ALÉM DO

EFEITO MORAL

uso de armas não letais – como gás lacrimogêneo e bala de borracha – fora dos protocolos recomendados expõe manifestantes

ao risco e levantam o debate sobre os limites das forças de segurança

 

 

TEXTO | Jacson Almeida e Leonardo Thomé

 único tiro que Luiz Salbino Pimentel levou na vida foi direto no abdômen. Embora a bala fosse de borracha, o disparo à queima- roupa de espingarda calibre 12 lhe atingiu em cheio, abrindo um rasgo na pele da dimensão de uma bola de gude. O servidor de Florianópolis tombou no mesmo instante. Junto a ele, outros funcionários da agora Autarquia de Melhoramentos da Capital (Comcap) ficaram feridos por armas não letais no dia em que a Rua dos Ilhéus, no coração da Capital, tornou-se uma arena de batalha.

Gritos, spray de pimenta, bombas de efeito moral e tiros ecoavam diante da Câmara de Vereadores na noite de 12 de julho. Dentro do Legislativo, tramitava um projeto de lei que transformou a empresa de economia mista, com 1,6 mil trabalhadores que fazem a limpeza urbana e a coleta de resíduos sólidos de Florianópolis, em autarquia. O protesto era motivado, principalmente, pelo temor de demissões em massa. Um dia antes, após ser impedido de entrar no local, um grupo de servidores despejou sacos de lixo em frente ao prédio. A partir daí a tensão e os exageros aumentaram de todos os lados.

Os trabalhadores relatam abusos de guardas municipais, como disparos acima da linha da cintura e de distâncias inferiores a cinco metros, procedimento que fere as instruções dos fabricantes de armas e a orientação de especialistas. Reclamam de ausência de socorro, em desacordo com a Lei 13.060/2014, que disciplina o uso de armas pela polícia em protestos. Além disso, afirmam ter recebido jatos de sprays de pimenta no rosto. Por outro lado, a Guarda Municipal garante que os agentes foram agredidos com pedras e outros objetos e só utilizaram da força “para se proteger nos momentos em que houve risco à vida dos servidores que trabalham no prédio da Câmara, depredação ao bem público e agressões físicas”.

Apesar das versões opostas, o episódio no Centro de Florianópolis é o retrato de algo comum em Santa Catarina e no país: quando as manifestações fogem do controle, a truculência por parte das forças de segurança aumenta e, consequentemente, há muitos feridos, principalmente por armas não letais.

Segundo o estudo Letalidade Disfarçada – danos à saúde por armas letais, elaborado pela Rede Internacional de Organizações de Direitos Civis e pela Médicos por Direitos Humanos, a distância recomendada para disparos com projétil de borracha é de nove a 14 metros. Do contrário, pode ocasionar ferimentos mais sérios. Outra orientação no documento é de que não se atire acima da cintura. A menos de três metros, por exemplo, a chance de levar a um ferimento grave, principalmente se atingir regiões como cabeça e abdômen, é maior.

Socióloga do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), a doutora Giane Silvestre explica que boa parte dos pesquisadores da área chama esse equipamento de armas menos letais, já que elas podem matar. Por isso, é importante que os agentes da segurança sigam as normas de uso para não causar lesões mais sérias.

Tanto em Santa Catarina como em outros Estados, as polícias e guardas municipais seguem um protocolo operacional padrão (POP) para distúrbios civis, como são chamados os protestos na linguagem técnica. No documento, entre outras orientações, há a indicação de como formar a tropa, que tipo de armamento utilizar, como agir em situações de risco e de qual distância atirar ou lançar spray de pimenta. Muitos deles orientam para disparar abaixo da linha da cintura. O problema, porém, é que nem sempre as regras são seguidas. O DC solicitou o acesso aos protocolos da Guarda Municipal e da Polícia Militar de Santa Catarina, mas ambos negaram o pedido.

