Sandália de prata

s

ímbolos de uma época em que a arte de sambar era prioridade. Seguido de outro requisito básico, o espírito carnavalesco. De quem não era exigido corpo escultural, ainda que fossem lindas. As rainhas do Carnaval de Florianópolis são retrato do seu tempo. Algumas, deslizavam os saltos sobre paralelepípedos da antiga cidade. Outras, desafiavam as dificuldades até para compor a fantasia. Em outros momentos, as lutas se davam no plano dos preconceitos. Branca para ser passista, negra demais para ser majestade.

Patrícia Areias, Kelly Nunes e Ana Cristina, a Fofa, personagens desses caminhos percorridos por tantas mulheres. No ano em que o reinado de Chayeni Bittencourt se repete na corte do Rei Momo Hernani Hulk, o caderno Nós, como súdito, reverencia e presta homenagem a essas trajetórias. Para cada entrevistada, escolhemos uma composição que instiga memórias. Afinal, mesmo que passe uma vida, pelo samba, o amor dessas musas não têm fim. É só escutar a primeira batida de um tamborim.

Tenho muitos amigos,

eu sou popular

n

Se alguém perguntar por mim, diz que fui por aí...

ão levando o violão debaixo do braço, como escreveram Zé Keti e Hortêncio Rocha, mas com a pergunta na ponta da língua: quem foi a Rainha do Carnaval que rompeu o paradigma de que só negras sabiam sambar?

– Patrícia Areias.

Em qualquer esquina eu paro.

E faço outra pergunta: qual a Rainha do Carnaval que precisou de escolta policial para deixar o lugar do concurso porque pessoas não admitiam ter uma branca como majestade?

– Patrícia Areias.

Em qualquer botequim eu entro.

E lanço mais uma dúvida: qual foi a única Rainha do Carnaval que atravessou dois reinados?

– Patrícia Areias.

Exatos 30 anos separam aquele reinado de 1987 de hoje. Época marcada pela ascensão do príncipe regente, Hernani Luiz Barbosa, o Hulk, e a passagem do cetro e da coroa pelas mãos de Hilton da Silva, o Lagartixa, até ali, a Majestade Imperial que  tinha a função de abrir desfiles acompanhado de lindas rainhas. Momentos depois de que o público em sinal de respeito levantasse e o toque do clarim anunciasse que estava decretado o estado da folia...

Patrícia Areias tem uma explicação pela paixão pelo samba e identificação com o ritmo:

– Eu fui amamentada por uma negra, a dona Zezé. Por isso essa bunda desse tamanho, o peito desse tamanho, isso vem dos negros, só pode (risos).

E foi muito cedo que a branquela (dá gargalhadas quando usa a expressão) sentiu que iria se tornar uma das mulheres mais icônicas do Carnaval na Ilha da Magia. Paixão que se manifestou quando era pequenininha. Na época, havia muitos shows de Sargentelli e suas mulatas na cidade. Os espetáculos eram na antiga churrascaria Ataliba, em Coqueiros. A família frequentava o lugar e nos dias das apresentações, a menina não sossegava, ansiosa para ver aquelas negras maravilhosas sambando:

– Aquilo mexia comigo, meu coração disparava, eu me arrepiava. Era como se dentro de mim, coberta por uma pele negra vivesse uma daquelas mulatas. Por isso, falo que tem a ver com o leite que suguei no peito de dona Zezé.

O pai, hoje aposentado, era funcionário da Eletrosul. Quando a família percebeu a menina com sete anos sambando com aquela desenvoltura, começou a levá-la para a Consulado. Na época, a agremiação era um bloco, e os ensaios ocorriam no galpão do Umbu, no parque da Eletrosul. Começava ali o caso de amor com a vermelho e branco, a escola de coração que anos depois lançaria Patrícia Areias como rainha. Antes disso, ainda como passista mirim, foi homenageada com uma música. “Menina Patrícia, você é nossa esperança”, dizia um dos versos.

 

Patrícia arregala os olhos e dá um sonoro não quando lhe é perguntado se a performance começou no asfalto da passarela Nego Quirido.

– Nãoooo! Fui sambista do paralelepípedo da Avenida Paulo Fontes e dando volta na Praça XV. Sinto-me lisonjeada por ser reconhecida como quem abriu caminho para muitas meninas brancas.

Nesse cenário, ela conviveu com outras mulheres importantes para o samba, como a eterna cidadã-samba Nega Tide.

