Rússia, 1773. A imperatriz Catarina, a Grande, manda construir um orfanato em Moscou onde, além de abrigar crianças sem família ou filhos de relacionamentos extraconjugais, ofereceria educação de qualidade. Entre as atividades oferecidas aos jovens súditos, uma arte ainda pouco conhecida pelos russos: o balé.

Brasil, 1996. Os amantes da dança vão à loucura ao saber que uma das maiores referências em dança no mundo, o Balé Bolshoi de Moscou, viria se apresentar no país. Entre os palcos da turnê, havia um joinvilense: o do 14º Festival de Dança. Ainda não era possível imaginar, naquele mês de julho, que um novo projeto do Bolshoi estava prestes a começar – e justamente naquela cidade bem distante e diferente da capital russa.

Entre os dois momentos, esteve a criação da Escola Coreográfica de Moscou, a partir daquela semente plantada no reinado de Catarina. A escola, por sua vez, incentivou a construção de um teatro que abrigasse as apresentações, e começou uma transformação que tornou o país em um ícone mundial da dança clássica.

— Ela era uma escola do Teatro Bolshoi, de onde saíram, e ainda saem, a maioria dos bailarinos da companhia. Mas houve um momento em que, para ter autonomia em sua administração, ela se separou do Teatro e tirou o nome Bolshoi — explica o diretor geral da escola brasileira, Pavel Kazarian.

É a "irmã gêmea" da Escola Coreográfica de Moscou que existe hoje em Joinville, com seu programa de estudos e sua metologia de ensino. Ela aconteceu porque, nas palavras de Pavel Kazarian, houve uma feliz coincidência: um desejo já existente do então diretor do Balé Bolshoi, Alexander Bogatyrev, de replicar a metodologia de ensino da Escola Coreográfica de Moscou para outros países, e os esforços dos joinvilenses, capitaneados pelo então prefeito Luiz Henrique da Silveira, de fazer a escola joinvilense acontecer.

— Talvez, se fosse hoje, ela não acontecesse, assim como não há, atualmente, chance de abrir outra escola do Bolshoi em nenhum outro lugar do mundo – avalia Pavel, revelando que também houve uma tentativa de implementar uma escola com o método na Austrália, sem sucesso.

Um detalhe foi decisivo para o projeto joinvilense receber o direito de utilizar o nome Bolshoi e contar com o apoio da instituição russa na sua criação e manutenção, já que Alexander Bogatyrev e Vladimir Vasiliev (diretor artístico do Bolshoi de Moscou) recebiam várias propostas todos os anos, vindas de todos os lugares do mundo, para abertura de escolas com seu nome: a maioria delas tinha foco comercial, com o desejo de utilizar a grife que a companhia de dança havia se tornado para cobrar altas mensalidades dos alunos. A Escola do Teatro Bolshoi no Brasil, no entanto, nasceu com objetivos semelhantes àqueles que deram origem a esta história: a de oferecer o ensino da arte a crianças de baixa renda, dando a elas a oportunidade estudarem gratuitamente e de construírem uma carreira na dança, se assim quiserem.

 

 

A decisão de uma imperatriz russa que alterou os caminhos de crianças do século XVIII na Rússia e de crianças do século XXI no Brasil

Reportagem

Claudia Morriesen

Design e desenvolvimento

Jacque Tkac

Edição

Carolina Mar

Agradecimento

Rafaela Mazzaro

(que desenvolveu a primeira etapa do projeto)

Imagens e Video

Bia Bittelbrunm

Rodrigo Philipps

Leo Munhoz

Ao observar os alunos nos corredores da Escola Bolshoi, a única diferença perceptível entre os meninos e meninas é a de uniformes: as cores mudam de acordo com o módulo de ensino, com branco para os calouros e azul petróleo para os veteranos, por exemplo. Mas, do contrário, não há desigualdade social no pequeno mundo formado pelos 241 crianças e adolescentes, mesmo que, ao final das aulas, uma parcela dirija-se a prédios no Centro da cidade enquanto outra vai para casas nos bairros mais periféricos. A condição socioeconômica de 73% das famílias de alunos é de renda de zero a cinco salários mínimos, enquanto 27% tem renda acima de cinco salários.