A reportagem teve acesso ao documento da PM catarinense. Não há orientações diretas como, por exemplo, a distância a ser tomada para atirar ou se o disparo precisa ser abaixo da linha da cintura. Bruno Langeani, coordenador do Instituto Sou da Paz, organização não governamental que contribui para políticas públicas de segurança no país, critica justamente essa falta de transparência. Para ele, o excesso de sigilo aumenta o medo e a desconfiança dos manifestantes, o que pode gerar ânimos acirrados. Uma troca de informação entre líderes do ato e representantes do Estado, aponta, seria a saída.

– A gente tem visto desde 2013 uma discussão ampla sobre gestão de protestos, mas que tem ficado muito na questão policial. É preciso que outros setores do Estado se coloquem nesses canais. Isso evitaria que cenas como essas de Florianópolis acontecessem. É preciso se perguntar como o trabalho da polícia está conversando com a sociedade. Mas é necessário que haja transparência. Qual o critério para usar a força? As estratégias não são discutidas – questiona.

Sobre armas não letais, o especialista destaca que, apesar de cada corporação ter um protocolo de ações, práticas como atirar acima da cintura e à queima-roupa fogem do bom-senso. Os próprios manuais dos fabricantes estipulam uma distância mínima.

Em nota, a PM diz que todas as tecnologias menos letais utilizadas pela corporação seguem o prescrito pelas empresas e técnica policial militar, não lesionando nenhum cidadão. Sobre o confronto do dia 12, a corporação afirma que usou “granadas de luz e som, gás lacrimogêneo e dois disparos de elastômero (borracha) para curta distância com intuito de dispersar pessoas que atentavam contra agentes com pedras e outros objetos.”

A comandante da Guarda e secretária de Segurança Pública da Capital, Maryanne Mattos, diz que informações que chegaram à corporação denunciavam que os servidores “viriam para o enfrentamento”. Ainda assim, nenhum deles foi detido ou interrogado, apesar de haver agentes de inteligência que verificaram a existência de manifestantes que levavam sacolas com cocos verdes, pedras, estilingues com bolas de gude e sacos com fezes, segundo a servidora.

– Tínhamos que monitorar a situação, para não gerar mais tumulto. Chegou um ponto, que acho o mais crítico e mais grave, em que eles encheram as duas portas da Câmara de lixo, altamente inflamável, e avisaram que colocariam fogo nos sacos. Enquanto isso, os servidores que estavam lá dentro desligaram o registro de água. Então, se houvesse um incêndio, não teríamos nem como contê-lo – diz a comandante.

 

 

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 Diorgenes Pandini

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 peito também é considerado uma parte vulnerável aos disparos de arma de borracha. O servidor Alex José da Silva, 42 anos, está com três hematomas na região, mas se lembra de ter sofrido apenas um tiro. Na hora, ficou sem ar. Depois que a adrenalina diminuiu, a dor intensa continuou por dias. Em 14 de dezembro de 2008, um disparo a curta distância de espingarda não letal de calibre 12, o mesmo cano que feriu o trabalhador, matou um comerciante e feriu seu irmão após um churrasco da família no centro de Balneário Camboriú. O tiro foi feito por um policial militar.

Conforme o manual da empresa Condor, responsável pela venda de armas não letais para o Estado, o projétil de borracha não deve ser disparado a distâncias inferiores a 20 metros. “O disparo deve ser feito apontando-se a arma para as pernas dos infratores da lei”, orienta. Desde janeiro de 2014, o governo catarinense já gastou mais de R$ 4,3 milhões em sprays de pimenta, granadas, balas de borracha e kits com armas e dardos elétricos, entre outros equipamentos usados em manifestações. Todas as compras foram feitas sem exigência de licitação. Em apenas um desses contratos foram adquiridos 2,5 mil granadas, 12,4 mil balas de borracha e 220 tubos (sprays) de pimenta. Tudo ao custo de quase R$ 1 milhão.

