A mala de conteúdo panfletário
. . . . ALém de AGONIA DA NOITE, BAÚ DEIXADO NO EXTERIOR REVELA QUE JORGE AMADO, UM ESCRITOR JÁ CONSAGRADO NA ÉPOCA, exercia papel importante no comunismo
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carta do remetente com assinatura ilegível informa que o Brasil entrou na Segunda Guerra Mundial (agosto de 1942), conclamando os revolucionários comunistas a voltar ao país. Avisa ainda que a esposa e a filha chegaram bem e estão esperando por ele. O destinatário – Jorge Amado – atenderia o pedido. Mas, precavido, deixaria a correspondência entre os papéis amontoados na mala que largou com uma colega militante ao encerrar o autoexílio iniciado em 1941 em Buenos Aires e Montevidéu.

 

 

O acervo, em poder do Núcleo de Literatura e Memória (Nulime) da UFSC, revela que os temores do escritor não eram infundados. O material é rico em evidências das atividades “subversivas” de Amado durante os quase dois anos passados fora do Brasil. A começar pela finalidade da estada no exterior: escrever a biografia do prócer comunista Luís Carlos Prestes, da qual o autor baiano relata a um certo Joaquim já ter feito 230 das 400 páginas que pretendia para a obra e planejava chamá-la de O Cavaleiro da Esperança.

A presença do líder preso pelo governo Vargas se espalha pelo conteúdo da mala. É Prestes quem assina o manuscrito microfilmado de 25 de novembro de 1941. É sua libertação que o panfleto impresso pela editora e gráfica argentina Sur reivindica. É dele que falam as cartas de Lygia e Leocádia Prestes. Em uma delas, a irmã dá notícias da mãe e de Anita (filha do biografado), agradece pelo envio do livro sobre Luís e aborda uma questão supostamente envolvendo dinheiro que Amado deveria assuntar com o escritor e historiador mexicano Ermilo Abreu Gomez.

 

 

Também há uma profusão de contatos de filiados do Partido Comunista Brasileiro (PCB), a maioria sem remetente e com destinatários identificados apenas pelo nome de guerra – Palma, Baby, Antonio, Palmarino, Ambrosio, Munhoz, Pompilio, Carmélia – para dificultar o rastreamento. A leitura das cartas dos camaradas mostra a afinidade com Campeão, que as pesquisas coordenadas pela professora Tânia Regina Ramos intuem ser o apelido de Thomás Pompeu de Aciolly Borges, em referência à conquista dele do título brasileiro de xadrez em 1936.

 

 

Embora sequer o cite nas memórias Navegação de Cabotagem, indícios apontam que a relação entre os dois ia além da política. Integrante da Aliança Libertadora Nacional (ALN, movimento de oposição a Getúlio Vargas) e tradutor da biografia para o espanhol, Pompeu conta das condições de Prestes na cadeia, de uma possível ida do músico Dorival Caymmi à capital argentina para um evento dos exilados comunistas e da suspensão da correspondência por algum tempo devido a “razões especiais”.

 

 

Como amigo, confidencia que vai se casar com a militante Maria Cruz e se preocupa com a situação financeira do escritor, aconselhando-o a recorrer à ajuda familiar. Não que Amado tivesse abdicado de seu ganha-pão. Conforme ressalta a pesquisadora, “na época ele não tinha nem 30 anos e já vivia de literatura, com muitas editoras interessadas em traduzi-lo”. Reflexo disso são as tratativas para verter romances como Suor, Cacau, Jubiabá e Mar Morto (lançados entre 1933 e 1936) em inglês, francês, espanhol e iídiche, uma língua germânica das comunidades judaicas da Europa.

 

Jorge Amado no que parece ser uma gráfica
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Entre os documentos encontrados, uma carteira do jornal A Noite escondia um endereço de Moscou
. . . . Cartas e fotos

No lado autoral, fragmentos de Terras do Sem-Fim, São Jorge dos Ilhéus e do inédito Agonia da Noite se misturam com folhas em que anotações anônimas sugerem a intenção de se arriscar na poesia – falta confirmar se versos como os do Poema da Menina-e-Moça que Virou Mulher-e-Puta são de Amado. Aparece inclusive um esboço para um livro intitulado Poemas para o Povo, definido por ele como uma crítica a poetas que “se caparam, engordaram e, bonitinhos e efeminados, traem toda a grande tradição da poesia brasileira”.

 

 

Um dos alvos seria Carlos Drum­mond de Andrade, então chefe de gabinete do ministro de Educação e Saúde de Vargas, Gustavo Capanema. “De sua torre o poeta/ Não vê o povo com fome/ A arte está bem acima/ De coisas tão miseráveis”, acusa o Epigrama do Poeta Modernista. Tal alienação era inadmissível para Amado. Mesmo sem abrir mão da faceta criativa, o homem que emerge do acervo priorizava o engajamento, constante até nos escassos recuerdos de cunho pessoal.

Um documento da polícia uruguaia lista os pertences de um detido (não identificado) em 21 de novembro de 1941, possivelmente um preso político. Das raras fotos guardadas, uma é de Prestes quando jovem. Duas retratam Amado, com um grupo de comunistas no que parece uma gráfica, e na 3x4 de sua carteira profissional do jornal A Noite com o cargo de enviado aos Estados Unidos. A quarta traz o escritor dividindo uma mesa (e uma garrafa) com dois distintos senhores em uma conferência no Circulo El Progreso, em Montevidéu, em 19 de maio de 1942.

 

Carta que Prestes escreve na prisão (abaixo); originais do poema As Três Irmãs, uma das passagens do romance Terras do Sem-Fim

Poucos itens se salvam de qualquer associação ideológica, como folhetos da quiromante Madame Albertina e do cine São João. A estreia do filme Sangue Cigano em Estância (SE) foi patrocinada pela chegada do livro Mar Morto à papelaria da cidade onde moravam seus pais, o que explica por que Amado conservou a programação do cinema. Quanto à vidente, não há registros de que ele procurou os serviços dela. Se a tivesse consultado, talvez as linhas de suas mãos previssem o que o aguardava na volta ao Brasil.

 

 

De nada adiantaria se desfazer dos documentos que o ligavam ao comunismo. O baiano lembra em Navegação de Cabotagem que estava em Porto Alegre, em agosto de 1942, e ia todas as noites à redação do jornal Correio do Povo para se inteirar dos últimos despachos noticiosos sobre a guerra. Ele e o jornalista Raul Riff tomavam uma média com pão e manteiga em um botequim em frente quando a polícia de Vargas o capturou. E a mala com um pedaço de sua aventura no exílio ressurgiria 70 anos depois em Florianópolis.

Ficha da polícia uruguaia arrolava os pertences de um preso não identificado