– A Tide me amava nos bastidores, mas chegava na passarela e dizia: branca, vou te dar a pior nota. Vais ganhar a pior nota, porque pra mim só negra vale no samba. Mas era muito divertido, eu morro de saudades da Nega Tide – recorda.

Do passado, só boas lembranças, que incluem desfiles com fantasias em bailes de gala, amizades em todas as escolas de samba da Capital, convites para ser jurada em concursos de beleza e de samba, troféus, placas, homenagens.

– Até de porta-bandeira desfilei – recorda.

Foi quando a saudosa porta-bandeira Cristina de Figueiredo adoeceu. O mestre-sala era o Mazinho, e a ideia da substituição foi da própria Cristina. No dia do desfile, a costureira da Consulado, dona Iraci Goulart, apresentou a fantasia, uma roupa de boneca, mas com muito pano para quem seria cidadã-samba.

– Não vou sair assim, estou toda tapada. Daí, ela foi pra baixo, arrancou todas as anáguas que compunham a roupa da porta-bandeira e me deixou transparente – conta.

A nota?

– Dez! Eu e Mazinho tiramos 10!

Hoje, o ritmo é outro. Patrícia trocou o apartamento na cidade e mora na praia da Pinheira, em Palhoça. Aos 45 anos, mãe de Augusto, 25, e Júnior, 19, está se experimentando como empresária com um food truck, no bairro Santa Mônica.

Patrícia Areias é isso, personagem inspiradora.

Se alguém perguntar por mim...

Tenho muitos amigos, eu sou popular

Eu estou na cidade, eu estou na favela

Eu estou por aí...

 

Entre Hulk, o atual Momo, e Lagartixa,

lendário rei do Carnaval de Florianópolis, em 1987

Sem preconceitos

ou mania do passado

o

Tá legal, eu aceito o argumento

Mas não me altere o samba tanto assim

s tempos são outros e o culto ao físico saiu das academias e atravessou a passarela. Corpos esculpidos à parte, quem pretende ser Rainha do Carnaval não pode descuidar do quesito básico, sambar. Recado de quem entende do riscado, Kelly Nunes Sione, a dona da coroa de 1992.

Esse sentimento vem de longe. Do tempo em que o palco era a Avenida Paulo Fontes. Ali se iniciava um caso de amor como os grandes romances de antigamente, na base do olhar. Época em que a menina magricela apenas espiava. Afinal, era criança ainda, e esse negócio de sambar era coisa para gente grande. Sentada no meio-fio da calçada, ela olhava pelo alambrado aqueles mulherões se requebrando e pensava: serei como uma delas.

E foi. Na infância, o cenário era próximo da recém-inaugurado Terminal Rita Maria. Na adolescência, as sedes das escolas. Estava com 13, 14 anos e o ritmo do pensamento era o mesmo de antes: queria se transformar em dona da nobre arte de sambar. Até que, no começo dos anos 1990, uma família amiga, os Calixto, a indicou para concorrer pela Embaixada Copa Lord, escola pela qual guarda um carinho especial. Embora a cidade toda saiba e respeite a paixão maior, a Unidos da Coloninha, identificação que se deu por ser moradora da parte continental de Florianópolis.

As recordações do reinado são boas. Ainda que marcadas por imensas dificuldades. A conquista da faixa exigiu muita luta. Sobrava samba, mas faltava dinheiro. Viúva e com dois filhos para criar, a mãe, Carmem Lúcia, não conseguia ajudar. Era necessário priorizar a compra de comida para pôr na mesa.

Foram semanas atrás das coisas para montar a fantasia, que ela conseguiu emprestada. Os detalhes incluíam ajustes e algum material para dar originalidade. Só às vésperas se deram conta que faltava algo muito importante para quem iria enfrentar uma passarela, os calçados. Amigos ajudaram a comprar:

– Lembro que eram sandálias de prata. Humildes, mas que me fizeram Rainha do Carnaval daquele ano.

Hoje, olhando pelo espelho do tempo, Kelly acredita que toda a luta a fortaleceu. Ao receber a faixa e as flores, diz ter passado um filme na cabeça com tudo o que havia enfrentado para alcançar aquele momento. O empenho da mãe foi importante demais para a conquista.

– Eu tinha tudo para não me tornar rainha. Mas eu nunca perdi a esperança e, mesmo sem ter noção, acabei me tornando uma referência para outras meninas pobres – diz.

