florianópolis tem diabetes e desde janeiro não recebia uma das insulinas, a análoga de ação ultrarrápida, que conseguiu via judicial.

_ Eu não posso escolher, hoje tenho diabetes e amanhã não tenho mais. Agora a gente está tendo que comprar do bolso. Nós temos direito a saúde, a uma vida digna, e como vou ter uma vida digna se não tenho saúde? _ questiona.

Sem a entrega, ela recorreu à Defensoria Pública, que solicitou o sequestro. O montante foi depositado em uma farmácia particular e assim Patrícia voltou a conseguir o medicamento.

 

MEDICAMENTOS FALTANTES NA LISTA DO SUS SÃO MAIORIAS

Segundo levantamento da Secretaria de Saúde em torno de 70% das demandas judiciais são por medicamentos que não constam na lista do SUS e que acabam sendo os de maior custo. Para Janine, nesses casos, o ideal é que todas as possibilidades terapêuticas oferecidas pelo SUS tenham sido esgotadas para então recorrer à Justiça, o que, segundo ela, nem sempre acontece.

O presidente da Associação Catarinense de Medicina, Rafael Klee de Vasconcellos, explica que os médicos vivem um dilema ético. Deveriam prescrever tratamentos que caibam no orçamento do SUS, mas muitas vezes a incorporação de remédios pelo sistema público é lenta, a Anvisa não registra os que já funcionam em outros países e pacientes que têm doenças raras, por exemplo, ficam de fora dos tratamentos disponíveis gratuitamente. Mas reforça o compromisso dos profissionais com a saúde dos pacientes:

_ O médico tem a obrigação ética e se compromete a oferecer o que há de melhor para o paciente e muitas vezes isso não está coberto pelo SUS _ defende.

Foi o que aconteceu com Maria Cleorada Dias, 47 anos. Com o diagnóstico de um câncer de pulmão avançado, no final do ano passado, ela começou o tratamento pelo SUS. A moradora de Bombinhas, no entanto, apresentou alergia à quimioterapia e chegou a convulsionar na primeira sessão. Além disso, mesmo com o tratamento o tumor progrediu. Com a imunidade baixa, teve pneumonia, e passou a precisar de ajuda para executar tarefas básicas, como tomar banho e caminhar. A orientação médica para o caso dela era tomar Tagrisso, remédio mais eficaz para esse tipo de tumor, mas ainda não disponível pelo SUS. Como a medicação custaria R$ 38 mil por mês e a família não tinha condições de pagar, entrou com uma ação judicial. A liminar concedendo o medicamento saiu em meados de agosto, mas até o início de setembro a família não tinha recebido os comprimidos. Para não parar o tratamento, enquanto aguardavam o processo, recorreram a uma clínica particular para fazer outro tipo de quimioterapia e precisam desembolsar R$ 15 mil a cada sessão.

_ Ao mesmo tempo que dá esperança, a gente fica na angústia porque depende do Estado. Com essas notícias que a gente ouve da saúde, por mais que eu tenha um papel que me diga que o Estado deve me dar esse remédio, eu não tenho certeza que vai chegar na minha mão _ diz a filha de Maria, Caroline.

A assessoria do Ministério da Saúde diz que a lista do Relação Nacional de Medicamentos Essenciais, que define o que é disponível pelo SUS, é publicada a cada dois anos, mas há atualizações nesse intervalo. A relação de 2017 conta com 869 itens, contra 842 da edição anterior.

Para tentar equilibrar a balança – de um lado pacientes em busca de tratamento, do outro os escassos recursos do Estado – foram criados os Núcleos de Apoio Técnico (NAT), convênio entre a Secretaria de Saúde e o Tribunal de Justiça de SC. Atuando em 20 comarcas do Estado, o setor elabora pareceres técnicos para subsidiar a decisão dos juízes com informações sobre medicamentos disponíveis no SUS e tratamentos mais adequados para cada caso.

 

JOGO DE EMPURRA EM JOINVILLE

A distribuição de insulinas especiais a portadores de diabetes em Joinville tem sido alvo de discussão na Justiça. Isso porque prefeitura e Estado querem se eximir da obrigatoriedade pela compra de análogos de insulina. Atualmente, o medicamento é fornecido a cerca de 1,2 mil pessoas na Farmácia-escola de Joinville. Por serem insulinas especiais, os frascos ou canetas são mais caros que a insulina convencional.

A prefeitura de Joinville contesta a responsabilidade pela entrega de forma mais efetiva desde abril deste ano, quando a Assembleia Legislativa derrubou o veto do governador Raimundo Colombo ao projeto de lei nº 109/2015, o qual dispõe sobre a distribuição gratuita de análogos da insulina a portadores de diabetes em SC. O Estado entrou, então, com um recurso na Procuradoria-geral, mas a decisão ainda não foi tomada e, por isso, tem comprado os medicamentos por meio da Secretaria de Estado da Saúde (SES). Antes, o município assumia a compra.

As insulinas especiais são usadas, geralmente, por diabéticos do tipo 1, que não têm mais produção autônoma de insulina no corpo. Os análogos oferecem melhor controle da doença quando comparados às insulinas convencionais fornecidas gratuitamente nos postos de saúde do município.

Conforme o presidente da Associação dos Diabéticos de Joinville (Adijo), Gilmar Ancelmo da Costa, em uma conversa mantida com representantes da SES e da Secretaria Municipal da Saúde, no início de julho, ficou definido que o Estado faria um cadastro dos pacientes dependentes de insulinas especiais para, posteriormente, realizar a entrega do medicamento. Esse trabalho, diz Gilmar, já começou.

Conforme a prefeitura, a compra e distribuição de insulina não é responsabilidade do município, uma vez que o Estado foi obrigado pela Justiça Federal a fornecer todos os medicamentos para o tratamento.

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