De pelos menos 13 servidores feridos no dia 12 de julho, quatro sofreram tiros de bala de borracha acima da linha de cintura, algo que também é contra recomendações de órgãos como a Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) e a Organização das Nações Unidas (ONU). Em alguns deles, as imagens exibidas pela TV mostram que esses disparos são feitos a distâncias inferiores a cinco metros.

– A gente não estava oferecendo resistência nenhuma.

O cara me deu tiro de cima, de forma covarde, na minha barriga. Sem falar de vários outros colegas baleados no peito, nas costas, nos dedos. Foi muita covardia o que eles fizeram – conta Luiz Pimentel, 38 anos, servidor da Comcap há 15 anos, cuja barriga ainda guarda estilhaços do projétil de borracha.

Em relação aos ferimentos em partes vulneráveis das pessoas, citando costas, barriga e peito, Maryanne Mattos defende que para analisar isso precisava dos laudos periciais e não tinha essas informações no dia em que recebeu a reportagem. Sobre a atuação dos guardas, diz que a corregedoria está averiguando as imagens para verificar possíveis excessos. Também não soube responder quanto de armamento não letal foi usado naqueles dias e se limitou a responder em nota “que foi o suficiente”. Ela garante, porém, que as armas foram posicionadas para baixo da linha da cintura:

– A tendência é que as pessoas se afastem, mas, no caso deles (servidores), vinham cada vez mais para cima, para o enfrentamento. Em 13 anos de Guarda, nunca vi nada igual.

Em nota, a Polícia Militar diz que segue as orientações previstas pelos fabricantes dos armamentos e munições utilizados no âmbito da corporação. “Não há nenhum registro de cidadão lesionado em decorrência da ação de um policial militar. Mesmo assim, a instituição prestou auxílio às pessoas feridas e solicitou atendimento através da sua rede de rádio, conforme fotos em anexo”, acrescenta.

Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil de Santa Catarina (OAB/SC), o advogado Sandro Sell afirma que a “polícia foi colocada no lugar da política”. Ele entende que o fato gerador de toda a tensão na Câmara de Vereadores de Florianópolis foi a dificuldade em haver negociação política para que os trabalhadores pudessem acompanhar as sessões. Sell avalia que tanto a PM quanto a Guarda Municipal e os sindicatos “precisam mudar suas atitudes”:

– Ninguém nega que precisamos da polícia. Só que essa polícia tem muita dificuldade para lidar com movimentos que são próprios da sociedade civil, como protestos. A tática de enfrentamento sempre é muito bélica. É necessário que as forças recebam treinamento para negociar com os manifestantes.

 

 Diorgenes Pandini

apesar de cada corporação ter um protocolo, especialistas em segurança afirmam que atirar

com armas de borracha acima da cintura e à

queima-roupa fogem ao bom-senso.

 

MARCO FAVERO, BD 18/5/2017

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estudante joinvilense Eduardo Söchtig carrega até hoje a marca da lesão que sofreu durante uma manifestação em Brasília no fim de maio. Ela é invisível para quem não conhece o rapaz, mas pessoas próximas lidam diariamente com o problema. Ele perdeu a memória recente após uma forte pancada na cabeça. Se foi bala de borracha, paulada ou explosão, não sabe dizer. Acordou no meio da multidão sem saber o que havia acontecido.

Estudante do terceiro ano de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Söchtig teve que recomeçar os estudos. Apesar de se mudar para Florianópolis há mais de um ano, conta que só lembra de morar com a família em Joinville. Todas as relações que fez na Capital catarinense ou depois de 2015 desapareceram. Hoje ele é acompanhado por uma neurologista, que trata o caso como uma lesão pós-traumática.

– Falaram que eu estudava. Achei tudo muito estranho. Agora estou lembrando de poucas coisas, mas não consigo relacioná-las – conta.

