UM EXEMPLO DE
VIDA DIGNA PELA AUTONOMIA
(Parte 4) Após a Funai abrir mão da responsabilidade de ser a única gestora dos índios, uma comunidade de 6,1 mil pessoas aposta na autonomia para gerenciar negócios próprios Parte 1 Introdução Parte 2 Parte 3 Parte 4 Parte 5 Linha do tempo
oi a partir de um decreto assinado em 2012, em que a Funai abre mão da tutela dos índios, que o então cacique da maior terra indígena de Santa Catarina vislumbrou a possibilidade de um novo modelo de vida na aldeia. Desde então, tem sido negada a interferência de antropólogos nas decisões da tribo – sejam eles ligados ao governo ou a ONGs. O índio virou o dono do próprio negócio: o último deles, fechado neste ano, prevê contrato de sociedade com uma multinacional canadense.
A terra indígena Xapecó fica pouco mais de 500 quilômetros distante do litoral, no oeste de Santa Catarina. São 16 mil hectares de terra, que comportam 15 aldeias e abrigam 6,1 mil moradores: 90% deles da etnia kaingang.
Uma realidade completamente diferente da que o Diário Catarinense retrata desde a última quinta-feira. Enquanto a legitimidade da demarcação de Morro dos Cavalos é questionada na mais alta instância do Judiciário brasileiro devido à influência predominante de pesquisadores – e teorias antropológicas –, os índios do oeste se preocupam cada vez mais em afastar a condição de dependência. Eles optaram por investir na autonomia recém-descoberta.
– Era muita gente falando em nome dos índios, buscando recursos que nunca chegavam. Deu de a Funai ou qualquer outra organização administrar o que é nosso – argumenta Gentil Beline, que ainda era cacique quando enviou documento para Brasília oficializando que somente uma comissão formada por caciques de cinco reservas do Oeste tem poder para representá-los.
A vida no local está mudando, afirma Beline. E ele cita o uso da terra como exemplo. Antes, os índios arrendavam lotes do território – mesmo que ilegalmente – para fazendeiros da região. Por ano, ganhavam entre R$ 4 mil e R$ 5 mil a cada 10 hectares. Hoje apostam no uso da terra. Com a criação de gado leiteiro podem chegar ao mesmo valor em até três meses. A produção da aldeia corresponde a 47% do leite produzido em todo o município de Entre Rios (65% da terra indígena se localizam no município de Ipuaçu e o restante fica em Entre Rios). SÓCIOS DE UMA MULTINACIONAL Neste ano, os kaingang selaram uma parceria audaciosa: eles aceitaram a construção de hidrelétricas dentro da reserva. Em vez de negociar indenização em decorrência dos impactos que a comunidade poderia sofrer, propuseram uma sociedade. E conseguiram. Viraram sócios-proprietários da Brookfield Energia Renovável, que na América do Norte já tem experiência com comunidades indígenas . Com isso, terão direito a 5% do lucro mensal, quando começar a produção de energia.
Gentil Beline estima rendimento em torno de R$ 170 mil mensais, que serão depositados em um fundo coletivo da reserva (como já acontece com a safra da soja, cuja plantação ocupa 3 mil hectares). O dinheiro é direcionado a melhorias na aldeia.
– O contrato será de 30 anos. Será a independência da terra indígena Xapecó – acredita Beline.
As usinas projetadas para a reserva são do tipo PCH, as Pequenas Centrais Hidrelétricas. São usinas de pequeno porte, com capacidade para gerar até 30 megawatts (MW) – o suficiente para abastecer cerca de 30 mil residências. O projeto prevê o alagamento de 98 hectares e estima-se que leve até quatro anos para começar a operar. Ainda está em fase de estudos de viabilidade ambiental, técnica e econômica, sem previsão para o início das obras.
Negociações, busca por novos projetos e análise de propostas para a reserva são acompanhadas por uma consultoria. As lideranças indígenas só permitem que haja a participação porque os consultores também são índios.
Ubiratan Maia saiu da aldeia onde vivia para estudar ciência política e advocacia. Agora, já formado, dedica-se a auxiliar os povos indígenas em formas de apostar no progresso.
– Nós queremos ser tão capitalistas como vocês e os antropólogos, os não índios. Queremos ser livres nas nossas escolhas. Não é possível que ainda se acredite no discurso de ONGs que vivem da miséria dos índios – declara o consultor indígena.
F
Experiências pelo país Os índios da reserva Xapecó se inspiram no modelo de vida adotado por duas grandes terras indígenas do país, em Rondônia e Mato Grosso. Veja: PARCERIA COM O GOOGLE
Em 2007 o Google aceitou investir no projeto dos índios suruí, em Rondônia. Ensinaram os jovens da tribo a usar o Google Earth e a criar e alimentar um blog, flagrando a ação de madeireiros ilegais. Foi a largada para se tornarem pioneiros em uma ação sustentável, seguida da venda de créditos de carbono. SOJA EM ESCALA COMERCIAL
Da área de 1,1 milhão de hectares em Mato Grosso, 15 mil são destinados pelos índios paresi ao plantio de soja, após parceria com fazendeiros. O lucro da safra era dividido meio a meio. A regra era aplicar R$ 5 a cada R$ 10 recebidos. Os índios hoje investem em equipamentos e contratação de funcionários.
JOÃO CARLOS TEDESCO pesquisador "A Funai não escuta os índios”

