Crianças e adolescentes com membros mutilados em atividades de risco são o retrato do trabalho infantil em Santa Catarina. Os acidentes com menores de 18 anos cresceram 77% no ano passado, o que coloca o Estado como o quarto do país em número de casos

fotos | betina humeres

om 14 anos, Hemerson viu a mão esquerda ser decepada pela máquina de cortar madeira em uma serraria de Rio dos Cedros, no Vale do Itajaí. Daiane tem 17 anos e um só antebraço. O outro foi engolido pela máquina de moer carne de um frigorífico, em Cunhataí, no Oeste do Estado. Desde os 17 anos, Josué tem apenas a perna esquerda. A direita, assim como parte do couro cabeludo, do rosto e das costas foram fulminadas por um choque na rede de alta tensão enquanto ele instalava cabos de internet em São Domingos, também no Oeste. Cicatrizes de um dos nós que Santa Catarina não consegue desamarrar, o trabalho precoce.

Hemerson, Daiane e Josué fazem parte de uma estatística aflitiva. No ano de 2014, 95 meninos e meninas com menos de 18 anos sofreram acidentes de trabalho graves no Estado. Em 2015, a situação foi ainda pior, chegando a 169, um aumento de 77% em relação ao ano anterior. A maior parte envolve adolescentes de 16 a 18 anos e que desempenham atividades laborais de alto risco. Mesmo que a lei de proteção integral seja clara. Nessa faixa etária, só podem trabalhar na condição de aprendiz, o que exige contrato especial por tempo de dois anos e em ambiente que tenha relação e seja complementar às aulas teóricas recebidas em programas de aprendizagem. Existem ainda outras exigências, como não ser noturno, em condições insalubres ou perigosas, prejudiciais à formação física ou psicológica e que não comprometa os estudos.

Outro problema a ser enfrentado pelos catarinenses é que nem sempre essa realidade deixa marcas visíveis. Há situações de dores, edemas e intoxicações que brotam do chamado regime de economia familiar. Mas que nem sempre aparecem nas estatísticas relacionadas ao trabalho, e sim como acidente doméstico. Esse nó se enleia pelo pensamento das pessoas que não entendem o trabalho de crianças e dos adolescentes como irregular. Muito menos como exploração da mão de obra, mas como apoio às famílias para aumento da renda. Amparam-se, assim, em um pensamento que vem de gerações passadas, ensinado pelos pais, que aprenderam com os avós. Esse modo de pensar não é passível de punição, pois não há vínculo empregatício.

– Antes se trabalhava com um modelo mais repressivo de combate ao trabalho infantil junto às famílias, que até dava resultado, porém, insuficiente ao longo do tempo. Hoje, as ações se dão no campo mais promocional e pedagógico – diz o procurador-chefe do Ministério Público do Trabalho, Marcelo Gross Neves.

Essa cultura de que “é bom para a formação do caráter”, “é importante para aprender a ter responsabilidade” ou “é melhor trabalhar do que virar bandido” ajuda a colocar Santa Catarina como o sexto Estado do país em número de crianças e adolescentes flagrados em condição de trabalho infantil. Dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) divulgados ano passado mostram um pouco dessa realidade: em 2015, 502 menores de 18 anos foram surpreendidos pela fiscalização em cidades catarinenses. Houve flagrantes também em olarias, lava-jatos, oficinas mecânicas. Em muitos casos, a resposta de quem empregava ou das famílias se baseava na defesa do trabalho infantil como alternativa de sobrevivência e prevenção à delinquência. Esse discurso impõe aos meninos e às meninas empobrecidos uma pena de trabalho compulsório. A maioria é empurrada a um emprego antes da hora por falta de opções e por viver em locais onde ações educativas,  preventivas e fiscalizadores são pontuais. Além disso, convivem com os mesmos desejos com os jovens da mesma idade. Querem dinheiro para comprar roupas, celulares e tênis.

– Por mais que se atue junto às famílias, que se façam campanhas, que se executem ações de fiscalização e se exija dos gestores públicos, esse problema só será enfrentado quando também no campo tivermos escolas em tempo integral – diz Inge Ranck, fiscal da Superintendência Regional do Trabalho e representante do Fórum de Erradicação do Trabalho Infantil em Santa Catarina.

