Esta reportagem começa a ser traçada no final de 2012. Na época, a família de Iracema e Dirceu Canofre de Campos enfrentava o mês com apenas R$ 54 por pessoa. Eram 13 pessoas, três adultos e 10 crianças. Isso os colocava no universo dos 102 mil catarinenses que, de acordo com o Censo 2010, viviam em extrema pobreza – com menos de R$ 70 per capita. O número, o mais baixo do Brasil, desafiava SC a ser o primeiro Estado do país a vencer a miséria

o que diz Dirceu Canofre de Campos, 51 anos, quando reencontra algum velho conhecido. Resposta a quem achou que tivesse morrido. Não como referência à epilepsia, que no começo pensava ser um espírito do mal, capaz de jogá-lo no chão, fazer morder a língua, espumar pela boca, perder as forças. Tampouco pelo vômito arquejante do agrotóxico inalado nas lavouras de tomates.

 

Mas pelas vulnerabilidades que a vida impõe. A ele, à mulher, aos 14 filhos. Um homem no qual se alternam sentimentos de ternura e aspereza. Afetivo, mas também rigoroso na cobrança de trabalho e obediência.

 

Dirceu sofre de um desraizamento coletivo. Como tantos outros brasileiros, o circular do sangue nas veias não acompanha as pegadas dos antepassados. Como ele, nem todos sabem sequer o nome dos bisavós. Realidade que inclui os descendentes de imigrantes mais pobres que não conseguiram se classificar socialmente.

 

No caso de Dirceu, desconhecem-se certidões, registros, fotografias, documentos dos parentes. A narrativa de sua vida se faz pela ausência. A história registrada o torna mais pobre. A contada, o enriquece.

Registrado na cidade gaúcha de Nonoai, Dirceu era menino na década de 1970, quando se desfraldava radical mudança na economia brasileira. O crescimento do uso da tecnologia mecânica, dos agrotóxicos e a presença da assistência técnica mudaram a realidade do campo.

 

Mas também fizeram surgir o embrião de uma colheita ruim, o êxodo rural. Cerca de 30 milhões de pequenos produtores migraram para áreas urbanas.

Os pequenos eram excedentes. Como sementes ao léu, florescia o contingente dos que caminhavam de um lado para o outro no maior celeiro agrícola do Brasil.

Assim aconteceu com o pai de Dirceu, Rodolfo Canofre de Campos, que foi perdendo empregos para a tecnologia. Assim seria com Dirceu. Fosse criança, acompanhando o pai. Fosse adulto, seguido dos filhos.

 

Rodolfo e Dirceu serviram como boias-frias nos latifúndios sulinos. Nas entressafras, buscavam nova frente de trabalho. Migravam de uma região para outra, submetendo-se a condições insalubres no corte da erva-mate e de pínus. Certa vez Dirceu chegou a ser resgatado em uma operação da polícia por denúncia de trabalho escravo.

 

Sem terras para o sustento, muitos mudaram para a cidade. Dirceu foi um deles. Foi atraído para a periferia de Caçador, no Meio-Oeste. De dia, colhia tomates para um grande produtor; à noite, dormia em uma casa emprestada. Também se mudou para Videira. Como não conseguiu emprego, pegou o caminho para Timbó Grande. Carregava mulher, 10 filhos pequenos e tralhas. Morou em vilas, capinou terrenos, cuidou de propriedades particulares. Até pôr os pés no assentamento Perdiz Grande.

Iracema e dois irmãos ficaram com João Maria. Pouco tempo depois, deixaram a cidade natal de Chapecó, no Oeste catarinense, e foram para o sudoeste do vizinho Estado do Paraná. Para sustentá-los, o pai cortava erva-mate nos matos.

 

Cresceram em barracas iluminadas por lampiões a diesel, sem água tratada e cardápio repetido. Alimentavam-se com polenta, batata-doce, feijão. Vestiam roupas surradas e calçados sovados. O melhor dia, ainda que incerto, era o do pagamento. O pai aparecia com chiclete Ping Pong e pacotinhos de Q-Suco.

 

O trabalho também se apresentava à menina mirrada, que, aos 12 anos, decepava os galhos dos ervais. Um dia ela percebeu que estava crescendo. O corpo ganhava forma e as responsabilidades aumentavam. Inclusive o cuidado de si. Descobria por conta própria o significado de ciclos da vida da mulher, como o da menstruação. E adivinhou algo que hoje faz as filhas rirem: não é a cegonha que traz os bebês no bico.

O tempo passava enquanto os pés de erva-mate cresciam. O boca a boca sobre a frente de trabalho atravessou a divisa do Paraná com Santa Catarina. Na nova leva de trabalhadores que chegou à fazenda estavam conhecidos moradores de Passo Bormann, atual distrito de Chapecó. Entre eles, Rodolfo Canofre de Campos com dois filhos bem jovens. Um deles era Dirceu, com a mesma idade de Iracema.

