HISTÓRIA DE UM

ADOLESCENTE INFRATOR

Quando tava lá fora, achava que ia ficá só na mordomia e nunca ia ser preso. Minha mãe falava: "Uma hora tu vai caí preso". Eu dizia: "Ah, di menor não dá nada". O cavalo galopô e eu caí.

Mãe, ainda bem que não vou ser que nem ele né? (Quando crescer) quero ser uma boa pessoa - diz o menino de oito anos, com um sorriso no rosto.

Ah, não, pra vida errada de novo, jamais. Se forem me chamá, vô dizê: "Ô tô legal, não passaram pelo que eu passei de tá preso, né?".

A gente trata aqui de uma realidade dura. Só que depois de uma hora de atendimento, o adolescente vai voltar para a realidade dele. Então, a gente procura potencializá-los pela vontade deles, ressaltando que apesar das dificuldades que encontram podem seguir adiante - diz a assistente social Maurina Bohn.

POR QUE PERDIZ E JONAS

A identidade dos dois adolescentes citados na reportagem e de seus familiares foi preservada seguindo as orientações do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Mas para contar a história deles, resolvemos escolher nomes que tivessem uma relação com os jovens.

O adolescente de 17 anos que cumpriu internação de um ano recebeu o nome fictício de uma ave. Perdiz é uma ave visada para a caça. Costuma correr e esquivar-se dos caçadores com grande rapidez, utiliza-se do voo rasteiro, se esconde em meio aos obstáculos que encontra pela frente e procura esconderijos em fendas de rochas. O nome hebraico desta ave significa "chamador". Durante a vida pregressa, o jovem, assim como o pássaro, tentou esquivar-se e esconder-se. Por diversas vezes, fugiu de seus caçadores, no caso a polícia e os inimigos do mundo do crime.

Já o adolescente de 16 anos que foi apreendido no assalto com Perdiz, mas que não chegou a ser internado naquele momento, foi chamado de Jonas. O nome escolhido pertence a um personagem bíblico. O profeta Jonas teve medo de atender a um pedido de Deus e fugiu. Em uma viagem em alto-mar, acabou engolido por um peixe grande. Sentiu como se sepultado estivesse e se arrependeu. O adolescente que vem de uma família religiosa também se arrependeu, só que por diversas vezes continuou cometendo os mesmos erros.

 

JONAS É APREENDIDO PELA SEGUNDA VEZ

Como nunca havia respondido a um processo antes de ser apreendido com Perdiz no assalto à mão armada, Jonas recebeu uma punição mais branda: foi condenado a cumprir a Liberdade Assistida por seis meses. As profissionais do Creas, onde Jonas deveria comparecer uma vez por semana tiveram dificuldades em fazê-lo cumprir a sanção.

Alguns resgates foram feitos com o apoio da mãe até que Jonas aceitasse cumprir a medida socioeducativa. No início, ele foi bem. Participou de pelo menos seis encontros. Voltou a morar com a mãe durante esse período conforme o promotor havia orientado e estava frequentando a igreja com a família. Supostamente havia aceitado cumprir as regras estabelecidas pelo pai. Chegar em casa após as 21 horas estava proibido desde então.

Porém, nas semanas que seguiram, Jonas faltou ao atendimento e saiu de casa. Foi morar com uma namorada. O centro fez um comunicado sobre o descumprimento da medida ao juiz, que decidiu dar mais uma chance. Jonas retornou ao atendimento em março de 2015 e participou de mais sete sessões. Porém, desapareceu mais uma vez. A profissional responsável pelo atendimento dele acredita que Jonas voltou a usar drogas e está envolvido com o tráfico. O último contato com o adolescente aconteceu em maio de 2015.

Após inúmeras tentativas de resgate sem sucesso, em junho, a assistente social encaminhou um segundo comunicado de descumprimento de medida ao juiz. Jonas sofreria uma regressão de medida e seria internado no Casep. Não houve tempo para que o juiz assinasse a regressão. Jonas havia sido apreendido pela polícia mais uma vez após participar de outro assalto à mão armada. Ele já estava internado no Casep. O juiz da Vara da Infância e Juventude decidiu pela internação permanente de Jonas. Agora, ele será transferido para o Case, onde terá de cumprir a medida privativa de liberdade assim como aconteceu com Perdiz.

"AN” escolheu manter as falas originais dos personagens para evitar alteração no sentido das declarações.

Ela dava conselho pra saí dessa vida. Mais entrava por um lado e saía pelo outro. Eu saía dali e já ia robá.

Acompanhado do amigo, sente-se poderoso e manda as funcionárias entregarem o dinheiro. Tudo o que ele quer é pegar a grana e sair dali o mais rápido possível. Aquele dinheiro serviria para alguns luxos, ainda que durassem apenas uns três dias: drogas, um par de tênis novo e algum trocado para a mãe. Ele não pensa no amanhã. O que importa é o agora.

O que ele não esperava é que encontraria mais alguém armado na empresa escolhida como alvo e que começaria ali uma vida bem diferente daquela com a qual estava acostumado. Um policial ou guarda à paisana disparou um tiro contra ele. Ouviu mais um disparo enquanto tentava correr. O dinheiro ficou pelo chão. O nervosismo fez as pernas amolecerem e Perdiz caiu. Na queda, o braço fino não suportou o peso da arma que acabou disparando acidentalmente. Levantou-se e conseguiu correr sem ser atingido pelos disparos. O amigo pegou um atalho e ambos chegaram até o carro que os esperava a dois quarteirões. Ele apontou a arma na direção da cabeça do motorista - irmão do amigo e que supostamente não sabia do assalto - e ordenou: "Vai, vai, vai". Os dois adolescentes teriam solicitado ao rapaz de 22 anos que os levasse até a empresa para uma entrevista de emprego.

O rapaz que estava de motorista se apavorou e bateu em outro veículo. Já era possível ouvir as sirenes. "Corre, corre, corre". Ele pulou muros, tentou se esconder na vegetação. Viaturas da Companhia de Patrulhamento Tático e o helicóptero Águia da Polícia Militar rodeavam a área. Não tinha para onde fugir. Era o fim da linha.

Ele é Perdiz, um adolescente de 17 anos que começou a cometer atos infracionais há pelo menos um ano. Aos nove, parou de ir à escola, aos 11, já trabalhava vendendo pescado com o sogro. Isso mesmo. Aos 11 anos ele conheceu a primeira e única namorada, por quem é apaixonado até hoje. Ainda muito jovem,  Perdiz teve acesso fácil à primeira droga ilícita: a maconha.

Morador da periferia de Joinville, à beira do mangue, conheceu cedo os amigos da "quebrada". Nas andanças da rua que varavam a madrugada, ganhou o primeiro papelote de cocaína. Com o tempo, conquistou a confiança dos novos "amigos". A porta estava aberta, ele já fazia parte do mundo da rua.

