COMO A FALTA de ações contínuas de combate ao Aedes aegypti levou Santa Catarina a atingir recorde de municípios infestados

Inimigo
INVISÍVEL

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MATE OS MOSQUITOS

CLICANDO NELES

u

ma equipe de agentes passa de casa em casa. Percorre a cidade em charretes puxadas por mulas, lavam bueiros, diluem querosene nos pântanos, enchem de areia todas as garrafas que encontram, até mesmo aquelas em pedaços sobre os muros, usadas para afastar ladrões. Quando detectam o inimigo, a casa é coberta por uma tela gigante e borrifada com uma fumaça tóxica. A truculenta equipe de mata-mosquitos, como eram chamados os agentes do Serviço de Profilaxia da Febre Amarela, coordenada pelo médico e cientista Oswaldo Cruz, tinha a missão de erradicar o inseto transmissor da doença no Rio de Janeiro no início do século passado.

Mais de cem anos depois, a caçada ao mosquito continua. Com um centímetro de tamanho, o Aedes aegypti ainda representa um desafio para a saúde pública do país. Apesar de não transmitir febre amarela desde 1942, o inseto é vetor de doenças como a dengue, a chikungunya e o zika.

Em Santa Catarina, não é diferente. Em 2016, o Estado atingiu o maior número de diagnósticos de dengue da história, com 4.376 casos confirmados. Neste ano, o sinal de alerta permanece com recorde de municípios catarinenses infestados pelo mosquito. São 53 prefeituras que precisam lidar com ruas tomadas de focos do inseto, o que representa 18% das cidades catarinenses.

A responsabilidade de manter as comunidades livres do mosquito — e a doença controlada — é dos municípios. Mas apesar de repasses crescentes de verbas para as prefeituras, muitas ainda enfrentam dificuldades no combate.

No ano passado, o governo federal repassou R$ 1,7 milhões para as 295 cidades de Santa Catarina promoverem ações de combate ao inseto. O governo estadual também fez um aporte  pontual de R$ 3,7 milhões a 66 municípios com infestação ou risco. Em 2017, Brasília irá enviar R$ 3,2 milhões aos municípios catarinenses, crescimento de 88,2% em comparação com 2016.

No jogo de empurra, algumas prefeituras reclamam da falta de verbas para contratação de agentes de endemias, que são os responsáveis pelas ações de combate ao mosquito. Já a Diretoria de Vigilância Epidemiológica (Dive-SC), órgão estadual que orienta ações e capacita os profissionais, alega que as cidades não mantêm ações de vigilância de forma sistemática, essenciais para evitar a transmissão epidêmica das doenças e infestação. O Ministério da Saúde banca 625 agentes em municípios catarinenses e repassa R$ 633 mil mensais para esses profissionais.

A equação que explica porque o Estado está infestado de mosquitos inclui ainda a falta de equipes, ausência de ações contínuas de prevenção e falta de mobilização da própria população.

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inhalzinho é o retrato de como a falta de controle sobre o mosquito cria condições para que a doença evolua de forma rápida e avassaladora. A cidade, que fica a cerca de 50 quilômetros de Chapecó, passou de apenas três diagnósticos de dengue em 2015, todos contraídos em outras regiões, para se tornar a localidade do Estado com mais casos no ano passado. Em 2016, havia 2.453 pessoas infectadas no município de 16 mil habitantes, 61% dos casos autóctones em Santa Catarina. Carência de efetivo para a vigilância constante, ausência de conscientização da população e ações equivocadas na gestão da saúde pública são alguns dos motivos que explicam a infestação.

A enfermeira coordenadora da Vigilância Epidemiológica de Pinhalzinho, Ivanete Althaus, afirma que, no início, os agentes de combate às endemias, que atuam no controle do Aedes aegypti, vistoriavam vasos de plantas e ralos, mas checavam as calhas e cisternas apenas superficialmente. Depois da epidemia, os maiores criadouros do mosquito foram localizados justamente nesses pontos.

O repasse do governo federal para Pinhalzinho cresceu: eram R$ 7.497,17 em 2015 e, neste ano, serão R$ 8.295,41, divididos em duas parcelas.