Sem preconceitos ou mania do passado.

Kelly recorda que todas as meninas daquela época tinham porte físico e estilo próprios. Os cabelos eram diferentes: com coque, black, careca. Algo era mais comum, a sandália salto plataforma, de cortiça. Nada desafiador para quem realmente sabia sambar.

– A gente se preocupava em estar bem arrumada e com o samba no pé.

Acha que tudo tem o seu tempo e aproveitou ao máximo o dela. Mas quando o assunto é corpo, Kellly não se esquiva. Para ela, está tudo muito igual. Chato, até. Esteticamente pode estar tudo bonito, barriguinha saradinha, bem certinho. Mas num mesmo compasso.

– Temos meninas belíssimas e com um corpo maravilhoso, mas que não conhecem a entidade, sem aquele tchã dentro da agremiação. Enquanto isso, surgem garotas sem condições de frequentar uma academia. Mas com garra, cheias de desejo em aprender a sambar, com vontade de defender as cores da escola.

Querem ver Kelly dar gargalhadas? É brincar que ela segue Pinah, a cinderela negra da Beija-Flor que ao príncipe (Charles) encantou.

– Eu, sinceramente, sou muito vaidosa, mas minha vaidade é maquiagem. Mas cabelo? Sou uma típica filha de Iansã. Adoro brinco grande, mas tenho muita dificuldade em manter cabelos longos – conta, explicando a preferência pela cabeça raspada ou cortes muitos curtos.

Na casa da família, no bairro Forquilhinhas, em São José, guarda faixas, troféus e fotografias que marcam as conquistas. Algumas memórias têm lugar no coração, como músicas que gosta de cantar. Cita duas. Uma por ser manezinha.

 

Kelly, 42 anos, trabalha com educação infantil e tem dois filhos, Matheus, 13, e Maria Eduarda, 21. Quando chega fevereiro, se sente energizada. Como aquela magricelinha colada ao alambrado. É hora de cantar com Paulinho da Viola.

Olha que a rapaziada está sentindo a falta

De um cavaco, de um padeiro ou de um tamborim.

 

Magricela e com cabelo curtinho, Kelly deixou

sua marca registrada no reinado, em 1992

O grande poder

transformador

A

Desde que o samba é samba é assim

na Cristina dos Santos é a Rainha do Carnaval mais fofa que Florianópolis já viu coroar. Filha mais velha entre três irmãos, nascida de um sergipano e uma catarinense, ganhou o apelido por causa de uma vizinha que ao visitar o bebê repetia: “Que coisa mais fofa, que coisa mais fofa!” Pronto! Seu Antônio dos Santos gostou tanto que também começou a chamar a filha de Fofa.

Resultado? A Fofa de hoje, 38 anos, chega a esquecer o nome de registro. Assim também acontecia com os súditos no reinado de 1996, os quais raramente a chamavam como Ana Cristina. Inclusive, a imprensa.

Fofa foi iniciada no Carnaval pelas mãos da mãe, Vanda da Costa Santos, foliã à moda antiga. Daquelas que vai para o barracão – sem ganhar um tostão – colar fantasias com os filhos no colo. Naquele tempo, moravam no bairro Bela Vista, em São José, perto da escola de samba Lufa-Lufa (Acadêmicos do Samba). Gente simples, trabalhadora, que não se apropria ou desvia verba pública destinada à cultura. Gente que faz valer.

O samba não vai morrer.

Fofa nasceu e cresceu em terreno fértil.

A família gerou uma tríade de estrelas: já são três rainhas no Carnaval de Florianópolis. Depois dela, foram eleitas as primas Lidiane e Gilane da Costa Matos, irmãs. Mas o reinado começou um pouco diferente das parentes. Ela se elegeu rainha sem representar uma escola ou bloco. Na época, dançava no Grupo Ileaê Samba Show, que saía à frente das baterias, em diferentes escolas, mas sem vinculação com a agremiação. Certo dia caminhava de short, camiseta e chinelos pela Rua Felipe Schmidt, centro da Capital, quando encontrou Fernando Ramos, responsável pelo cerimonial de grandes eventos. O promoter a estimulou a fazer a inscrição. Mas avisou: era o último dia. Fofa se candidatou, mas sem muita pretensão. Enfrentou diferentes eliminatórias e desbancou 31 candidatas.

– Era perna de fora mesmo: cada uma levava o seu biquíni e não se podia usar meias – lembra.