O salário que recebia trabalhando com o sogro não era mais suficiente para manter o padrão de vida "imaginário" vivido pelos colegas. A oportunidade de exibir um carro ainda que roubado à molecada no bairro, usar drogas, vestir uma camisa ou um boné que ele nunca teria condições de comprar saltaram-lhe aos olhos. O caminho mais fácil para conquistar estes prazeres era roubar.

Perdiz não aprendeu o que é empatia e não sabe se colocar no lugar do outro. Por isso, cometer o primeiro crime não foi difícil. Ele é frio e não pensa nas consequências. Quer diversão, vida mansa e sair por aí livre como um pássaro.

Aprendeu a se esquivar da polícia, a correr e a se esconder. Das outras vezes que foi apreendido, voltou para casa. Na penúltima, recebeu uma medida socioeducativa. Deveria se encontrar com a psicóloga do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) uma vez por semana.

 

No dia seguinte, a dupla de adolescentes foi levada à Delegacia de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso. A segunda cela tinha ao menos um colchão velho. Receberam comida, prestaram depoimento à delegada de plantão e foram levados ao Fórum, onde ocorreria a audiência que definiria o futuro dos jovens infratores.

Jonas conta que saiu de casa porque tem diferenças com o pai. A última surra foi a gota d'água. Passou dias na rua, depois foi acolhido pela irmã, que logo não suportou os hábitos noturnos e desregrados dele e o despachou para a casa de outro irmão. Jonas é um dos seis filhos de uma família que trabalha com reciclagem.

Já Perdiz teria seis irmãos, não fosse a morte trágica de um deles. Ainda assim, a família é grande. Antes de ser apreendido, morava com o pai, a mãe e os irmãos mais novos. Os meninos costumavam dormir todos juntos, no mesmo quarto. A casa simples, à beira-mangue, foi construída em parte com madeira e outra parte de alvenaria pelo próprio pai que, entre um bico e outro, atua como servente de pedreiro.

Jonas foi mais longe nos estudos. Mas fazia dois meses que havia deixado de frequentar o módulo que une o 8º e o 9º anos em uma espécie de supletivo. Ele usa maconha desde os dez e começou a usar cocaína com 14 ou 15. Jonas não aceita a repreensão do pai porque ele também foi usuário de droga e levou o crack para dentro de casa quando Jonas ainda era criança. Segundo relatos da mãe, o pai largou o vício há dez anos e se converteu a uma igreja evangélica. O pai não quer que o filho trace o mesmo caminho que ele, por isso o repreende.

- Minha mãe sempre me apoiou, me deu conselho. Ela sente minha falta, chora. Sinto saudade. Me arrependo. Meu pai... Cada dia pior. Quando não era briga, era xingamento, me chamava de ladrão - desabafa Jonas.

Os pais de Jonas e Perdiz não sabem que a droga já faz parte da vida dos filhos.

Perdiz já havia participado de alguns furtos, mas aquele era o primeiro assalto à mão armada. Foi detido outras vezes e acreditava que para "di menor não dava nada". Fazia apenas três semanas que havia começado a cumprir a medida socioeducativa quando teve a ideia de assaltar a empresa que um dia deu o sustento ao irmão que tanto idolatrava.

O irmão foi morto aos 19 anos em uma briga de pescadores, esfaqueado por outro pescador, na frente dele, do pai e de outros dois irmãos menores. Perdiz diz que a revolta foi grande e que, desde então, passou a não se importar mais com a própria vida.

Após o assalto atrapalhado, Perdiz foi cercado pelos policiais. Antes de ser levado à Central de Polícia junto com o amigo de 16 anos e o irmão do amigo, disse que levou uma surra.

- Deram cada bicuda, que ele saía do chão - relatou o amigo adolescente, assustado, que foi apreendido pela primeira vez.

O olho inchado e as marcas no rosto e nas costas de Perdiz não negam o relato. Desta vez, a "vida loca" acabou e ele não voltou para casa.

Penso muito em mudá de vida, saí desse crime porque não compensa, né? Toda veiz que eu roubei, nunca tive nada. Tudo o que o cara consegue da vida errada, perde rápido. Não vale a pena, né? O inimigo te dá com uma mão e tira com as duas depois. Graças a Deus, não conseguiram tirá a minha vida ainda - avalia Perdiz.

Dona Dolores espera que Perdiz seja internado, pois não suporta mais vê-lo perdido no crime e apanhando da polícia na rua.

- O meu (filho) caiu porque é caco mesmo. Ele se arrepende hoje e amanhã tá fazendo de novo. Eu prefiro que ele vá pro CIP (Casep) do que fique solto e apronte. Não vê que anteontem fui lá na delegacia, tirei ele (por crime de furto) e ontem ele já aprontou?

Ela entende a gravidade das infrações cometidas pelo filho e que ele deve ser responsabilizado por isso. Porém, o amor de mãe não aceita a repreensão agressiva e reprova a surra que o adolescente supostamente levou dos policiais.

- Ele tá bem machucado, né? Cadê as leis dos adolescentes? Por que pai e mãe não pode dá um tapa e eles podem espancar que nem espancaram o Perdiz? Por mais que ele teja errado, né?

A mãe, a irmã e a namorada de 14 anos de Jonas também aguardam ansiosas no corredor do terceiro andar do Fórum. Esta é a primeira vez que dona Esperança vai acompanhar uma audiência do filho adolescente. Ela é uma mulher de fé, mãe de seis filhos, que lida com o temperamento difícil do marido e acredita na recuperação do filho, que é considerado a ovelha negra da família.

- Nós somos evangélicos, então meu marido não aceita nada de coisa errada. Daí a gente descobriu que ele tava fumando maconha e a escola sempre reclamando. E nós sempre falava: "Meu filho, não é assim". E ele dizia: "Tá bom, tá bom". Prometia que não ia fazer mais. Outra vez, quando veio uma reclamação do colégio, ele levou uma surra bem grande. Meu marido não é de bater, ele conversa primeiro. Mas, por causa daquele surra, no outro dia fui procurar (Jonas), e já tinha fugido.

Os adolescentes infratores chegam ao Fórum com as mãos livres de algemas e acompanhados de duas policiais. Eles serão ouvidos pelo Ministério Público. Logo na primeira audiência do processo, uma medida socioeducativa será aplicada.

- Normalmente, eles falam a verdade porque acham que não vai acontecer nada. Quando tem maior junto, envolvido no crime, eles costumam trazer a autoria para si - antecipa o promotor de justiça da área da Infância e Juventude, Sérgio Joesting.

O primeiro a prestar depoimento é Jonas. O promotor diz que vai pensar na possibilidade de liberá-lo da internação. Como foi apreendido pela primeira vez, terá a chance de cumprir uma medida socioeducativa mais branda.

