Crime sem castigo

Em cinco anos, o Ibama aplicou R$ 222 milhões em multas ambientais no Estado,
dos quais apenas R$ 2,6 milhões foram pagos. O valor integral serviria para
manter duas reservas ecológicas em Florianópolis por 70 anos

M

ais de dois terços das multas aplicadas pelos principais órgãos ambientais de Santa Catarina não são pagos. É como se 70 de cada 100 motoristas flagrados acima da velocidade deixassem de pagar pelo erro. A diferença entre os dois casos, porém, é que o infrator de trânsito não consegue renovar o documento do automóvel se não quitar a dívida ou pode perder a carteira de habilitação caso acumule outras penalizações em um ano. Nos crimes contra o meio ambiente, a história tem outro desfecho. A burocracia, a falta de conscientização e a pouca estrutura de quem fiscaliza abrem uma mancha de impunidade no sistema.

Juntos, o Ibama, a Fundação do Meio Ambiente (Fatma) e a Polícia Militar Ambiental catarinense aplicaram 27,4 mil autuações de 2011 a 2015, mas apenas 7,8 mil foram pagas nesse período – podem entrar nesse número multas de anos anteriores a 2011. Entre os que não são castigados, a maioria possui mais recursos e, consequentemente, consegue discutir em todas as instâncias para anular a dívida ou parte dela. Em tramitação, há processos de 2008.

De acordo com a lei ambiental, o infrator pode reduzir 90% do valor da penalidade caso cumpra o compromisso de recuperar a área. Mas, antes que isso aconteça, muitas infrações prescrevem por ficar mais de cinco anos em tramitação ou três anos paradas e não chegam aos cofres públicos nem 10%. Das 20 maiores multas aplicadas pela Fatma desde 2008, ano em que o sistema foi informatizado, seis estão nessa situação. A empresa ou pessoa também pode entrar na Justiça e pedir a anulação do castigo, o que torna o processo ainda mais lento.

– É um desprestígio para a fiscalização. Você fiscaliza, tanto é verdade que a quantidade de multa aplicada é alta, só que demora (a tramitação). Esse é o arcabouço jurídico que o Brasil tem. Isso é geral, não é só na questão ambiental. (Há) muita chance de recurso – defende o presidente da Fatma, Alexandre Waltrick Rates.

De acordo com ele, a demora na tramitação já foi bem maior. No Estado, depois que o fiscal da Fatma ou um policial ambiental autua, as duas instituições julgam o processo. Caso não goste do resultado, o infrator pode recorrer em segunda instância ao Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema), formado por membros de várias entidades, como Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SC) e Federação das Indústrias de Santa Catarina (Fiesc), e poder público. O problema, segundo Waltrick, ocorria nessa fase. Havia pelo menos duas dúzias de pessoas julgando ao mesmo tempo e alguns casos eram debatidos por mais de um dia. Com a demora, os processos se acumulavam. Desde 2015, o procedimento foi modificado e os recursos são distribuídos por três câmaras recursais, com no máximo seis cadeiras.

– Antes desse modelo, em 10 anos de Consema, foram julgados menos de 700 processos. Conseguimos em meses julgar 816 (de metade de 2015 a 2016) – afirma o

secretário-executivo do conselho, Eduardo Zimmermann.

No entanto, antes de chegar até o Consema, há outros gargalos. O doutor em ecologia e recursos naturais Marcus Polette afirma que o problema está dentro dos órgãos ambientais, que deveriam ser mais organizados:

– Se houvesse um órgão bem estruturado, haveria melhor controle nesses processos. A Fatma está bem aquém. Temos um Estado com uma economia pujante, e o órgão deve ser estruturado para essa condição. Não existe interesse do próprio governo nesse processo. As pessoas veem a questão ambiental como um problema.

O pesquisador explica que muitas autuações acabam sendo questionadas por não estar de acordo com a lei. Isso acontece, segundo ele, porque há poucas pessoas que precisam se dividir nas tarefas de fiscalizar, fazer processos internos e responder para órgãos como o Ministério Público – cerca de 80% das multas são encaminhadas para promotores, que podem denunciar a empresa ou a pessoa pelo crime ambiental.

Para Polette, uma arrecadação maior resolveria parte dos problemas das estruturas e poderia ser investida em unidades de reserva. Para se ter uma ideia dos valores que deixam de entrar nos cofres públicos, em cinco anos o Ibama aplicou o total de R$ 222 milhões em multas no Estado, mas arrecadou no período R$ 2,6 milhões. Como se de cada R$ 100, voltasse apenas R$ 1. No país, segundo o último relatório divulgado pelo instituto em 2015, 1% do valor das infrações voltaram nas autuações feitas entre 2005 e 2010.