As candidatas respondiam a uma questão oral. Para Fofa foi perguntado: para você, o que é o Carnaval?

– A festa do povo para o povo, onde as pessoas não têm classe social, onde não existe conta bancária, onde advogada vira foliã usando tênis e camiseta; enquanto a empregada doméstica se transforma em rainha de bateria – respondeu.

A Rainha Fofa virou celebridade: era reconhecida no ônibus, nas lojas, nas ruas. Não havia internet, mas a cobertura da imprensa era grande. Muitas entrevistas para jornais, filmagens para TVs, programas de rádio.

– Vinham crianças, senhorinhas paravam na frente de casa e chamavam a gente no portão. Até as antigas professoras vinham procurar, dizer que tinha sido aluna em tal escola, que a filha também queria ser rainha, como é que fazia.

A lágrima clara sobre a pele escura.

Mas nem tudo foi tão suave. Precisou enfrentar comentários preconceituosos.

– Houve quem questionasse que eu era mais negra do que as duas princesas da minha corte. Mas o meu talento como sambista, até hoje, não deixou nada a desejar a ninguém. Eu sempre soube me posicionar, como mulher negra que sou.

E prossegue:

– Não seriam comentários racistas que iriam me abater e impedir que a festa de Momo fosse linda do jeito que foi, desmerecendo um título tão soberano, que me faz rainha eterna.

O espírito crítico se soma ao Carnaval.

E sobre um assunto delicado: a sexualização das meninas. Mãe de Sofia, 16 anos, e de João Cândido, de cinco, considera que os pequenos devem sair em alas de criança.

– Não gosto dessa sexualização de meninas novinhas na frente das baterias e das escolas. Eu era jovenzinha também, mas tinha mãe que acompanhava e um pai presente. Sambar, claro, mexe com os braços, com as pernas, com o corpo. Mas não essa sexualização toda que se vê.

Fofa, aquela que se fez rainha sem muita convicção, é dessas personagens que mesclam doçura com resistência. Majestade com os pés cravados no terreiro do samba de raiz. Por vezes, na laje do quintal da casa da mãe, onde rolam churrascos e batucadas. A Fofa que se reflete nos versos dos baianos Caetano e Gil.

O samba é o pai do prazer

O samba é o filho da dor

O grande poder transformador.

 

Ana Cristina, a Fofa, e sua corte à frente

do Berbigão do Boca, em 1996

 

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A LETRA DE SANDÁLIA DE PRATA

NOMES DAS RAINHAS E ANO DO REINADO

abre-alas

Expressões e curiosidades históricas do universo do samba

 

 

A primeira música especialmente composta para o Carnaval, mais precisamente para o cordão Rosa de Ouro, foi O Abre-Alas (1899), por Chiquinha Gonzaga.

 

Abre-Alas foi o nome dado à coluna de samba do Diário Catarinense, nos anos 1990 e 2000.

 

Ernesto Joaquim Maria dos Santos, o Donga (1899-1974), entrou na história por ter sido o primeiro compositor a gravar um samba: Pelo Telefone, em 1917.

 

A Deixa Falar foi a primeira escola de samba do Brasil. Fundada em 12 de agosto de 1928, no Rio de Janeiro, por Nilton Basto, Ismael Silva, Silvio Fernandes, Oswaldo Vasques, Edgar, Julinho e Aurélio, entre outros, tinha como cores oficiais o vermelho e branco.

 

O termo “escola de samba” foi usado, porque na Rua Estácio, onde aconteciam os ensaios, havia uma Escola Normal. As escolas funcionavam lado a lado e era preciso diferenciá-las.

 

Sem concurso para a escolha da rainha, a corte do Carnaval de Florianópolis se repete em 2017. A primeira e única vez que isso ocorreu foi em 1988 e 1999, com o reinado de Lúcia Brejeron.

 

A GRES Os Protegidos da Princesa é a escola de samba mais antiga de Florianópolis, fundada em 18 de outubro de 1948.

 

Nego Quirido: Justino Machado, sambista das antigas ligado à escola de samba Embaixada Copa Lord, e que dá nome ao sambódromo de Florianópolis.

 

Erotides Helena da Silva, a Nega Tide, foi a primeira a conquistar por seis anos consecutivos o título de cidadã-samba de Florianópolis.

 

Meu rei: gíria bastante usada entre sambistas que significa meu amigo querido.

 

Musa: mulher admirada, linda.

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