- Por que entrou nessa se não tem passagem nenhuma? Vai dizer que não sabia que o Perdiz é complicado e já tem várias passagens? Inclusive tem suspeita de ter incendiado um ônibus. Vai trabalhar, cara, ou acha que pode tirar dinheiro dos outros? - repreende o promotor durante o depoimento.

Jonas recebe como punição uma medida chamada de Liberdade Assistida. Terá que se apresentar no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) uma vez por semana durante seis meses. Lá, ele e a família serão acompanhados por uma equipe de assistentes sociais, psicólogos e educadores. Os profissionais do Creas trabalham temas como o autoconhecimento, empatia, cidadania e sexualidade. O objetivo é identificar as causas que levaram o adolescente a cometer o crime e procurar mostrar novos caminhos e oportunidades.

Ocolchão sobre o qual passará as próximas noites cobre a cama de concreto. A porta do quarto é de aço e tem uma abertura estreita que serve apenas para comunicação entre os adolescentes infratores e os agentes socioeducativos. Buracos minúsculos na parede permitem a entrada de pouca luz e ar.

No verão, o quarto, que pode ser comparado a uma cela, é quente e abafado. No inverno, úmido e frio. Além do colchão, há roupas de cama e uma coberta. O Casep de Joinville permite apenas dois adolescentes por cela, por causa do número reduzido de agentes disponíveis para cuidar dos infratores.

Logo na primeira semana de internação, Perdiz encontra um velho conhecido com quem arquiteta um plano de fuga. O pensamento de permanecer preso por tempo indeterminado e a distância do vício perturbam a mente dele. Perdiz quer sair dali a qualquer custo. A ideia surge durante uma partida de tênis de mesa em um dos momentos de recreação dos adolescentes. Atividades esportivas e artísticas aliadas ao ensino regular ocupam o tempo ocioso e a mente dos garotos, além de ajudar a extravasar a energia que está a mil por hora nessa idade.

Perdiz observa um pequeno ferro frouxo embaixo da mesa. Por dois ou três dias, ele se esforça para quebrar o objeto e, sem que ninguém perceba, o esconde entre o uniforme amarelo e o corpo magro. Durante a semana, o ferro é amolado na parede do quarto. O objeto se transforma numa arma pontiaguda.

Onoticiário dizia que o rapaz responsável pelo ataque havia entrado no centro de internação há 15 dias. As pernas de Dolores estremeceram. Correu para a frente da televisão e reconheceu Perdiz pelos pés em uma imagem da reportagem.

- Eu vi o pé dele e já conheci. Qual é a mãe que não conhece o seu filho? Até debaixo d'água, né? Já pensei: "Meu Deus, o Perdiz aprontou de novo, o Perdiz esfaqueou o cara lá dentro, o Perdiz qué arrumá pra cabeça, qué morrê lá dentro". Entrei em desespero aqui. Depois me acalmei e me joguei pra lá. Pra ver se falava com ele ou sabia alguma notícia.

Dolores procurou o Casep e confirmou o envolvimento do filho na tentativa de fuga. Também descobriu que Perdiz estava de castigo e não poderia ter contato com ele pelos próximos 30 dias. Mais um momento difícil na vida de Dolores. Porque mãe é mãe e nunca deixará de ser por causa dos erros do filho. O sofrimento não bate à porta, ele simplesmente entra sem pedir licença. Corta o peito e fere a alma. Dolores chora e reza pelo dia em que o sentimento devastador dará adeus e deixará a sala de visitas. Se é que esse dia chegará.

Ela tem receio de que o filho invista em uma nova tentativa de fuga, pois não está acostumado ao cárcere. A liberdade veio prematura demais na vida dele.

- Ele não é de ficar preso, nunca teve preso. Ele não fica em casa, só vem pra dormir. Às vezes, ele pega a bateira (barco) do colega emprestado, sai por esses rio aí. Na verdade, o que ele não apanhou de mim e do pai apanhou dos policial na rua. Tudo isso é uma lição pra ele aprendê. Eles tiveram muita liberdade. Quando tinha sete anos, já fugia da escola. Pulava o muro e fugia.

Dolores também lembra como foi amargo o último Dia das Mães. Três dos sete filhos não sentaram à mesa naquela data. Perdiz estava internado no centro socioeducativo. O filho de 19 anos estava morto fazia um ano. O mais velho, de 21, foi preso justamente naquele dia porque foi flagrado dirigindo um carro que teria sido furtado por Perdiz. Dias depois, saiu da cadeia e respondeu ao crime em liberdade.

- Tenho sofrido tanto, tanto, meu Deus. A minha comida do Dia das Mães foi lágrima. Aí me lembrei daquele meu filho que morreu. Todos os dias das mães ele tava aqui na mesa com nóis, comendo.

Mesmo após prestar depoimento sobre o assalto à mão armada à delegada de plantão no dia em que foi apreendido e ao Ministério Público no dia seguinte, ele precisa repetir o relato mais uma vez. Só que agora será ouvido pelo juiz da Vara da Infância e Juventude.

As audiências que envolvem menores de idade só ocorrem se um responsável pelo adolescente estiver presente. E lá estava mais uma vez dona Dolores. Ela percorreu o trajeto de alguns quilômetros da casa onde mora até o Fórum de bicicleta e com a filha caçula na cadeirinha. Dolores precisou levar a pequena porque não tinha com quem deixá-la. Estava ansiosa, pois reencontraria Perdiz após 18 dias sem nenhum contato.

- Decerto tá com a cabeça raspada, porque eles iam raspar a cabeça dele... E antes de fazer isso (tentativa de fuga), ele disse pro meu marido que não ia fazer mais nada, que ia sair de lá (do Casep) transformado - resmunga, desapontada.

Após alguns minutos de espera, é possível ouvir o barulho de algemas arrastando no chão. É Perdiz subindo as escadas acompanhado de um agente socioeducativo. Ele veste o uniforme amarelo e está com a cabeça raspada, como a mãe imaginava.

- Olha que magrinho que ele tá, né - observa a mãe de Jonas, que também acompanha o filho no Fórum.

As algemas prendem as pernas e os braços do adolescente. Dolores chora feito criança. A pequena no colo da mãe não entende o que está acontecendo, mas sorri ao reencontrar o irmão. Perdiz também se emociona ao rever a mãe e a irmã, não resiste à emoção e chora. O abraço apertado e o beijo estalado no rosto do filho acalmam o coração da mãe. Os dois conversam. Ela questiona o que aconteceu, pergunta se ele apanhou. Ele responde positivamente com a cabeça. Dolores implora ao filho que tome juízo e sossegue dentro do centro de internação. Explica que ele precisa se comportar e ser forte para aguentar o cárcere. Perdiz concorda, pede perdão e promete tomar jeito.

