o contrário da família de Dionas, que segue sentindo por não tê-lo mais ao lado, Fábio Santos Ávila, 26 anos, chora de saudade de alguém precisou enterrar para seguir sobrevivendo. Nem Rozeli desconfiaria que aquela foto retrataria a atual situação dele. No enquadramento da imagem, com então 11 anos, o jovem aparece só do pescoço para baixo, sem identificar o rosto. E Fábio segue até hoje buscando a própria identidade.
Entre os 18 e 24 anos, Fábio viveu como Brenda Raffler, definida por ele como uma extrovertida travesti de longos cabelos castanhos, que se prostituía no Bairro Restinga. Há dois anos, porém, decidido a ingressar no mercado de trabalho formal, o jovem foi obrigado a voltar a ser quem ele não desejava desde os sete anos, quando descobriu-se gay.
– Era mais feliz sendo a Brenda – reconhece, depois de refletir por quase dois minutos ao ser questionado pela reportagem.
Num ato quase de desespero para assinar a carteira de trabalho pela primeira vez, Fábio aceitou o desafio de uma gerente de recursos humanos de um supermercado: cortar os cabelos conservados por oito anos e as longas unhas, deixar a sobrancelha crescer e não tomar mais hormônios que o ajudavam a deixar a voz feminina. Pela vaga de supridor, que lhe garantiria um salário mínimo, ele voltou a ser Fábio.
– Eu era uma lady. Por isso, fiquei um cinco minutos mudo para ela antes de responder se aceitava. Pensei que seria melhor encarar a vida nova. Cortei o cabelo, mas fiquei uma semana dentro de casa. Tinha vergonha de me ver no espelho ou que me vissem. Não saía para a rua de jeito nenhum. Levei uns dias para assumir o jeito que eu estava – recorda.
Pressão
Por um ano, Fábio enfrentou o preconceito de colegas e as piadas internas. Resistiu, até pedir demissão. Hoje, se arrepende. Acha que deveria ter continuado e encarado os preconceituosos. Depois da experiência, ele empregou-se na mesma vaga em outro estabelecimento comercial. Não ficou três meses, e pediu para sair. O motivo foram as ofensas que partiam do gerente, que chegou a cercar Fábio com outros colegas para questionar as preferências sexuais do jovem. Fábio saiu calado. Nunca o denunciou.
– Eu só queria trabalhar e ter o meu salário. Saí não por causa da pressão do serviço, mas pela pressão do preconceito dele, que era demais – explica.
Desempregado há mais de seis meses, Fábio perdeu a conta de quantos currículos entregou e das promessas de retorno. Quer acreditar que as negativas são pela falta de conclusão do ensino fundamental, e não por ser assumidamente gay.
– Não quero voltar a ser Brenda porque não é vida para ninguém. Nenhuma porta se abre, tudo se fecha. Você vai procurar emprego, eles olham e dizem ‘não, não dá, desculpa’ ou ‘a gente vai te ligar’, e nunca ligam. Bem ou mal, quando eu era Brenda, me prostituía para viver. Não quero isso de novo. Prefiro ser isso que eu sou agora – justifica, como se estivesse sustentando a decisão para si próprio.
Mãe foi a fortaleza
O preconceito enfrentado desde criança não o abala mais do que falar da própria mãe. Vítima de um câncer, aos 49 anos, Cleonice Silva dos Santos, defendeu o filho até a morte. Foi o conselho dela, dito um dia antes de morrer, que fez o jovem decidir se assumir como Brenda.
– Estava do lado da cama dela, no hospital, quando, mesmo fraca, ela disse ‘meu filho. Não me importa se tu é gay. O importante é que eu vou te amar porque você sempre esteve do meu lado.’ Foram, praticamente, as últimas palavras dela. No outro dia, minha mãe se foi – emociona-se.
Fábio recorda que a mãe, que se prostituía para sustentar quatro filhos sozinha, enfrentava os vizinhos quando insistiam em ofendê-la por ter os três filhos homossexuais – o mais velho, morreu vítima de HIV, e o mais novo, se prostitui na Capital e não tem contato com Fábio:
– Minha mãe chegou a apanhar de vizinhos por nos defender. Foi uma guerreira.
Preconceito também na família
Do pai, Fábio pouco fala. Era um alcoólatra e costumava agredir a mulher e os filhos, ainda em Cacequi. Fugindo das agressões, Cleonice foi com os quatro irmãos mais novos para a Restinga, onde já viviam os dois mais velhos, filhos de outro pai. Do avô materno, que morava no Bairro Lomba do Pinheiro, Fábio só lembra de quando ele alertou a filha para os netos não se tornarem gays.
Depois da morte de Cleonice, Fábio, com 16 anos, passou a morar com uma das irmãs. Ao descobrir a opção sexual dele, ela o expulsou de casa. Por um mês, sem tem para onde ir, ele viveu numa casa abandonada, no Bairro Ipanema, usada na época por dependentes de crack. Ali, Fábio perdeu todas as roupas e o celular, mas garante jamais ter usado drogas ilícitas.
Aos 18, abrigado por um amigo, Fábio decidiu ser travesti. Brenda surgiu aos poucos porque ele seguia dizendo aos familiares que deixava o cabelo crescer por promessa. Em meio ao amadurecimento da ideia de se tornar um travesti, ele ainda foi outras três vezes expulso da casa de outros familiares.
– Passei muito trabalho como Brenda, mas eu era mais extrovertida. Agora, como estou Fábio, sou mais fechado – confessa.
Há quase três meses, Fábio vive na casa de uma amiga, no Bairro Restinga, depois de terminar um casamento de um ano por conta do preconceito de um parente do marido. A separação, mesmo dolorida, foi consensual. Da família, mantém contato apenas com a irmã mais nova, a quem sonha, um dia, conseguir abraçar.
– Às vezes, tenho vontade de chegar e dar um abraço nela, mas não consigo. Daí, as pessoas acham que eu sou ruim. Só tenho um coração diferente porque uma parte de mim foi com a minha mãe – desabafa.
Aceitação
Ao saber da situação de Fábio, a presidente da Associação de Travestis e Transexuais do Rio Grande do Sul, Marcelly Malta, surpreendeu-se, apesar de ressaltar que casos como o dele são mais comuns do que se imagina. A questão é que os dois locais onde ele trabalhou são reconhecidos por contratar travestis.
Marcelly ressalta que a mudança para o nome social pode ajudar na aceitação em meio à sociedade ainda conservadora. No Estado, 151 travestis e transexuais já alteraram a identidade. Marcelly, travesti desde os 15 e hoje com 65, foi a primeira no Rio Grande do Sul a trocar os documentos.
- Uma pessoa não deixa de ser travesti. Ele (Fábio) precisa se aceitar como é e ser feliz - aconselha.
“Não quero morrer sozinho”
A mochila que hoje carrega com algumas peças de roupa e um tênis é o único bem que restou a Fábio. Nela, ele carrega a esperança de mudar de vez de vida. Nos sonhos, a expectativa de conseguir um emprego e de constituir uma família.
– Paro e penso ‘minha irmã tem uma família, o meu irmão é um morador de rua, a outra vive num lado de Porto Alegre e eu não sei onde ela anda. Cada um tem a uma vida, uma família. Tenho que ter a minha. Meu maior medo é morrer sozinho, como minha mãe morreu – conclui.