Com esses R$ 222 milhões que vão para o limbo, por exemplo, daria para gerir por aproximadamente 70 anos a reserva extrativista do Pirajubaé e a Estação Ecológica de Carijós, ambas em Florianópolis. Cada uma, segundo o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), custa certa de R$ 130 mil por mês.

– Temos uma série de unidades de conservação e simplesmente elas não funcionam. Estão no papel por falta de recursos. Os próprios órgãos ambientais, como programas de monitoramento, poderiam ser otimizados com o retorno dessas autuações – defende Polette.

Para estabelecer os valores das infrações, os órgãos ambientais avaliam os danos causados, as condições financeiras e os antecedentes do infrator.

É

unanimidade entre os especialistas que geralmente a pequena empresa, que tem menos dinheiro, é quem paga pelas multas ambientais. O grande costuma ter mais fôlego para questionar juridicamente e recorrer da decisão.

– Ele (pequeno infrator) não tem advogado. A questão é consciência. Sabe que fez errado, vai lá e paga. É igual quando a gente toma uma multa de trânsito – diz Alexandre Waltrick.

O presidente da Fatma abre um parêntese e defende que nem toda empresa quer fugir do castigo. Há aquelas que já têm um histórico de consciência ambiental e recuperam a área, mesmo entrando com recurso para discutir o valor da autuação ou o tamanho do dano causado.

– Existem os que ficam no meio do caminho. Eles não têm consciência e têm advogado para discutir.

O major da Polícia Militar Ambiental Marledo Egídio Costa, chefe da sessão técnica do comando, diz que muitas pessoas não têm condições de pagar multas, mas que acabam arrumando um jeito. A maioria das autuações aplicadas pela corporação é referente à retirada de vegetação ou desflorestamento, que geram multas menores. Quando a multa é maior, a história muda.

– Mesmo com a lei ambiental e todos os programas educacionais e de conscientização, ainda há muitas pessoas com interesse de utilizar os recursos sem  preocupação ambiental. Ainda há falta de informação – diz Egídio Costa.

Hoje, os policiais têm a maior equipe entre os órgãos fiscalizadores no Estado. De acordo com o major, são 430 pessoas na rua e no setor administrativo, mas a estrutura ainda é pequena, já que eles são responsáveis por inspecionar terra e mar. A Fatma não tem o número exato de servidores, mas Waltrick diz que a equipe não chega perto dos colegas militares.

Mesmo com uma situação melhor em questão de estrutura, Egídio Costa destaca que a maioria das multas não é paga e é lançada em dívida ativa – quando é bloqueado serviço do Estado para o infrator e começa uma cobrança judicial, que pode se arrastar por anos. Mesmo assim, há a chance de pedir na Justiça a anulação do castigo.

A

prescrição das infrações é uma das grandes preocupações do promotor Paulo Antônio Locatelli, coordenador do Centro de Apoio Operacional do Meio Ambiente (CME), porque aumenta a sensação de impunidade. Mas isso não quer dizer que os infratores possam sair ilesos.

Ele e outros promotores da área recebem todas as multas ambientais que podem gerar processo civil e criminal. Fica a cargo de o Ministério Público denunciar ou não.

– Mesmo que esteja prescrito administrativamente, não há empecilho para a Justiça processar civilmente – diz Locatelli.

O secretário-executivo do Consema, Eduardo Zimmermann, explica que os processos com punições mais altas e crimes mais complexos demandam mais tempo de análise, até pelo tamanho. Geralmente são centenas de páginas. Mesmo que prescreva, segundo ele, o infrator ainda é obrigado a recuperar a área, quando dá para consertar o estrago.

Mesmo não sendo responsável pelas ações administrativas, o MP ainda pode investigar se houve omissões, fraudes ou irregularidades no processo administrativo por parte dos órgãos fiscalizadores:

– Isso é muito comum. A omissão de fiscalizar. Ninguém faz isso corretamente – diz o promotor Locatelli, referindo-se que muitos processos são malfeitos, o que gera insegurança jurídica e abre brecha para os infratores questionarem na Justiça.