 

Asua chegada ao Case não foi muito bem-vista por um dos internos. Apesar da camaradagem nas ruas, o colega que participou do episódio do incêndio no ônibus não ficou contente em rever o "cagueta" da turma. Perdiz recebeu esse apelido porque supostamente teria revelado os nomes dos parceiros que participaram do crime em juízo. Perdiz acaba de descobrir que pode ter quebrado uma "regra" dentro do mundo crime.

O juiz garante que Perdiz não comprometeu os garotos. Segundo ele, o trio foi identificado por meio de imagens da câmera de segurança que havia dentro do ônibus. Ainda assim, os moleques não perdoaram o fato de Perdiz ter confirmado a participação dos demais.

Com o objetivo de evitar violência contra o calouro no sistema, a coordenadora do Case, Simone Müller, o separou do agora inimigo. Ele está em uma casa chamada "seguro", onde ficam os adolescentes que sofrem algum tipo de ameaça.

- Tem mais trêis aqui. São de boa, eles são "seguro" também. Um é duque (estuprador). Daí tem um que chegô novo agora e vai subi hoje ou amanhã lá pra cima (outras casas). O outro seguro não sei o que é (qual o crime que cometeu).

No Case, os adolescentes ficam separados em pequenas casas com capacidade para cinco adolescentes. Nessas habitações, as celas são individuais e há um espaço de convivência compartilhado pelos cinco internos com televisão e duas mesas grandes de concreto utilizadas para as refeições e atividades de recreação. Os grupos são separados em todas as atividades do centro, sejam elas pedagógicas ou esportivas. Os internos nunca ficam todos juntos.

Esta é uma forma de evitar rebeliões, troca de experiências entre os diversos crimes e possibilita que o número reduzido de agentes socioeducativos controle os infratores com mais eficiência. O Case de Joinville tem capacidade para 70 internos, mas, por causa do baixo efetivo, recebe no máximo 40 adolescentes.

 

Numa noite de insônia, Perdiz quebrou a lâmpada do quarto e com os pedaços cortou o peito e os braços. Ficou em silêncio por um instante. Os ferimentos começaram a arder. Chutou a porta e pediu socorro. Os agentes o levaram a um pronto-atendimento, onde foi atendido e liberado em seguida. Os cortes foram superficiais.

- Meu Deus, viajei, sô muito loco. Tem horas que dá desespero no cara, né? Imagina, o cara preso. Tem horas que não tem nada pra fazê também. Dá uma depressão. O cara pensa na família. Tem dia que passa de boa, mas tem dia que demora a passá.

Na mesma época em que Perdiz supostamente tentou suicídio, os profissionais do Case ficaram em alerta. Havia informações de que um irmão dele circulava de carro pelas redondezas. Levantou-se a hipótese de que a atitude do adolescente poderia ter sido premeditada com o objetivo de fugir. O fato ocorreu durante uma onda de atentados, por isso, todos os agentes estavam em alerta, pois havia ameaça contra eles e receio de rebelião nas unidades prisionais.

Depois desse episódio, Perdiz se aquietou. Passou a se comportar, com exceção de algumas desavenças com os colegas da casa uma vez ou outra. Está cursando a 5ª série do ensino fundamental e chegou a participar do curso de mecânica.

- Só consigo fazê os negócio porque a professora ajuda. Tô recuperando devagarinho. Eu tava na 4ª, daí lá no Casep eu fiz uma prova e fui pra 5ª (série).

Em dois quadrinhos confeccionados durante as aulas de artesanato com dobraduras - uma das atividades do Case -, Perdiz expõe as fotos do filho em uma imagem de ultrassom e da namorada com o barrigão sobre a mesa. Ele mostra os porta-retratos com orgulho. Levou um susto quando soube, mas está feliz. Ainda que precoce, vai realizar o sonho de ser pai. A responsabilidade começa a bater à porta, por isso é hora de acertar os ponteiros da vida.

- Falei com ela esses tempos, quarta-feira agora na audiência. Ela tá gravida. Meu filho tá lá (na foto). Vô sê pai, por isso quero mudá de vida. É um menino. Nem imaginava isso, foi surpresa.

A descoberta da paternidade o deixou ainda mais ansioso com a prisão. Quer sair logo do cárcere, pegar o filho no colo, reencontrar a ex-namorada. Eles terminaram o relacionamento antes de Perdiz ser internado. Por enquanto, ele terá de acompanhar os novos acontecimentos de longe, apenas com as notícias levadas pela mãe nas visitas de domingo. Não poderá sair para acompanhar o parto.

- Ah, por isso quero trabalhá pra dá um bom exemplo pro meu filho. Agora, tenho que pensá em mudá de vida, né? Meeeeeu, vô tá preso ainda. Meu Deus!

Perdiz está na expectativa de deixar o Case daqui a seis meses. Como completa 18 anos em abril, espera que o bom comportamento o ajude a conquistar a liberdade.

- Meu Deus do céu. Cadeia pesa na vida do cara. Muito tempo preso, né? O cara fica imaginando: "Meu, vô saí daqui a quanto tempo ainda? Nunca puxei uma cadeia na minha vida. Imagina, nunca fiquei um dia preso na minha vida.

O jovem diz que não quer voltar ao mundo do crime e muito menos voltar a fazer parte do sistema. Sabe que se for apreendido novamente, o destino será o cárcere dos adultos, um lugar ainda mais hostil. Ele tem esperança de que a chegada do bebê ajude a reatar o namoro e a recomeçar uma vida honesta. Ele diz que quer cuidar do filho e voltar a trabalhar com o sogro. Com relação à profissão, carreira, não tem muita noção. É realista e sem ambição. Pretende voltar a trabalhar com pescado.

Se o Centro de Atendimento Socioeducativo tivesse efetivo suficiente para manter todas as vagas em funcionamento, possivelmente Perdiz ficaria mais tempo. No entanto, a unidade precisa oportunizar a entrada de outros adolescentes infratores, e, para isso, tem que atuar com base em prioridades. A diretora da unidade sugeriu pelo menos quatro nomes para a liberação. Entre as opções, o juiz da Vara da Infância e Juventude entendeu que Perdiz seria o mais preparado para retomar o convívio em sociedade.

O alvará de soltura chegou no início da tarde. Sem saber que seria liberado, Perdiz concedeu a última entrevista à reportagem de "A Notícia" dentro do sistema socioeducativo. Mais encorpado e com os cabelos bem curtos, aparenta estar mais maduro. Melhorou um pouco a fala e aprimorou a linha de raciocínio. Em seu discurso, afirma que deseja mudar de vida. Se realmente honrará com o compromisso, só o tempo dirá.

Perdiz recorda os passos que o levaram até a internação. Agora, revela que a primeira droga (maconha) lhe foi apresentada pelo falecido irmão quando ainda era muito jovem. Aos 14, lhe ofereceram a cocaína em uma festa rave. Viciado na cocaína, passou a roubar. Ainda lembra do primeiro crime. Furtou uma arma de fogo em um estabelecimento comercial. Sem saber o que fazer com ela, a levou para casa. Só se deu conta de que poderia ter provocado uma tragédia quando um dos irmãos pequenos encontrou o revólver dentro da gaveta. Outros furtos e roubos foram praticados na sequência até o assalto que o levou à internação.