 

Em meio ao ambiente penoso das plantações, Iracema e Dirceu se enamoraram. Aos 16 anos dormiam no mesmo pedaço de chão. Quiseram se casar no papel. Mas tiveram que esperar um pouco. Iracema não tinha Registro Civil. Até os 18 anos, quando formalizaram a união, era sem ser.

 

Fisicamente Iracema se parece com a mãe. Herdou feição magra, nariz afilado, cabelos lisos. Aurora, 65 anos, acha que a filha tem parecença com a falecida avó Rosa Peres da Silva, que seria filha de uma "índia de casta pura", filha de Bastiana, casada com um homem branco que suspeitam ser também de origem alemã. Por causa da separação do casal, trabalho no mato e moradia em outras cidades, Iracema e Aurora ficaram 40 anos sem se reencontrar. Hoje, estão 300 quilômetros distantes. Mas concordam que algo une avó e neta: o ato de parir. Rosa teve 13 filhos, um a menos que Iracema.

 

Na significação dos papéis das mulheres da família, recordam de Bastiana. Caçada no mato para casar com um homem branco, a bisavó cometeu um ato extremo por não concordar com os castigos aplicados a um dos filhos de pele mais escura: matou o marido a machadadas enquanto ele dormia. Iracema sorri quando lembra da história que a mãe contou-lhe ainda nos primeiros anos de vida. Demonstra certa admiração. Não pelo ato violento. Mas pela defesa do filho.

Bens e rotinas

 

O fogão principal é a lenha. Geladeira não existe. Um freezer horizontal serve para guardar a carne dos animais  abatidos em casa. Telefone não tem. Não existe sinal de celular. A TV em cores de 20 polegadas pega por parabólica. Mas só é ligada à noite. Os pais permitem aos filhos assistirem novelas para crianças. O rádio é ligado à luz. Por ele brada a voz do pastor evangélico.

Espaço em comum

 

Pais e filhos pequenos dormem no mesmo quarto. Os maiores em outro. Dois, três, quatro na mesma cama. Adolescentes também dividem o colchão, um para cada lado. Isso deve acontecer até que a nova casa de tijolo, que a família trabalha para erguer, esteja pronta.

Pratos na mão

 

No canto da cozinha da casa há uma mesa de madeira. Por entre os pés retorcidos andam pintos. Apesar de estar ali, o móvel não serve para as refeições. Adultos e crianças comem com o prato na mão. Hábito adquirido na infância dos pais nos acampamentos.  Sentam-se no banco de madeira ou em cadeiras. Também se acocam no chão. Os menores repartem vasilhas, talheres, copos.

Banho coletivo

 

O banheiro funciona com um sistema rudimentar. Um buraco na terra recebe os dejetos. Esses saem lentamente de um apertado  sanitário. De tão pequeno o vaso lembra o de um jardim de infância. Banhos são divididos por idades. Os meninos maiores entram juntos no chuveiro. As meninas formam outro grupo. Tudo rápido: molham o corpo, ensaboam-se e secam-se. Enquanto a água molha a cabeça de um, outro passa sabonete no corpo e o terceiro vai se enrolando na toalha. Juntos somam o tempo médio que um só brasileiro leva para tomar banho: 15 minutos.

Em Timbó Grande não existe transporte público. As estradas do interior são de chão. Os ônibus escolares são usados como carona para quem precisa se deslocar. Também não se encontram táxis.

 

A cidade tem uma rádio comunitária que funciona nos fundos da igreja católica. Mas é a fé dos evangélicos que mais se ouve: 40% dos moradores são de alguma denominação. Contam-se 16 igrejas.

 

Nas ruas e casas do município os moradores exibem características físicas diferentes. Da pele escura e cabelos lisos herdados dos caboclos, aos claros e com olhos azuis dos imigrantes europeus. São cordiais. Oferecem chimarrão e, por mais simples que seja a moradia, têm o hábito de mandar a visita entrar. Mas é bom prestar atenção: os calçados devem ficar do lado de fora.

 

Na busca de cura para os males, as pessoas recorrem a alternativas: irmã Modesta Bubiniak trabalha na Pastoral da Saúde e receita florais. Há 13 anos em Timbó Grande, a freira atende os moradores gratuitamente em uma sala da Paróquia São José.

 

– A gente ampara o povo, que muitas vezes precisa é de informação – diz.

A cidade foi batizada "Timbó" por causa de um vegetal, uma espécie de cipó, usado pelos índios da região durante as pescarias. O termo "Grande" foi adicionado para diferenciar de uma cidade do Vale do Itajaí de igual denominação.

Por ruas e estradas de Timbó Grande, o vaivém dos caminhantes chama a atenção. Remonta à organização dos redutos da Guerra do Contestado (1912-1916), reencarnada no chão do Cemitério dos Jagunços, na localidade de Santa Maria. Foi ali, a alguns quilômetros do centro, que em 17 de dezembro de 1915 tombaram militares e seguidores do monge João Maria dando fim ao conflito que acabou por definir os limites de Santa Catarina com o Paraná.