Diário Catarinense - Por que os índios desenvolvimentistas se distanciam da Funai?

João Carlos Tedesco - Precisa haver um diálogo com os índios, ouvir deles como eles querem viver. Ela não faz isso. A Funai tem uma postura isolacionista, parte do pressuposto de que índio para ser índio precisa viver da caça e da pesca. Só que esta não é a realidade dos estados do Sul. Os índios se modernizaram, muitos trabalham fora das reservas, têm ensino superior, carro, internet. Estão integrados e não vivem e nem querem viver como a Funai planeja.


DC - O senhor está dizendo que a Funai direciona ações a índios que não existem mais?

Tedesco - Advoga-se um passado. A Funai, antropólogos e determinadas ONGs advogam um passado com um sujeito que vive no presente. É um paradoxo, se quer voltar ao passado, mas não existem adeptos dessa dimensão. Então fica-se brigando por uma utopia, são desejos externos. Se quer que o outro esteja num lugar onde ele não quer estar. Isso tem gerado conflito: tanto entre índios e Funai, índios e fazendeiros e também entre os antropólogos.


DC - Qual é o papel dos antropólogos nesse processo?

Tedesco - O antropólogo é quem diz se a terra é ou não é indígena, não tem ninguém mais que diga. Como existe um conflito de ideologias, há cada vez mais dificuldade em entender a questão técnica. Os laudos são elaborados, em sua maioria, sem base científica. Nós analisamos vários laudos e percebemos que muitos se contradizem em fundamentação histórica, definição territorial, delimitação territorial. Então, como ajuizar algo que os próprios técnicos que trabalham com isso não estão em uníssono? Há problemas administrativos, metodológicos, conceituais e aí se cria o conflito e as coisas não se resolvem. O Judiciário não resolve, o Ministério Público briga entre si, os antropólogos não se entendem. Há um jogo de ausência de concordância.


DC - E qual é o impacto dessa ausência de concordância nos grupos indígenas?

Tedesco - Isso tudo impacta na eternização dos conflitos. A Funai consegue fazer a cabeça de determinadas lideranças indígenas, insistindo que as questões são passíveis de serem vencidas, nem que se tenha que ficar 20 anos lutando para que isso aconteça. É o que vemos hoje. Existem acampamentos indígenas de 15, 20 anos e os índios deles não vivem como nos discursos da Funai, preservando a cultura e a identidade. Ao contrário, as filhas trabalham de empregada doméstica nos municípios próximos e os homens vão para frigoríficos, metalúrgicas e construção civil.


DC - O que precisa ser feito para mudar esta situação?

Tedesco - A Funai definiu princípios equivocados e está totalmente fechada ao diálogo. Decidiu como tem de ser o índio brasileiro, sem diferenciar as regiões em que vivem e sem ouvi-los. E não escuta os índios.

Doutor em ciências sociais, João Carlos Tedesco estuda conflitos indígenas há mais de uma década. Para ele, a Funai assumiu um discurso isolacionista, com base num passado que não leva em conta as mudanças e o modo de vida atual dos indígenas.
Mural
A série mostra o crescimento da população indígena no litoral de SC, associado à duplicação da BR-101. A história se inicia em Morro dos Cavalos. A Funai usa a demarcação da terra aos indígenas como moeda de troca para liberar a duplicação. Qual a sua opinião sobre essa polêmica?