EX-NAMORADA NÃO
QUER RECONCILIAÇÃO

GALERIA CASEP

A primeira droga foi apresentada a Jonas pela irmã mais velha. Na escola, conta que também teve a chance de propagar o vício. Na rua, participava das "correrias", ou seja, traficava drogas para dar conta de alimentar o vício. Fumava uma média de 20 cigarros de maconha por dia. Profissionais do Creas, que prestaram atendimento a Jonas tiveram conhecimento sobre o uso de cocaína e suspeitam que ele já tenha fumado crack.

- Nóis ganha cocaína. Os "camarada" dão pra gente. Na primeira vez que a gente foi (roubar), comprei cocaína. Tu lembra (Perdiz)?

A escola da rua passou a comandar a vida dos amigos. Perdiz, não escondia a vida que levava. Arma, moto e carro roubados entraram dentro de casa. Não sofreu repreensão firme dos pais contra as infrações cometidas. Não que a mãe aceitasse a vida criminosa do filho, mas sentia-se impotente para agir. Sem orientação e apoio, com mais três crianças pequenas para sustentar, ela deixou o tempo passar. Tentou aconselhar o filho com a sua voz mansa, mas o garoto não deu ouvidos.

- Ele diz: "A mãe viaja. Pra eles, a mãe e o pai só viaja, né" - lamenta ela.

Os dois amigos sempre saíam de casa sem hora para voltar. Saíam para "dar uma banda" no Parque da Cidade, fumar um "beck", ouvir um som. Procuravam o lugar onde sentiam-se aceitos e importantes.

- Tipo, no começo nóis não era nada. Não tinha arma, não tinha nada. Nóis não sabia nem o que era um assalto. Daí, nóis ia lá pedir dinheiro, se alguém batia em nóis, os guri defendiam. O que precisasse, era só pedir que eles defendiam - revela Jonas.

Durante a conversa na delegacia, Perdiz conta que participou de uma das ondas de atentados comandadas pelas cadeias e que assolaram o Estado de Santa Catarina. Bastou um convite para ajudar a atear fogo em um ônibus em Joinville.

- Na real, eu nem tava na intenção. Saí de casa pra ir na padaria. Foi na hora que eu encontrei os dois guri na esquina e eles falaram: "Ô, vamo botá fogo no ônibus?". Daí eu falei: "Ô, demorou". Só apoio, né, porque na cadeia tavam batendo muito, né? - acredita Perdiz.

- Tavam batendo muito nos presidiários e tem altos conhecido nosso lá dentro, tem gente que dá a vida por nóis lá dentro. Eles pedem apoio e nóis ajuda, né? Sempre fortaleceram nóis. Sempre ajudaram. Quando tavam lá fora, nunca negaram nada - defende o amigo Jonas.

Apesar do falso glamour vivenciado na rua, Perdiz tem seus momentos de reflexão e, no fundo, sabe que o fim do caminho que escolheu não é tão glorioso quanto parece.

 

Quando é instigado a pensar um pouco mais sobre a vida louca que leva, como ele próprio define em seu perfil no Facebook, sabe por que é difícil de trilhar um caminho diferente daquele que conhece.

- A dificuldade é assim, ó. Eu tava acostumado a trabalhá, né? Ganhava R$ 800, mil real por mês. Aí, tu para pra pensá no mundo do crime. Pô, faço um assalto já tiro num dia o que eu posso ganhá num mêis. Só que não dá trêis dias. Gasto tudo com bobiça, compro maconha pra fumá, dou um dinheiro pra minha mãe, né? Ela nem sabe o que é. Mais nessa vida aí o cara não tem felicidade. Só amargura e tristeza.

Quando Jonas terminar de cumprir a medida, o Creas enviará um relatório à Justiça. Com base na avaliação do Creas e do Ministério Público, o juiz da Vara da Infância e Juventude, Márcio René Rocha, decidirá se Jonas está pronto para deixar o sistema ou precisa cumprir mais alguma medida socioeducativa. Se Jonas desistir do atendimento antes do tempo determinado, corre o risco de sofrer uma punição mais severa. O juiz pode optar pela regressão do regime. Nesse caso, ele pode vir a ser internado em um Centro de Atendimento Socioeducativo Provisório (Casep).

Perdiz é o próximo a prestar depoimento. Logo no início da audiência, o promotor deixa claro que ele receberá uma punição mais dura. Será internado no Casep e depois será encaminhado para um Centro de Atendimento Socioeducativo (Case), onde a internação pode durar de seis meses até três anos. Mesmo que o adolescente complete a maioridade, pode permanecer internado até os 21 anos. Tudo depende do comportamento e da evolução dele nas atividades desenvolvidas no centro.

- Agora tu vai ter bastante tempo pra botar a cabeça no lugar. Depois que sair do nosso sistema (socioeducativo), se fizer um "ai" aí fora, vai preso e vai para o presídio. Daí tu vai ver o que é bom pra tosse. Ali (Casep) também não é coisa boa, não, não pensa que vai pra um spa, não, tá muito enganado - repreende o promotor.

Do Fórum, Perdiz retorna para a delegacia, onde ficará por até cinco dias aguardando uma vaga no Casep. Antes de ser algemado, se despede da mãe e do amigo, pois não sabe quando os verá novamente. A policial prende as mãos dele para trás. Dolores se desespera. Em meio ao choro, sussurra: "Meu filho, meu filho".

Perdiz entra no elevador do Fórum acompanhado apenas das policiais. A porta se fecha. Começa uma nova etapa para o garoto "vida loca" que se achava esperto demais para um dia cair nas mãos do sistema. Desta vez, Perdiz perdeu.

Naquela noite, já passa das 22 horas, quando o colega de cela pede ao agente de plantão para levá-lo ao banheiro. Um agente acompanha o adolescente enquanto outro permanece de guarda na porta do quarto. Ao retornar e abrir a porta de aço, o carcereiro é atacado por Perdiz. O garoto é veloz, golpeia a cabeça do agente com o objeto. Porém, o físico magro não resiste à força do vigilante, que consegue se desvencilhar do ataque e imobilizar os adolescentes.

A dupla planejou como sair da cela, mas não tinha ideia de como conseguiria burlar todas as grades de proteção do Casep até chegar à rua. A ideia frustrada de fuga se transformou num pesadelo para Perdiz, que não está acostumado ao cárcere e até então era habituado a voar rasteiro pelas ruas do seu bairro.

Perdiz foi punido com um castigo. Ficou trancado por 30 dias em uma cela separada do convívio com os outros adolescentes sem sair para nenhuma atividade. Por 30 dias, ficou sentado sobre a cama de concreto por 16 horas diárias, pois o colchão era levado apenas à noite para dormir. Por 30 longos dias, ficou ainda mais isolado do que já estava. Visita ou ligações da família, nem pensar.