A maior despesa é o custeio dos agentes de endemia: são R$ 5.070 mensais, que cobrem salários de cinco profissionais. Além disso, há R$ 2.383 mensais para vigilância em saúde, que inclui outros programas.

Para a prefeitura, os recursos não são suficientes para dar conta do trabalho de combate ao mosquito. Depois da epidemia, as ações das equipes de saúde foram intensificados e a população, que até então via a dengue como uma doença distante, precisou adotar medidas preventivas. Para reforçar o trabalho, mais um agente foi contratado. Hoje são seis agentes, um coordenador e outras seis pessoas cedidas pelo Departamento Municipal de Estradas e Rodagem (Dmer) que atuam no combate.

O secretário municipal de Saúde, Elmo Zanchet, que assumiu o cargo neste ano, diz que as ações não foram suficientemente intensas para conter o problema, apesar de já haver infestação:

– Temos um repasse muito pequeno do Ministério da Saúde. Não dá para pagar nem metade do que ganham os agentes de endemia, o que vou fazer? O que importa é preservar os cofres públicos.

Mauro Brancher carrega repelente e inseticida no furgão que usa para trabalhar depois de ser diagnosticado com dengue em Pinhalzinho

Não conseguia nem levantar o braço para dirigir. Não tinha apetite, um gosto de podridão na boca

e nem desconfiava o que era

 

 

Mauro brancher,

morador de Pinhalzinho infectado por dengue

Para o empresário Mauro Brancher, 49 anos, a mudança começou pelo guarda-roupa. Ele substituiu as bermudas e sandália por calça e sapatos fechados. Na porta do furgão que usa para trabalhar, guarda um repelente em spray e consegue reconhecer o Aedes aegypti, do tamanho de um grão de arroz, de longe. Ele foi um dos primeiros a receber o diagnóstico de dengue em Pinhalzinho, depois de ser infectado em Chapecó, em 2015.

Quando se fala em dengue na cidade, sempre surge alguém para contar sobre a dor paralisante da doença e completar com um “só quem teve sabe o que é”. A população também sabe de cor e salteado os hábitos do Aedes aegypti – ele prefere picar nas pernas e de dia – e como reverter a infestação, acabando com os focos do mosquito. Antes da epidemia, no entanto, diagnosticar a doença não era tão fácil. Brancher recorreu à internet para tentar identificar o que tinha.

– Não conseguia nem levantar o braço para dirigir. Não tinha apetite, um gosto de podridão na boca e os médicos não sabiam o que era. Entrei no Google para pesquisar o que era dengue. Se esperasse mais tempo, eu não ia sobreviver.

Os sintomas de dor forte no corpo, cansaço e gosto ruim na boca derrubaram Brancher. Como ele, um em cada oito habitantes de Pinhalzinho também sofreu com a doença.

– Para a gente é pior ver o mosquitinho do que uma cobra venenosa. Para caçar não é fácil – diz a esposa de Mauro, Aidê, uma das poucas a sair ilesa na cidade.

A aposentada Anúncia Rosalina Ramba, 80 anos, nasceu em Pinhalzinho e não lembra de ter visto algo como a epidemia da dengue. Moradora da rua Espírito Santo, no bairro Santo Antônio, ela sabe de cabeça quais vizinhos tiveram a doença. Poucos escaparam:

– Fiquei cinco dias internada e achei que ia morrer, dois meses sem poder comer. Neste bairro, a doença ganhou tudo. Não desejo nem para um cachorro o que eu passei – diz.

Algumas famílias, como a de Carlos Gehlen, apelaram para a vacina contra dengue, por enquanto só disponível em laboratórios privados. São necessárias três doses, sendo que cada uma chega a custar R$ 380 e sua eficácia ainda é questionada por alguns especialistas. Além disso, é restrita a uma faixa etária. Crianças menores de nove anos, por exemplo, não podem tomá-la.

