PEDRO ROCKENBACH

Sensação de impunidade

E

ncontrei em Campos Novos, no Meio-Oeste, um dos exemplos mais recentes do poderio econômico do cigarro. Em fevereiro, Edenilson Martinelli, um jovem de 28 anos, foi preso em um furgão abarrotado do produto. No pátio da casa dele, mais três carros cheios. A Polícia Militar invadiu o local.

– Encontramos R$ 150 mil em dinheiro, arma, munição, radiocomunicadores, além de livros para registro da venda do contrabando, dinheiro e cheques. Uma mansão com piscina, deck, barzinhos, geladeiras cheias das bebidas mais caras, os melhores equipamentos eletrônicos. Ele começou com veículos pequenos e, em pouco tempo, já estava puxando caminhão bitrem e entregando em cidades aqui do Meio-Oeste, do Litoral, do Vale do Itajaí e até no Rio Grande do Sul – descreve o capitão da Polícia Militar Rodrigo Pedroso.

A fiança para o Edenilson responder em liberdade foi de R$ 100 mil, paga sem nenhum problema. Bati três vezes na portão dele para tentar ouvi-lo. Na primeira, não estava. Na segunda, uma amiga apareceu dizendo que não sabia dele. Na terceira, ele entrou correndo ao ver nosso carro chegando. E lá ficou.

Subindo mais ao Oeste, cheguei ao nome de Ofrásio Melo, 32 anos, o Saci. Quase se matou no Centro de Chapecó há três anos ao fugir da polícia. Perdeu o controle na direção de uma Chevrolet Captiva roubada que havia comprado por R$ 8 mil.

– Capotei ao desviar de uma mulher – lembra.

Era a terceira vez que ele caía por contrabando de cigarro. No hospital em que ficou internado, tinha até escolta da polícia para evitar um resgate. Ofrásio é apontado pelo Ministério Público Federal como líder de umas das maiores quadrilhas de cigarreiros da região. Nasceu e vive hoje em Nonoai, vizinha gaúcha de Chapecó. Lá descobri que era conhecido por outro apelido, o Perna. Perna ou Saci, fato é que o rapaz perdeu o membro esquerdo em um acidente na adolescência.

Eu não tinha o endereço de Ofrásio. Mas Nonoai é pequena e todo mundo conhece o filho do segundo vereador mais votado nas últimas eleições. Só a mãe e o irmão estavam em casa. Apresentei-me junto com o meu colega cinegrafista Fabiano Souza. Expliquei por que viemos de tão longe e o que queríamos. Vinte minutos de conversa que podem ser resumidos em duas frases: “não sei. Não vi.”

Notei que o irmão batia fotos nossas enquanto fingia usar o celular. Saberia mais tarde que a foto foi encaminhada junto com a placa do carro. Então, o Ofrásio apareceu, num Ford Fiesta com mais três homens. Só ele desceu.

O cinegrafista me disse que ouviu um barulho de metal batendo em metal no carro, enquanto eu conversava com ele. Não reparei. Não sei dizer o que era. Saci topou dar a versão dele.

– Não sou chefe de nada. Quando eu trabalhava (no contrabando), era só o motorista. Eu não trabalho mais. Ganhava R$ 700 por viagem.

– Uma das vezes em que você foi preso, estava sem cigarro. O que aconteceu? – pergunto

– Tinha uma barreira (da polícia). Daí acharam o rádio que era de fazer o serviço de batedor (monitorar a estrada para a passagem da carga). Eu tava de carona, porque não tenho carteira, né.

Difícil acreditar que alguém seria contratado para a função de motorista sem habilitação, mesmo se tratando de um esquema criminoso. Mas foi o que ele garantiu.

Ainda assim, Ofrásio não pode reclamar. Nem todos têm a mesma sorte que ele. Pouco provável que alguém sairia vivo daquele carro destruído na fuga em 2014. Muitos ficam pelo caminho. Pesquisei por acidentes com veículos transportando cigarros paraguaios. Há muitos. Mortes, quase 30. Encontrei várias famílias vítimas diretas do contrabando. Uma delas é a de Núncio Tozzato, 87 anos. Um senhor que fazia planos para o futuro, vivia um novo romance há quatro anos. Na manhã de 18 de fevereiro deste ano, saiu de casa para buscar uma santinha no sítio.

– Eu disse pra ele: “cuida com a BR e me traz limão.” Mas não deu nem meia hora, ele faleceu – diz Candinha Possamai , companheira de seu Núncio.

Ele foi atingido em cheio por um cigarreiro em fuga, na BR-277, em Céu Azul, no Paraná. Valtuir Borges da Silva, de 24 anos, dirigia a caminhonete forrada de cigarros que provocou o acidente. Está solto, respondendo em liberdade. Duas semanas antes de matar Núncio, já havia sido preso e solto após pagar fiança. O crime: contrabando de cigarro.

A sensação de impunidade é um dos catalisadores desse tipo de crime. A pena para contrabando vai de dois a cinco anos de cadeia. Mas ninguém fica preso. Paga fiança e acaba solto. E isso faz do cigarro quase uma versão aprimorada do tráfico de drogas. Alta lucratividade, baixo risco.

– Se eu trouxer a droga, eu já sento na mesa do juiz com 10 anos de cadeia, porque é tráfico internacional. E o cigarro é mixaria, três, quatro meses no máximo. Já fui preso sete vezes. O maior tempo que fiquei na cadeia foram seis meses. A única coisa que eu perdia era a mercadoria, a liberdade não. E o produto, eu conseguia fácil de novo – revela o contrabandista da Grande Florianópolis.

 

Hoje, 70% de todos os produtos contrabandeados do Paraguai são cigarros. Calcula-se que

45,2 bilhões de cigarros foram trazidos ilegalmente para o Brasil no ano passado. Isso faz do país o maior mercado desse tipo de mercadoria ilegal, seguido pelas Filipinas, com 36,3 bilhões, e a Índia, com 23,9 bilhões.

– Todo esse comércio está deixando um rastro de destruição em todo território nacional. Não é só financeiro, mas pelas vítimas do contrabando. Os acidentes de estrada, a cooptação de jovens nessas áreas de fronteira, a logística que traz pro tráfico de drogas e armas, o roubo de veículos.

De cada 10 veículos apreendidos com cigarros, sete são roubados. Há quadrilhas que atuam exclusivamente para abastecer a frota dos cigarreiros. Isso faz com que pessoas que nunca fumaram, nunca andaram fora da linha, sejam afetadas por esse comércio clandestino. Em maio, um caminhão foi apreendido pela Receita e pela Polícia Militar com 400 mil maços em São Bento do Sul. O veículo fora roubado em Lagoa Vermelha (RS). Fui atrás dos donos. Receberam de mim a notícia do caminhão encontrado. A alegria do casal foi tanta que recebi a alcunha de anjo.

– A gente estava atrás dele faz tempo. Era o nosso meio de sobrevivência, nosso sustento. Foi uma vida de economia para comprarmos o nosso próprio caminhão, ainda estávamos pagando. Com essa notícia, agora acho que poderei voltar a dormir sem remédios – desabafa a dona do veículo, que prefere o anonimato.

QUEM SOMOS

Repórter

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Editora

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