Foi aí que o jovem Perdiz se deu conta de que aquele era o seu novo lar e que deveria se acostumar com a rotina regrada. Sair da linha agora teria consequências. Obediência é o comportamento que deve adotar caso queira conviver com os demais, ainda que num espaço pequeno e fechado, longe das andanças da rua.

- É, foi tudo planejado, né? Cabeça fraca, daí nóis partimo pra cima dele, né?  Achei que ia dá certo de fugir. A gente fez um espeto de ferro e nóis fomo pra cima dele. Depois se arrependemo, né? Imagina, eu agredi um cara, nunca passou isso pela minha cabeça.

O primeiro mês internado não foi dos melhores. Perdiz começa a entender que estar dentro do sistema não é tão simples e se preocupa com o futuro.

- Uma hora o cara sai daí (internação) né? Quando saí daqui quero ficá bem sossegado, né? Trabalhá de novo. Qualquer serviço tá bom, né? Ganhando bem. Antes trabalhava de vendê peixe em Curitiba. Meu sogro pegava peixe da Barra do Sul. Trazia tudo congeladinho, nóis descarregava e ia todo dia pra Curitiba. Trabalhei uns quatro anos. Desde os meus 11 anos comecei a trabalhar com ele.

Além de trabalhar muito jovem, Perdiz também se relacionou muito cedo com a filha do patrão. O nome da menina de pele de seda e cabelos claros, de família de classe média, está pichado na parede do quarto na casa da mãe. Lembra dela com carinho e prefere que o destino decida o fim dessa história.

- Nunca mais vi ela, né? Gostá, ainda gosto, vivemo quase cinco ano junto, né? Desde pequininho namorando. Saindo daqui, quero só voltá minha vida, né? Se for pra dar certo de nóis voltá, vamo voltá, né?

Quando questionado sobre a possibilidade de os amigos da rua voltarem a procurá-lo, fica sério e reflete:

- Ah, não, pra vida errada de novo, jamais. Se forem me chamá, vô dizê: "Ô tô legal, não passaram pelo que eu passei de tá preso, né?".

Se a afirmação de Perdiz é da boca para a fora? Ainda é cedo para saber.

 

 

Missão cumprida, é hora de voltar ao cubículo no Casep onde ficará por pelo menos um mês até que ocorra a transferência. Foi a última vez que Perdiz viu o amigo Jonas, que foi apreendido com ele.

Mãe e filho também se despedem. Mais uma vez, a tristeza toma conta do coração de Dolores. Perdiz desce as escadas arrastando as algemas que mal dá conta de carregar e sai pelos fundos do Fórum.

A mãe vai embora pela porta da frente. Coloca a caçula na cadeirinha, sobe na bicicleta e vai embora com os olhos ainda marejados. Ela precisa de forças para repetir a maratona. Afinal, o filho ainda tem que ser ouvido outras vezes em função de outros dois processos que responde por furto e por ter incendiado o ônibus durante a onda de atentados em Santa Catarina.

 

Mais uma vez, a mãe estava preocupada que o filho pudesse ter levado uma surra por ter ferido o agente socioeducativo durante a tentativa de fuga. Ela falou sobre a possibilidade com o filho e ele contou em voz baixa o que supostamente aconteceu depois.

- Ficam fazendo essas burradas, a gente não sabe o que se passa lá dentro, porque eles lá (do Casep) não falam pra gente. Ele (Perdiz) diz que depois que aconteceu isso aí (tentativa de fuga) levaram ele três vezes pra dentro do banheiro pra bater nele. Mas quem faz não vai falar, né? Aí eles ameaçam ele pra não contar. Ele contou ali pra mim e falou: "Ó, mãe, não fala nada porque, se eles souberem, vão fazer coisa pior". Mas agora vou ficar preocupada. Vai saber se tá dormindo, se tá apanhando. Comida lá ele come direto, comida boa, na hora certa. Tem as coisas que a gente leva também, bolacha, maçã, laranja.

Perdiz entra na sala de audiências de cabeça baixa. Desta vez, ele está acompanhado de uma advogada da Defensoria Pública, pois tem o direito a ampla defesa. O promotor de justiça também está presente na sessão. O garoto responde às perguntas do juiz e conta como foi o assalto sem mudar uma vírgula. Nega que já tenha experimentado outro tipo de droga além da maconha. Durante o depoimento, a irmã pequena fica impaciente. Quer sair do colo da mãe. Esperneia, chora. Dolores se levanta, sai da sala para acalmá-la e retorna depois.

A sentença é definida e o juiz decide que Perdiz permanecerá internado por pelo menos seis meses. Para cumprir a medida, deverá ser transferido a um Centro de Atendimento Socioeducativo (Case). Durante a internação, deverá participar de atividades curriculares e será avaliado pela equipe de profissionais do centro. Ao final dos seis meses, a avaliação do Case e do Ministério Público será encaminhada ao juiz. Com base nos dois pareceres, o juiz decide se o jovem já pode retornar ao convívio social ou precisa ficar internado por mais seis meses. A prisão pode durar até três anos, ainda que ele complete 18, pois é permitido que o jovem infrator fique dentro do sistema até os 21 anos. As avaliações ocorrem a cada seis meses.

Ele disse que 6 horas da manhã eles levam café e tiram o colchão dele, daí só às 10 horas (22 horas) que levam o colchão de novo pra ele dormir.

Não consigo dormir, nem tomando remédio. Durmo mal pra caramba. Fico mais pensando, né? Meu Deus, do jeito que eu quero saí daqui, eu sou muito ansioso.

 O teu melhor prêmio será sair de cabeça erguida pela porta da frente e nunca mais voltar - encorajou uma das  agentes socioeducativa.

GALERIA CASE

A rotina é tranquila. Além do ensino regular, há atividades de artesanato e curso de mecânica. Práticas esportivas ajudam a gastar energia. Os infratores também podem jogar baralho quando estão na sala de convivência. Estão trancados em uma sala fechada, no entanto, há um espaço maior de circulação. A música no rádio e os jogos de mesa ajudam a passar o tempo.

As atividades começam logo cedo para evitar tempo ocioso. Os adolescentes são acordados às 7 horas da manhã. Tomam café, escovam os dentes e arrumam o quarto. Depois, iniciam os estudos disciplinares e, após o almoço, participam das atividades extracurriculares. No fim da tarde voltam às casas. Assistem TV, tomam banho, fazem a refeição e permanecem no espaço de convivência da casa. Só depois, cada um volta para a sua cela individual, onde recebem o último lanche do dia. Depois disso, as luzes são apagadas. O silêncio toma conta pois é hora de dormir.