É o que diz Iracema Ferreira Silva Campos, 51, agricultora e casada com Dirceu há 35 anos. Analfabeta e até 2012 desdentada em um país onde se abocanha dinheiro público. Miserável no conceito técnico. Uma entre os 16,2 milhões de brasileiros que, de acordo com o Censo 2010 IBGE, encontrava-se abaixo da linha da pobreza.

Desde menina, Iracema é de falar pouco. Seus pais, Aurora e João Maria Ferreira da Silva, separaram-se quando ela tinha cinco anos

O agricultor nasceu em 7 de janeiro de 1964, à beira das águas calmas do porto de Goio-en, na divisa oeste entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul

A família de Iracema e Dirceu mora na área rural. Chega-se lá por uma estrada de chão distante quatro quilômetros do centro de Timbó Grande. O terreno onde está a casa tem 11 hectares e corresponde ao lote 25 do Assentamento Perdiz Grande. É regularizado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e abriga mais 37 famílias. Os pequenos agricultores plantam verduras, mandioca e milho. Além das três vacas de leite e um boi, os Canofre criam porcos para o consumo

Para entrar neste universo de extrema pobreza em que vive a família Canofre é preciso conhecer Timbó Grande. A cidade está a mais de 900 metros acima do nível do mar, na floresta mista de araucárias. Para lá não existem linhas de ônibus. A economia local esteve sempre atrelada à exploração da madeira.

Onde estavam?

Porta aberta

Desigual

SONHOS |Em janeiro de 2013, a família com expectativa

de que a realidade se alterasse. FOTO ÂNGELA BASTOS

Nasceu em Chapecó, no Oeste de Santa Catarina. Contida, nas lacunas que a vida lhe impôs, buscou na fé a explicação para as inquietações na alma. Adotou a igreja Deus É Amor como guarida.

 

Iracema é vulnerável na definição etimológica de quem está suscetível a alguma coisa. Como quando lida com os animais. Atividade comum no meio rural, mas que para ela resultou em desgraça. Começou o ano de 2013 magra, enrugada, com a pele embranquecida por uma anemia.

 

Um mês antes, às vésperas de completar os nove meses de gravidez, quase se esvaiu em sangue. Tinha sido atingida pela chifrada de uma das três vacas que possuíam. Ela não contou para ninguém sobre o acidente. Nem que depois dele sentia-se mal. Omitiu dores no ventre e hemorragias constantes.

 

Em uma noite quente, depois de rejeitar um prato de comida e deixar visitas na sala, estendeu-se no colchão afundado pelo tempo de uso. Era impossível continuar em pé. Não tinha mais como esconder o líquido vermelho que descia pelo meio das pernas.

O filho de 15 anos percebeu:

 

 

 

 

 

 

O grito do rapaz assustou as visitas. Iracema foi colocada num carro que seguiu por uma estrada de chão. Recebeu atendimento no hospital municipal de Timbó Grande. Mas o sangue não estancava. Três horas depois seguia de ambulância para Santa Cecília, cidade com maior recurso médico, a 70 quilômetros. A mãe se salvou. Mas o bebê morreu.

 

A contragosto ficou internada por uma semana. Só um mês depois, em casa, ganhou coragem de falar à filha, também casada e mãe, sobre o acidente que levou à morte o seu décimo quinto filho. Até então, dizia ter levantado peso demais. Acostumada a parir em casa e sem anestesia, a dor era suportável. Resistiu o quanto pôde.

Entre frestas

 

A casa é de madeira e coberta com telhas de amianto. Por fora, pintada de azul descascado. Por dentro, da mesma cor desmaiada. A entrada principal é pela sala. O assoalho fica a meio metro do chão. No forro de tábuas soltas, a fiação elétrica exposta. São apenas duas peças. Essas, divididas em mais duas, sala e cozinha; quarto e outro quarto.

Reportagem

ÂNGELA BASTOS

É repórter especial e há 20 anos trabalha no Diário Catarinense. Para esta reportagem multimídia, dedicou dois anos e sete meses de apuração.

angela.bastos@diario.com.br

Fotografia

CHARLES GUERRA

Repórter fotográfico e há 15 anos atua no Grupo RBS. Registrou em imagens o cotidiano da família protagonista desta reportagem.

charles.guerra@diario.com.br

Edição

JULIA PITTHAN

julia.pitthan@diario.com.br

Design e desenvolvimento

FÁBIO NIENOW

fabio.nienow@diario.com.br

Edição de vídeos

LUCAS AMARILDO

lucas.amarildo@diario.com.br

Direção de vídeos

LÉO CARDOSO

leo.cardoso@diario.com.br

Trilha sonora original

 

WAGNER SEGURA

Trilha sonora

TÁCIO VIEIRA

GUSTAVO RODRIGO DE SOUZA

WAGNER SEGURA

Tradutores

ÂNGELA INÊS RAUBER

CATARINA SIARLI KORMANN

EBERHARD JOSEF ALBERT

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