Segundo o médico legista Zulmar Vieira Coutinho, professor aposentado da Universidade Federal de SC, um tiro de borracha pode causar uma lesão mortal ou corporal. Ele, que lembra de observar o início do uso de armas não letais em Florianópolis, diz que é preciso tomar uma distância mínima, como orienta os manuais:

– Lembro de um caso em que o projétil chegou a penetrar a coxa de uma pessoa, causando uma lesão. Ou seja, dependendo da distância, pode causar desde uma lesão mortal até um traumatismo craniano encefálico (caso o disparo acerte a cabeça). Se pegar no fígado ou no baço, pode ocorrer uma hemorragia. Se perfurar a pele já é tratado como um caso de emergência.

Coutinho entende que os disparos precisam ser feitos nas pernas ou de longe. Distância que no caso do servidor Anselmo de Jesus, 42 anos, foi curta. Ele tem um hematoma nas costas, quase no pescoço, resultado de um tiro que sofreu enquanto se afastava de um dos tumultos na Câmara. Amigos o colocaram em um carro e o levaram ao Hospital de Caridade, onde recebeu curativo e, em seguida, alta. Encostar no sofá, diz, não é possível. Anselmo registrou boletim de ocorrência (BO) contra os guardas e aguarda o exame de corpo de delito para pedir atestado médico do serviço.

– Qualquer arma contra a multidão é algo questionável. Sempre que você analisa a situação de agressor e agredido, você tem que considerar o potencial. Uma mulher que está grávida, por exemplo, pode abortar (ao ser atingida). São conjuntos de condições clínicas que o atirador não conhece. Ele acha que está atirando em alguém saudável, mas a pessoa pode ser portadora de uma condição física que a torna vulnerável – destaca o médico Plínio Augusto Freitas Silveira, professor da Univali e que participou da formação da Política Nacional de Humanização.

Outro exemplo citado pelo médico é um tiro atingir os olhos, por exemplo, como aconteceu com o fotógrafo Sérgio Andrade da Silva durante manifestações em 2013 na capital paulista. O profissional perdeu o olho. Além disso, observa, um indivíduo mais vulnerável pode ficar asfixiado por um spray de pimenta.

– A expressão (armas não letais) é apenas um eufemismo para o Estado atenuar sua violência. Outros países evitam esse tipo de arma – afirma.

Ex-comandante geral da Polícia Militar de Santa Catarina, o coronel Nazareno Marcineiro, hoje na Reserva, avalia que a força, quando necessária na contenção de distúrbios civis, deve ser de forma paulatina e gradual. Mesmo com as recomendações existentes para distância e alvo dos disparos não letais, Nazareno pontua que a escala para o emprego das tecnologias existentes fica “a juízo de valor de quem estiver comandando na área”. Essa decisão, destaca, vem das circunstâncias ambientais do local e há possibilidade de se ter um aumento da tensão caso não haja intervenção.

Para a pesquisadora da USP Giane Silvestre, porém, esses confrontos podem afetar a relação com a comunidade. Ela lembra que pesquisadores, principalmente dos Estados Unidos e da Inglaterra, chegaram à conclusão de que a forma como a polícia trata a sociedade é mais importante para as pessoas do que a redução de índices de criminalidade.

– Quando a polícia consegue interagir de uma forma que a sociedade entenda que o tratamento é justo, esse tem muito mais efeito – explica.

O coordenador da Sou da Paz, Bruno Langeani, acrescenta que o excesso de truculência muda o foco da manifestação para as forças de segurança. Se antes o Estado era o alvo, depois de episódios de confronto os policiais acabam levando a culpa. Cenário que é ruim, segundo ele, também para as corporações.

Para quem foi ferido, a situação é ainda pior. O atestado médico de Luiz Pimentel, o gari baleado no abdômen em 12 de julho, expirou em 27 de julho e, apesar de ainda estar “com a barriga aberta”, retomou o trabalho no caminhão da Comcap na quinta-feira, recolhendo lixo nas ruas da Capital. O serviço pesado atrapalha o ferimento, mas os colegas de roteiro têm se desdobrado para poupá-lo do esforço demasiado. Coberta com gaze e esparadrapo, a marca daquela noite ainda está presente.

– Não cicatrizou ainda. A ferida está aberta.

 

 Diorgenes Pandini

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