O romance perdido de Jorge Amado
. . . . Obra estava entre pertences do autor deixados aos cuidados de uma amiga comunista no Uruguai
U

m grupo de jovens se reúne em um sítio à espera da ordem para o início de um levante comunista. Enquanto aguardam o sinal que deflaglará a revolução, a ser transmitido naquela noite chuvosa por uma rádio local, as paixões, incertezas e dramas de cada militante vão se revelando. Um deles tem um caso com a mulher de um companheiro preso. Outro sonha apenas em ver seu nome nos jornais. Um terceiro muda de ideia e prefere ficar com a amante na cama a participar da luta.

 

 

A história compõe Agonia da Noite, romance inédito e inacabado de Jorge Amado descoberto entre os cerca de 1,4 mil documentos, cartas, folhas datilografadas, poemas, recortes de jornais, fotos e anotações do autor baiano sob os cuidados do Núcleo Literatura e Memória (Nulime) da UFSC, em Florianópolis. O mesmo título chegou a batizar a segunda parte da trilogia Os Subterrâneos da Liberdade, lançada em 1954, mas as 76 páginas já concluídas da narrativa original nunca foram publicadas.

Para Mário, o destino do homem é a desgraça. Desgraça sobre a terra sempre e sempre, via tudo terrivelmente miserável naquela noite de temporal. ...

Todo o acervo estava em uma mala que Amado abandonou ao voltar do exílio voluntário na Argentina e no Uruguai, em agosto de 1942. No ano anterior, ele havia trocado o Rio de Janeiro por Buenos Aires a pedido do perseguido Partido Comunista Brasileiro (PCB), ao qual era ligado, para fazer o que jamais seria permitido no Estado Novo: escrever a biografia do líder Luís Carlos Prestes, mantido preso pela ditadura de Getúlio Vargas desde 1936.

– A gente percebe pelo material que há a intenção de promover uma campanha pela libertação de Prestes e torná-lo uma espécie de he­rói latino-americano – observa a professora Tânia Regina Ramos, que coordena as pesquisas no acervo.

A temporada portenha de Amado terminou quando o Brasil entrou na Segunda Guerra Mundial ao lado de Estados Unidos e União Soviética. A presença da pátria-mãe do comunismo na aliança encorajou o PCB a considerar que Vargas não reprimiria os filiados e a determinar que eles retornassem do exterior para apoiar o combate ao nazifascismo. O escritor seguiu a orientação e acabou na prisão tão logo pisou em Porto Alegre. As provas que podiam comprometê-lo, porém, ficaram a salvo com uma companheira do partido.

 

 

Quase 70 anos depois, em 2011, a papelada chegou às mãos de Tânia por meio da professora Leonor Scliar Cabral, que trabalhava em uma sala ao lado na UFSC. Era, nas palavras da guardiã, a “mala do Jorge Amado”.

– Pensei que fosse alguma brincadeira, não sabia o que pensar. “Como isso foi parar em suas mãos?”, perguntei – lembra Tânia, que seria surpreendida ainda mais com a resposta.

Leonor era filha da mulher a quem Amado confiara a papelada no distante início da década de 1940, conhecida apenas como Rosa. O codinome homenageava a ícone comunista alemã Rosa de Luxemburgo, fuzilada em 1919 em Berlim. A homônima nasceu na Polônia, foi deportada do Brasil por volta de 1930 e se mudou com o marido Isaac Scliar e as duas pequenas (a outra era Esther) para Rivera, no Uruguai. Lá, juntou-se ao militante português Bernardino do Valle e deixou a família para se dedicar à causa vermelha.

 

 

Foi nesse contexto que Amado a encontrou em Montevidéu e lhe entregou a mala às vésperas de embarcar para o Brasil. Depois de inúmeras tentativas frustradas de devolvê-la ao dono, Rosa guardou tudo até morrer, em 1996 – não sem antes contar essa história para Leonor, com quem havia retomado contato após a clandestinidade. A filha achou a mala entre os pertences da mãe e, como iria se mudar de uma casa para um apartamento menor, resolveu doar o conteúdo a Tânia.

– No dia seguinte à nossa conversa, ela me trouxe o material. Não em uma mala, mas em uma sacola plástica. Fiquei assustada com a quantidade, não imaginava que fosse tanta coisa. Seu único pedido foi que, se houvesse algum trabalho acadêmico a respeito, que fosse dedicado à mãe, da qual nunca me revelou o nome verdadeiro – diz a coordenadora do Nulime.

 

. . . . Esquecimento proposital

O conteúdo da “mala de Jorge Amado” impressiona pela riqueza. Segundo Tânia, além do romance secreto o legado ajuda a descortinar um período da trajetória do escritor sobre o qual as informações são escassas – boa parte por vontade dele mesmo. De fato, em seu livro de memórias Navegação de Cabotagem (1992), os anos de 1941 e 1942 mereceram não mais do que relatos superficiais sobre as articulações “contra o nazismo e de convivência com os políticos que rotulávamos de liberais com menosprezo e desconfiança”.