No quarto há uma cama de concreto com um colchão. A Bíblia aberta em cima da escrivaninha, também de concreto, não costuma ser lida, mas está ali ao menos como forma de proteção. Há um banheiro individual com privada e chuveiro separado por uma parede. Buracos de ventilação ajudam a circular o ar no quarto. "É o nosso ar-condicionado", brinca.

Perdiz está tomando remédio para dormir. Os colegas que convivem na mesma casa também tomam. Mesmo com a ajuda do medicamento, ele sofre com insônia.

- Agora tenho que segui a vida pra frente. Penso em trabalhá, vendê peixe, pegá caranguejo. Minha rotina é isso. Desde pequeno, pegava caranguejo no mangue.

Perdiz espera não retomar as amizades do crime. Sabe que a influência é grande e pode servir de trampolim para voltar a ocupar uma "jégua" - como é chamada a cela pelos adolescentes. Ele diz que também tem amigos honestos e que estes foram os únicos que se preocuparam em visitá-lo outro dia em uma audiência no Fórum.

- Abracei eles, saudade, né? Isso é amigo, os outros nem lembram do cara.

Perdiz nunca mais teve contato com Jonas. Nem sabe por onde anda o amigo que foi apreendido com ele no assalto. Quando conquistar a liberdade outra vez, Perdiz pensa em começar uma vida nova ao lado do filho.

- Ah, meu cenário, quando saí daqui quero pegá ele no colo, fazê brincadeira. Meu Deus, quero sê um ótimo pai pra ele.

Após conversar com a reportagem, Perdiz mostra a cela onde está vivendo e ao se despedir, diz com um sorriso no rosto: "Valeu, tudo de bom pra vocêis".

Jovem, bonita e vaidosa. Mãe aos 16 anos. Apesar da pouca idade, viveu muitas experiências. Engatou o namoro com o garotinho que trabalhava com o pai ainda criança. Como o próprio Perdiz descreveu: "Naquela época, (a gente) não sabia nem o que fazia". Os pais aceitaram o relacionamento precoce, pois sentiam apreço pelo garoto. "Pra mim ele é como um filho", diz a mãe da jovem. Quando Perdiz se desviou do caminho, os pais da namorada não aceitaram Perdiz nos negócios da família.

O cuidado da adolescente com o filho, fruto do relacionamento com Perdiz, é evidente. Com o bebê no colo, ela conversa e reforça o amor que sente ao pé do ouvido. É cuidadosa e sabe da responsabilidade. Faz questão de demonstrar o amor de mãe em seu perfil nas redes sociais, postando fotos fofas do filho, muito parecido com o pai. Em contrapartida, não quer saber do ex-namorado. O sofrimento que passou ao lado de Perdiz a fez perder as esperanças no relacionamento.

- Não quero mais saber dele. Não adianta, nunca vai mudar - lamenta.

Foi ela quem tomou a iniciativa de pôr um fim ao relacionamento conturbado pouco tempo antes da apreensão de Perdiz. Percebeu que o mundo escolhido por ele o consumiu e o transformou em alguém cujo comportamento reprovava e não queria mais por perto. A jovem conta que fez de tudo para mudá-lo, aconselhou e implorou para que deixasse a vida bandida. Após dezenas de tentativas, desistiu. Agora, deseja seguir em frente apenas com o filho e o apoio da família.

Apesar da decisão firme da garota, a mãe dela ainda sente muito carinho por Perdiz. Por isso, ela e o marido darão uma nova chance ao jovem quando ele sair do Case. Ele terá o emprego de volta desde que leve uma vida honesta e fique longe do crime. Se pisar na bola mais uma vez, não terá nova chance, jura a mãe da garota.

Dolores vai até a casa da ex-namorada do filho toda semana para ver o neto. Aproveita cada segundo perto do bebê. Afinal, ele é a esperança de vida nova para o próprio filho. A família de Perdiz não mora mais no mesmo bairro, mudou-se para outra área de invasão, com o objetivo de evitar que o filho sofra represálias quando sair da internação.

- Tão dizendo que vão matar ele.  A mudança também serve para evitar as velhas amizades de Perdiz - conta a mãe de Perdiz.

- Eu sempre disse pra Dolores: "a culpa é dos pais". Porque o Perdiz trouxe arma e coisa roubada para dentro de casa e eles deixaram.

Dolores ouve a repreensão da mãe da ex-namorada de Perdiz e não responde. No fundo, sente-se magoada com as palavras, pois nunca desejou que o filho se envolvesse com o crime. Embalando o neto de um lado para o outro, explica que a rebeldia do filho começou cedo, quando ele fugia da escola nas séries primárias e se estendeu na adolescência, quando saía de casa sem hora para voltar.

 

A VOLTA PARA CASA

- Naquele dia, achei que ia sê liberado da delegacia. Mas quando o promotor me mandou de volta, meeeu, foi difícil. Aí mesmo que eu vi que o crime não compensava.

O castigo que recebeu nos primeiros dias de internação foi igualmente inesquecível. A tentativa de fuga frustrada acabou pesando na caminhada. Perdiz lembra que cogitou a possibilidade de desistir do plano, mas como já havia firmado um acordo com outros internos, recuar seria covardia.

- Depois, nem queria mais fazê isso, mas tinha dado a palavra pros guri. E a palavra dentro da cadeia tem que cumprir. O castigo depois foi coisa pra nunca mais esquecer.

Nos primeiros meses no Case, após a transferência, Perdiz ainda deu trabalho. De acordo com a assistente social, a notícia do nascimento do filho foi um divisor de águas.

- No começo, pensava no meu falecido irmão, não tinha mais nada a perdê. Pensava em saí daqui e robá. Quando soube do meu filho, meu pensamento mudou. Foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida. Pensei em saí daqui e trabalhá, dá um bom exemplo pra ele. Comecei a pedir ajuda pra Deus. Se não fosse ele nem tava mais aqui, eu acho.

Apesar de ter cumprido uma medida de cunho pedagógico, não deixou de ser uma sanção que o privou da liberdade. Perdiz julga ter aprendido a lição.

- Não é bom tá preso aqui, mas faz parte da vida. Se eu nunca tivesse caído nesse lugar, não teria mudado, taria no crime até hoje ou já taria morto. Quando saí quero trabalhá, fazê curso pra entrar na escolta armada ou trabalhar de vigilante - projeta.

Apesar de fazer planos dentro da lei, teme a cobrança do inimigo quando sair.

- Meu medo é saí daqui e morrê. Porque eu arrumei treta com o guri aí. O irmão dele é de facção. Não sei, diz eles que vão me cobrar.

Após meia hora de conversa, a reportagem revela ao adolescente que a nova chance chegou. No primeiro momento, ele hesita e não acredita. Em seguida, explode de emoção e cai aos prantos feito criança.

- Deus tá me dando essa segunda chance, cara. Quero saí pra nunca mais voltá. Melhor notícia que eu poderia recebê na minha vida.