— Nós somos chamados por algumas cidades para fazer audições, e vamos buscar talentos. Curiosamente, as crianças das camadas sociais menos favorecidas são as que são grandes talentos, e ficamos felizes por isso, por podermos dar oportunidade para estas crianças. Mas, se você me perguntar se vamos buscar crianças de baixa renda, a resposta é: não, nós vamos buscar talentos — afirma a coordenadora de apoio educacional, Bernadéte Costa.

Não é fácil ser aluno da Escola do Teatro Bolshoi no Brasil. Primeiro, poque as seletivas costumam atrair tantos interessados que a concorrência chega a mais de 60 candidatos por vaga — caso do ano passado, quando 1.279 meninas participaram dos testes por uma entre as 20 vagas femininas para  a primeira série. Este número parece ainda mais surpreendente ao levar em consideração que estes concorrentes são crianças entre nove e 11 anos de idade, que passam por provas para dar início à uma formação técnica em uma idade em que a maioria das pessoas ainda não tem certezas nem preocupações sobre a carreira que irá seguir.

Depois, não são só de aulas de dança que preencherão a rotina do aluno. Nos oito anos exigidos pelo programa de ensino da Escola do Teatro Bolshoi (tempo previsto e seguido pela escola na Rússia), também aprende-se história da dança, piano, literatura musical, educação musical e rítmica e teatro. Para complementar a formação em dança (que, na quinta série, pode passar a ter foco em dança clássica ou contemporânea, dependendo da aptidão do estudante), há ainda aulas de prática cênica, ginástica acrobática e específica, dança popular histórica, repertório, folclore brasileiro, dança à caráter e dueto.

— Algumas pessoas dizem que os alunos do Bolshoi não tem infância. Mas de que infância estamos falando? Daquela na rua, correndo riscos? Na escola, eles brincam, socializam, tem atividades lúdicas. Isso tudo trará um diferencial para elas — avalia Bernadete.

 

 

Durante boa parte de sua história, a Escola do Teatro Bolshoi tentou atender ao maior número de alunos bolsistas, mas ainda havia mensalidades, que recebiam abatimentos de acordo com o nível socioeconômico de cada estudante. Recentemente, ao avaliar os indicadores econômicos, a direção percebeu que aquela política de cobrança impactava apenas a vida dos pagantes, que representavam 6% do total de alunos em 2010, quando começou o processo para fazer com que todos os alunos — atualmente são 241 — tenham bolsas integrais. Afinal, as mensalidades que eram pagas quase não faziam diferença no orçamento final.

— Havia uma discussão interna sobre a escola ser uma instituição sem fins lucrativos, mantida basicamente com recursos públicos, e, por isso, ser um dever da escola devolver isso para a sociedade de uma forma total — recorda a diretora financeira, Célia Campos.

A Escola do Teatro Bolshoi no Brasil depende, atualmente, de diferente fontes para completar o valor necessário para manter sua estrutura e seus alunos bolsistas: R$ 7 milhões anuais. A principal vem do Governo do Estado de Santa Catarina, via Fundo Social, que direciona cerca de R$ 4 milhões para o projeto da instituição — que, todos os anos, envia um projeto para concorrer a este financiamento. Outra grande parte do orçamento é completada com captação de recursos via Lei Rouanet (Lei Federal de Incentivo à Cultura, do Ministério da Cultura), com patrocínio e apoio de empresas ou pessoas da sociedade, baseada no Princípio de Renúncia Fiscal, ou seja, uma porcentagem do Imposto de Renda é destinada para colaborar com o projeto Bolshoi Brasil. Os recursos do Fundo para a Infância e Adolescência (FIA), que permitem abatimento do imposto de renda para direcioná-lo à escola.

Há ainda colaboração da Prefeitura Municipal de Joinville, que cede a estrutura dentro do prédio do Centreventos Cau Hansen, da qual também é liberada dos impostos e taxas. Todos os anos, a escola apresenta projetos para o Sistema Municipal de Desenvolvimento pela Cultura (Simdec), para concorrer ao Edital de Apoio à Cultura, valor utilizado para realizar as apresentações oferecidas à comunidade joinvilense a preços populares, sempre com uma apresentação gratuita para alunos da rede municipal de ensino como contrapartida social.

— Temos também a venda de souvenires e o cachê da Cia. Jovem Bolshoi Brasil, mas são valores muito pequenos dentro do orçamento — conta Célia.