Uma outra estatística revela o quanto o tema precisa ser discutido: a cada dia, cinco crianças e adolescentes são vítimas de acidente de trabalho no Brasil, diz o Ministério da Saúde. A cada mês, pelo menos um desses pequenos brasileiros morre no trabalho. Outro resultado trágico é o número de meninos e meninas mutilados.

rianças e adolescentes que perdem parte do corpo não sofrem apenas com a ausência de movimentos. O potencial de vida e as experiências também são podados quando não há mais o pé para chutar a bola ou a mão para desenhar. Diferentemente da maioria dos adultos, ainda meninos eles tiveram pouco tempo para experimentar todos os movimentos, o que aumenta o sofrimento e acarreta transtornos irreversíveis. Se para muitos é motivo de orgulho começar cedo, é unanimidade entre especialistas que o trabalho infantil – principalmente aqueles perigosos e com carga horária intensa – agride física e emocionalmente os menores.

– O jovem acha que não está completo e não acredita ser bom em algo. Isso vai desencadear uma série de transtornos, comuns em crianças que trabalham por longos períodos, como depressão, enxaqueca e esquecimento – diz Marcelo Calcagno Reinhardt, especialista em psiquiatria da infância e adolescência.

O trauma força os pequenos a pular etapas fundamentais para seu desenvolvimento emocional, que, segundo Calcagno, são três: brincar, aprender e estudar. A brincadeira, por exemplo, é uma forma de aprender e socializar com os colegas, mas, quando a criança ou adolescente é inserida diretamente no mercado, essas fases são suprimidas. Ainda na escola, essa geração que trabalha terá dificuldades no aprendizado e, quando adulta, terá problemas para se relacionar com outras pessoas, inclusive na vida profissional.

O neurologista infantil Kligiel da Rosa alerta que o cérebro corre risco de ter o desenvolvimento comprometido. Conforme o médico, o órgão estará completamente formado apenas aos 18 anos e a última região a se desenvolver é o lobo frontal, responsável pela tomada de decisões e pela inteligência. O ideal nessa faixa de idade seria a dedicação da criança e adolescente à brincadeira, aos estudos, assim como receber afeto e repouso adequado, e não trabalhos repetitivos que não vão acrescentar para esse desenvolvimento. Assim, conclui, que o trabalho infantil pode deixar sequelas graves, como o déficit intelectual.

– Quando a criança trabalha, essa parte não se desenvolve. É como se houvesse um bloqueio. E isso é difícil de reverter na idade adulta. Essa pessoa (que trabalha duro na infância) terá uma diferença de maturidade emocional, problema de relacionamento e uma sensação de que algo lhe foi roubado.

No caso de uma das consequências mais graves dos acidentes de trabalho, a amputação, meninos e meninas terão que reaprender a viver com um membro faltando. Para o neurologista, como eles terão que investir um longo tempo para aprender a escrever ou brincar novamente, o desenvolvimento neurológico é afetado.

Para a doutora em educação e professora da UFSC Soraya Franzoni Conde, dificilmente um aluno que trabalha por um longo período terá o mesmo desenvolvimento de quem tem uma rotina normal. De acordo com a pesquisadora, embora a criança frequente a escola, ela não fará as tarefas e não terá tempo para estudar em casa, o que prejudica o aprendizado.

Franzoni, que começou lecionando aos 15 anos, não indica o trabalho nesta idade, apesar de ter superado o problema.

– Cada momento de nossa vida se caracteriza por uma atividade principal, que guia o desenvolvimento. Se pegarmos o foco de uma criança de oito anos, constatamos que é o estudo. Sem isso, ela está sendo limitada. Então o que eu estou fazendo com crianças e adolescentes que trabalham? Estou podando a criatividade deles, a possibilidade de desenvolvimento da própria humanidade.

Acompanhando de perto alunos do interior de Santa Catarina, a pesquisadora destaca que os estudantes chegam cansados na sala de aula e muitas vezes tiveram pouco tempo para fazer as tarefas.

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* Todas as entrevistas foram concedidas na presença de adultos e com autorização dos responsáveis pelos jovens.

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