As profissionais que trabalham no Case se emocionam com Perdiz. Elas dão os conselhos finais e fazem os últimos votos de sorte. O abraço apertado revela o carinho que sentem por ele e o quanto desejam um futuro melhor ao jovem.

 

Passados os minutos de euforia, Perdiz enxuga as lágrimas, abre um sorriso e corre para se despedir dos quatro colegas com quem dividiu espaço em uma das casas. Entra na cela, recolhe as peças de roupa e as coloca dentro de sacolas. Os remédios que tomava para dormir deixou para trás. "Não preciso mais disso".

Perdiz entra na viatura descaracterizada acompanhado de dois agentes e segue o rumo de volta para casa. Ao chegar no novo endereço, se surpreende com o tamanho dos irmãos menores. "Meu Deus, como cresceram". Recebe um abraço apertado do pai que vem seguido de uma advertência:

- Agora é só não se envolver. Lembra bem do que o juiz falou pra ti na minha presença. A partir do momento que completou teus 18 anos e saiu de lá (Case), se a polícia te pegar cometendo qualquer tipo de delito, vai pra cadeia (presídio) e lá é diferente, vai dançar conforme a música.

Sair do centro de internação ainda não é o fim da linha. O juiz determinou uma progressão de medida socioeducativa. Perdiz precisa cumprir a liberdade assistida. Com isso, terá a obrigação de comparecer uma vez por semana durante seis meses ao Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas).

Por um instante, Dolores recorda os desapontamentos e tristezas que já viveu com os outros filhos. Mas logo retoma o pensamento em Perdiz e reforça para si mesma a esperança de um futuro próspero.

- Eu tenho esperança que o Perdiz vai sair de tudo. De lá (Casep), da vida que praticava (crime), dos erro. Ano que vem ele já faz 18 ano. Se ele tá vendo que ali tá ruim, na cadeia é pior ainda. Espero que ele melhore, né? Que bote na cabeça que isso ali, tudo o que ele fez, deu errado. Que pare por aí e não faz mais. Que cumpra o que tem que cumprir, ele tem que pagá o que ele fez. E saí dali de cabeça erguida. Nascer de novo. A primeira coisa é buscar Deus. Se não fosse Deus, nem eu tava aqui essas horas. E botá coisa boa na cabeça dele pra estudá. Fazê um curso pra ele tê uma profissão boa.

O filho de oito anos, que tem os traços físicos muito semelhantes aos de Perdiz, percebe o choro da mãe e tenta confortá-la. Com tão pouca idade, já viu de tudo. Presenciou o assassinato do irmão de 19 anos dentro do barco. Também esteve na Central de Polícia com a mãe em uma das apreensões de Perdiz.

Apesar das situações pesadas pelas quais passou, tem se saído bem na escola. A mãe garante que há atendimento no postinho de saúde, caso precise. Já o irmão de cinco anos ainda não pegou gosto pela escola e não quis de jeito algum ficar no jardim, por isso deve continuar em casa até o ano que vem, quando entrará no ensino regular. A caçula de um ano e sete meses pronuncia poucas palavras. Mas já caminha de um lado para o outro. Solta, vai até o quintal compartilhado com outros vizinhos e passeia à beira do mangue com liberdade.

Dolores tem 44 anos, é mãe de sete filhos e natural de uma cidade do Sul do Estado. Veio ainda criança para Joinville. O marido trabalha de servente de pedreiro e faz outros serviços conforme eles aparecem. O Bolsa-escola é um benefício bem-vindo à família grande. Ajuda a comprar o material escolar e algum calçado. O dinheirinho que entrou por causa da rescisão da última empresa em que o marido trabalhou com carteira assinada vai ajudar nas melhorias da casa. Dolores quer fazer um quarto separado para a menina, pois todos os irmãos dormem juntos. Colocar um piso no chão batido da cozinha também é um sonho.

- O que ele ganha por fora deixa pra comê, comprá uma verdurinha, fruta, né? Pra pagar uma água. Mas o que ele ganha da empresa é tudo pra casa.

Magro, cabelos tingidos com mechas loiras, vestindo o uniforme do irmão morto, ele entra na microempresa onde o irmão trabalhava, puxa o revólver da cintura - escondido embaixo da camisa larga que mal lhe serve - e anuncia: "É um assalto".

Perdiz passou aquela noite, em maio de 2014, com o amigo Jonas na cela da Central de Polícia. Como o lugar é provisório, não há chuveiro para tomar banho e muito menos refeições. Duas camas de cimento e uma privada são as peças do cubículo. O mau cheiro é quase insuportável.

O ASSALTO

A PRISÃO

No início daquela tarde, em maio de 2014, a mãe de Perdiz aguardava mais uma vez por uma audiência do filho na Promotoria da Infância e da Juventude, no Fórum de Joinville.

Perdiz chega ao Centro de Atendimento Socioeducativo Provisório (Casep), no bairro Parque Guarani, na zona Sul de Joinville, onde ficará fechado e longe do mundo por 45 dias, até ser transferido a um centro de internação permanente.

Dolores lavava a louça após o almoço de segunda-feira, quando ouviu no programa de TV que dois adolescentes haviam planejado uma fuga no Casep e um deles teria "esfaqueado" um agente socioeducativo.

Oito dias se passaram após o episódio dentro do Casep que deixou Perdiz de castigo. O jovem teve a sorte de sair da cela, ainda que por algumas horas, por causa de uma audiência marcada no Fórum.

Há cinco meses Perdiz cumpre medida socioeducativa de internação no Centro de Atendimento Socioeducativo (Case) de Joinville, na Estrada Geral Dedo Grosso, área rural do bairro Vila Nova. São cinco quilômetros de estrada de chão até a rodovia estadual mais próxima.

A ansiedade fez com que Perdiz tentasse tirar a própria vida. A coordenadora do Case acredita que pode ter sido mais uma forma de chamar a atenção do que propriamente uma tentativa suicídio.

Há pouco tempo, Perdiz descobriu um bom motivo para mudar de vida. Em breve, será pai. O bebê nasce no final de dezembro. Sua namorada de infância havia engravidado antes de Perdiz ser apreendido, mas ela só descobriu a gravidez no quinto mês de gestação.

Junho de 2015. Após um ano e um mês dentro do sistema socioeducativo, vivendo restrito aos muros da unidade, longe das drogas, da família e do mundo, é chegada a hora de partir. Como já completou a maioridade, está há um ano internado e melhorou o comportamento, Perdiz foi o escolhido para deixar o Case naquela semana.

DESTINO DEFINIDO

FECHADO PELA PRIMEIRA VEZ

lágrimas no dia das mães

A SENTENÇA

SEIS MESES DEPOIS

A TENTATIVA

DE SUICÍDIO

ELE DESCOBRE
QUE VAI SER PAI

CHEGOU A HORA DE RECOMEÇAR