Ali perto, uma família inteira pegou dengue. Os aposentados Elmo e Lucia Floss, que moram em frente ao filho e à nora, sucumbiram ao mesmo tempo à doença em 2016. Como medida preventiva, o casal de idosos instalou telas protetoras nas janelas e portas no verão.

– Fizemos tudo isso para prevenir, mas já era tarde. Quem sabe para esse ano ajude a nos proteger – afirma Lucia.

Lucia e elmo Floss instalaram telas nas janelas de casa para

tentar se proteger

S

anta Catarina registrou o primeiro caso de dengue autóctone (contraído dentro do território) em 2011. A partir daí, a doença avançou. Em 2015, perdeu o posto de Estado com menos registros de dengue do país. Hoje, ocupa a sexta posição.

O coordenador estadual do Programa de Controle da Dengue da Dive-SC, João Fuck, diz que nos últimos dois anos o Estado aumentou o número de municípios infestados em função de problemas nas equipes das prefeituras e, por isso, não foram realizadas as atividades de vigilância. Com a maior presença do mosquito, ficou mais fácil a disseminação das doenças:

– Com a vigilância, o combate é uma atividade muito fácil. Depois de infestado, as atividades têm que ser mais constantes e exigem uma equipe maior. Então, tem que investir na vigilância. É melhor do que esperar a infestação para começar as ações.

Dados da Dive-SC apontam que mais da metade das cidades que receberam verba para combate ao mosquito em 2016 não cumpriram todas as metas estabelecidas. O presidente do Conselho de Secretarias Municipais de Saúde (Cosems), Sidnei Bellé, defendeu os municípios dizendo que os gastos foram muito maiores do que o repasse do Estado.

Outro desafio é que neste ano, com a troca de prefeitos, mais uma vez é necessário destacar a importância das ações de prevenção dos municípios e de manter as equipes técnicas de combate, aponta Fuck.

Para Eleonora D’Orsi, professora do Departamento de Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o Estado ainda apresenta indicadores um pouco melhores do que o restante do país em função do clima, já que o frio elimina parte da população adulta do inseto. Ela avisa que é só uma questão de tempo até que o Aedes aegypti se adapte a isso também e a tendência é que tenhamos um aumento nos casos das doenças transmitidas pelo inseto. Um das estimativas dos pesquisadores é que neste ano cresça o número de ocorrências de chikungunya, algo que já tem sido percebido em outros Estados. O vírus tem grande potencial de virar uma doença crônica e ataca as articulações, com dores e inchaço que podem durar meses. O que não diminui a preocupação com zika, relacionado à grande parte dos 2 mil casos de microcefalia em bebês no ano passado no país; e dengue, que causou duas mortes em Santa Catarina também em 2016.

Carlos Brisola Marcondes, do Departamento de Microbiologia, Imunologia e Parasitologia da UFSC, acrescenta que, além desses vírus, há outros na fila e que são transmitidos pelo Aedes aegypti, como o mayaro, e que podem começar a circular no país.

A

pesar do cenário mais otimista deste início do ano – até agora, apenas um caso de dengue e um de chikungunya foram registrados em Santa Catarina –, o momento é de alerta. O coordenador estadual da Dive-SC reforça que, mesmo sem os vírus, ainda há muitos focos de Aedes aegypti. Além disso, o clima de calor intenso e chuvas cria o cenário ideal para o mosquito se reproduzir.

Em Pinhalzinho, a sensação é de um verão mais tranquilo, apesar de haver focos do mosquito. O único hospital da cidade, que chegava a atender 100 casos da doença por dia, não registrou em seu ambulatório nenhum paciente com o vírus desde janeiro.

– A gente não sabe o que está acontecendo. No ano passado já estava um caos total aqui dentro. Tivemos que contratar uma nova equipe, com médico, enfermeiro e técnico – lembra o diretor administrativo da unidade, Silvio Mocilin, que também ficou internado com dengue durante quatro dias e diz que sentiu as sequelas por meses.

No período da epidemia, Pinhalzinho parou de rea­lizar exames de rotina e todos os agendamentos nos postos de saúde foram cancelados:

– Nós respirávamos dengue. De janeiro a maio, não foi feito exame de rotina, check-up de ninguém. Até o final deste ano, ainda temos a preocupação de algum remanescente da epidemia passada, porque os ovos sobrevivem – conta a enfermeira Ivanete.