Outra questão que impede o pagamento das multas é que a quitação da dívida seria admitir a culpa, argumenta a presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB-SC, Rode Anélia Martins. Por isso não haveria nenhuma razão para pagar antes de esgotar todas as opções de recurso. No ponto de vista dela, depois de quitar é difícil reaver o dinheiro:

– A maioria das pessoas autuadas não paga porque acha que pode fazer um termo de ajustamento de conduta, acha que a multa é exagerada entre outros aspectos.

De acordo com a advogada, a diferença entre as grandes e pequenas infrações é que há um esforço jurídico e técnico maior para fazer a defesa e analisar o caso. Sobre a falta de pagamento de multas, ela diz que a sociedade tem reivindicado mais estrutura do Estado, que começa a reagir.

 

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á quase 20 anos empreendendo em Florianópolis, Jaime Barcelos registrava crescimento anual de 15% a 20% no faturamento do Ostradamus, restaurante tradicional no Ribeirão da Ilha especializado em ostras. O bom momento do negócio sofreu um revés com um vazamento de 12 mil litros de óleo de um transformador da Celesc perto da Baía Sul no final de 2012, afetando também outros comerciantes da região. Naquela temporada, ele registrou uma queda de 70% nas vendas.

– As pessoas desapareceram totalmente – lembra o empresário.

A maior parte dos clientes ficou com medo da contaminação de ostras, mariscos e berbigões, base do cardápio de muitos estabelecimentos da região. O receio ganhou força após uma área de cultivo de 730 hectares ser embargada pela Fatma. A restrição durou de janeiro a abril de 2013 e, com a publicidade negativa, ninguém mais queria comer moluscos em Florianópolis, já que poderiam conter PCB, substância presente no óleo e que poderia causar câncer caso fosse ingerida. Exames laboratoriais não apontaram nada de tóxico nos cultivos, mas a restrição se manteve por precaução, ato que custou caro para maricultores e comerciantes do Sul da Ilha. Até hoje há prejuízos, lamenta Barcelos.

Se produtores e estabelecimentos foram afetados, a Celesc também não saiu ilesa desse crime ambiental. A distribuidora de energia entrou no topo do ranking das maiores multas já aplicadas pela Fatma, ao ser autuada em

R$ 24,9 milhões. Ainda hoje, a estatal é a empresa com maior dívida junto ao órgão ambiental no Estado. Esse não é o único valor como punição: o Ibama também aplicou uma penalidade de R$ 50 milhões.

Para evitar o pagamento milionário pelos danos, a estatal optou por recuperar a área afetada, e os trabalhos ainda não terminaram. Foram criadas valas de drenagem, retiradas 50 toneladas de água e óleo e cerca de 14 toneladas de resíduos sólidos. A empresa também indenizou quem vive da maricultura. Mesmo assim, ainda teria que desembolsar 10% dos valores estabelecidos, o que não ocorreu ainda.

“A Celesc efetuou a compensação financeira aos maricultores e extrativistas de berbigão na área de 730 hectares (região da Tapera), que foi embargada pela Fatma, no período de janeiro a abril de 2013. O montante pago foi da ordem de R$ 2,5 milhões”, explica a estatal em nota.

Também para evitar novos danos ambientais, a Celesc se comprometeu a adequar as unidades que não tinham sistema de captação e caixa separadora de água e óleo nos transformadores. As subestações implantadas nos últimos anos já possuem este sistema e os equipamentos mais antigos foram readequados, com investimento de R$ 7,9 milhões.

Apesar das ações de recuperação e dos trabalhos de prevenção, o processo da Celesc no Ibama consta como aberto. Essa realidade – multas altas aplicadas pelos órgãos ambientais e o não pagamento delas – se repete em todas as 20 maiores punições aplicadas pela Fatma. Na lista, empresas privadas e estatais recorrem das infrações. A destinação incorreta de resíduos sólidos e líquidos em áreas irregulares, a poluição de rios e mares e a construção de empreendimentos sem licenciamento ambiental estão no topo da lista das maiores infrações.

– O que a gente precisa é de uma Justiça mais rápida. Precisaríamos que as promotorias tivessem órgãos específicos para a questão ambiental. Os promotores têm uma infinidade de atividades. Na própria Fatma, que hoje infelizmente carece de infraestrutura, faltam recursos humanos. Em algumas unidades o órgão não têm uma quantidade boa de técnicos – defende o doutor em ecologia e recursos naturais Marcus Polette.

O presidente da Fatma, Alexandre Waltrick, também lamenta o excesso de judicialização. Segundo ele, a fundação conta hoje com oito advogados e 40% do tempo do órgão é gasto respondendo a Ministério Público e Justiça.

– O Brasil é o país dos recursos.

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