 

 

É que, com a vinda à tona dos horrores cometidos por Stálin, em 1956, Amado engrossou a fileira de intelectuais que romperam com o comunismo e evitava falar de seu envolvimento com a ideologia. Jamais permitiu, por exemplo, que O Mundo da Paz, escrito em 1951 com loas ao tirano soviético – “mestre, guia e pai, o maior cientista do mundo hoje, o maior estadista, o maior general, aquilo que de melhor a humanidade produziu” – fosse reeditado.

– Ele sempre afirmou que levaria os segredos do partido consigo para o túmulo – atesta Tânia.

 

 

Daí o desinteresse de Amado em resgatar a mala com Agonia da Noite. Ele começou a obra no final da década de 1930, em plena efervescência militante. Em 1o de julho de 1939, o jornal literário carioca Dom Casmurro, onde trabalhava na época, veiculava o primeiro anúncio divulgando que o romance sairia “em breve” pela editora José Olympio. A lacônica propaganda se repetiu quase semanalmente até que a edição de 13 de janeiro de 1940 trouxe detalhes em uma nota:

“Passando a maior parte do ano em Estância, uma cidadezinha do interior sergipano, o escritor de Jubiabá tem em preparo dois outros romances: Sinhô Badaró, que possivelmente será publicado em dois volumes, e Agonia da Noite, um romance introspectivo. Intelectuais de nome que já leram capítulos inéditos deste novo romance de Jorge Amado dizem que se trata de um ótimo livro e que o romancista de Capitães de Areia estreia desta maneira difícil de um modo definitivo.”

 

Uma vez ela lhe dissera que o destino do homem é ser feliz acima de tudo, passando sobre tudo. Essas coisas nos lábios dela saíam sempre num tom dramático de desespero e tinham uma marca de sinceridade que abalavam Mario. ...

No número subsequente, mais um registro informava que “Jorge Amado, depois de dois anos de silêncio, publicará logo no início do ano o Agonia da Noite, romance com seis personagens apenas e que se passa em doze horas todo ele”. Em maio, o baiano despediu-se do Dom Casmurro, que continuou a promover o lançamento até outubro. Em novembro, o escritor seria notícia no jornal como tradutor de Dona Barbara, “o célebre romance venezuelano de Romulo Gallegos”. Sobre o livro prometido, no entanto, não houve mais nenhuma menção.

As razões que levaram Amado a ignorar Agonia da Noite ao retornar ao Brasil, quando ainda era um entusiasta do regime de Moscou, permanecem cercadas de mistério. Da capital gaúcha, ele foi transferido para o presídio da Ilha Grande, no Rio de Janeiro. “Fiquei no xilindró uns meses, soltaram-me a tempo de ir passar o Natal (de 1942) na fazenda com o coronel João Amado e dona Eulália (seus pais)”, anotou em suas memórias.

É provável que a soltura da cadeia tenha sinalizado uma trégua do governo Vargas com o PCB (que voltaria à legalidade em 1945) – o que tornaria o teor panfletário da obra, àquela altura, no mínimo inconveniente. Em vez de retomá-la, em 1943 Amado lançou Terras do Sem-Fim, do qual cópias datilografadas também faziam parte da bagagem deixada para trás no exílio. Alheia à cena política de então, a narrativa gira em torno dos conflitos entre lavradores e coronéis do cacau no sul da Bahia no início do século 20.

 

 

A carreira literária prosseguiria com São Jorge dos Ilhéus, Ba­hia de Todos os Santos (ambos em 1944) e Seara Vermelha (1946). Em âmbito pessoal, Amado vivenciou o casamento com Zélia Gattai, em 1945, o nascimento dos filhos João (1947) e Paloma (1951) e a morte da primogênita Eulália (nascida em 1935, fruto da união anterior com Matilde Garcia Rosa), em 1949. No plano político, elegeu-se deputado federal por São Paulo em 1945 pelo PCB e partiu para um novo exílio em Paris e em Praga (de 1948 a 1952), culminando com a desilusão com o comunismo, definitivamente banido da bibliografia posterior do baiano.

 

 

Toda essa atribulação contribuiu para sepultar quaisquer planos de concluir Agonia da Noite, cuja existência continuaria incerta não fosse o gesto de Leonor e a descoberta de Tânia. Dos trabalhos resultantes de pesquisas no acervo, pelo menos dois – de Roberta de Fátima Martins, no mestrado, e de Thalita da Silva Coelho, na graduação – já foram dedicados à “mãe judia sem nome”, Rosa, “que guardou esse tesouro por tanto tempo”.

Raymundo vê Heloisa valsando, os longos cabelos enchendo a sala. Miguel pensa em Celestina, que a morte também pode ser uma mulata de amplos quadris. Prensa vê a mulher que se afastou dele com nojo na entrada do cinema, há muitos anos, e agora ele a pode possuir. Só Lopes não tem essa visão pessoal de uma mulher. ...