Uma das explicações para a redução de casos na cidade foi o frio intenso do inverno, que teria diminuído a população de mosquitos. Outras seriam a ação das equipes e a população mais engajada, acreditam os gestores:

– Nosso foco é eliminar qualquer possível criadouro, porque se entra um novo vírus tudo pode voltar.

A gente não pode deixar a população despreocupada, senão esquecem dos cuidados – diz o coordenador do Programa de Controle de Dengue de Pinhalzinho, Claudir Antonio Kollett, enquanto participava de um mutirão para recolher entulhos e eletromésticos com a equipe de obras e manutenção do município.

A causa da dengue é a falta de estrutura urbana, de coleta de lixo e de saneamento. A culpa não é individual, não é das pessoas que têm vasinho de planta em casas

 

eleonora D’Orsi,

Professora de Saúde Pública da UFSC

N

ão é fácil combater o Aedes aegypti e retomar o controle da situação. O inseto é doméstico e oportunista. Os ovos podem ficar guardados por até um ano esperando o momento ideal para eclodir e a fêmea os espalha em diferentes lugares, o que dificulta a eliminação. Marcondes, da UFSC, que já abordou o tema em matérias do New York Times e Science News, explica que o inseto é muito bem adaptado à proximidade com os humanos e se desenvolve “em criadouros que produzimos em quantidade”:

– Ele é versátil, vive dentro e fora das casas, desenvolve-se rápido e gosta de sugar sangue humano, fatores que aumentam a chance de transmitir vírus.

E a dificuldade de vencer essa disputa com o inimigo aumenta diante do crescimento desordenado das cidades.

– A causa da dengue é a falta de estrutura urbana, de coleta de lixo e de saneamento. A culpa não é individual, não é das pessoas que têm um vasinho de planta nas suas casas, é da corrupção e da pobreza que assolam o país – defende a professora Eleonora.

A pesquisadora do Instituto Oswaldo Cruz Denise Valle discorda. Para ela, o descontrole em relação ao mosquito está relacionado, principalmente, à dificuldade de fazer com que as pessoas mudem sua conduta e destinem pelo menos 10 minutos por semana para eliminar os focos de água parada, única maneira de bloquear o ciclo do inseto:

– Não estou eximindo o poder público porque tem relação com saneamento, coleta de resíduos, oferta regular de água, mas faz parte do controle do mosquito uma conduta de cada um de não deixar pontos de água no seus espaços. Tem o viés assistencialista do controle, a gente sempre fica esperando que o governo faça alguma coisa, mas isso é muito complicado porque 80% dos criadouros estão dentro das casas das pessoas.

Eleonora, no entanto, defende que a culpa está sendo transferida para os indivíduos por ser mais cômodo e que as medidas de combate são paliativas, já que nenhuma delas ataca a raiz do problema.

Experimentos com mosquitos transgênicos para reduzir a população de Aedes aegypti avançam. Além disso, há testes com a bactéria wolbachia, que impede a espécie de ser infectada pelo vírus de dengue. No entanto, Denise pondera que essas são medidas pouco sustentáveis e apenas complementares ao trabalho da população.

Vale lembrar que o Brasil já venceu o mosquito no passado. Porém, o relaxamento das medidas de controle permitiu que ele voltasse a atacar. Na última vez em que
a praga foi erradicada, em 1973, a urbanização era muito menor. Oswaldo Cruz livrou-se do inseto em 1907 ao recrutar equipes para demolir residências e usar fumaça tóxica. Hoje, o empenho necessário é muito mais complexo. Para enfrentar o mosquito, a população precisa eliminar criadouros, municípios e Estados
tem que planejar e executar ações de combate e o investimento em
saneamento deve ser retomado. Talvez essa ação combinada seja o único
repelente eficaz para combatê-lo.

 

QUEM SOMOS

Reportagem

Karine Wenzel

Editora

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Ricardo Wolffenbüttel

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