Política, substantivo feminino

mulheres engajadas em movimentos feministas avaliam os avanços e as falhas na luta para aumentar a representatividade delas na vida pública – e quais os próximos passos após o impeachment de Dilma Rousseff

TEXTO | FERNANDA VOLKERLING

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e todos os políticos hoje em exercício no Brasil fossem reunidos em um mesmo local, contando apenas aqueles eleitos pelo voto popular, daria para ocupar quase toda a arquibancada do estádio do Maracanã, o maior do país. Mas, nessa convenção hipotética, as mulheres conseguiriam preencher no máximo algumas das primeiras fileiras – ou seria mais adequado, simbolicamente, dizer das últimas?

A analogia remete a um cenário comumente associado ao universo masculino porque a política no Brasil também é assim. Das mais de 64 mil vagas preenchidas pelas eleições de 2012 e 2014, em vigor atualmente, apenas 8,5 mil são ocupadas por mulheres – cerca de 13%. O número é discrepante em relação à composição do eleitorado nacional: 52% de mulheres e 48% de homens. Mas esses são apenas os primeiros e mais elementares de uma série de dados estatísticos que ecoam por todo o território nacional, da esfera municipal à federal, e que a cada dois anos, após os registros das candidaturas, voltam a desfilar no noticiário, quase sempre descolados de questões fundamentais: por que de fato isso ocorre? E mais: como ficam representadas as pautas feministas nesse contexto ainda dominado pelos homens?

Na semana em que foi confirmado o impeachment da primeira presidente eleita – e reeleita – do Brasil, a discussão vem bem a calhar. As respostas para essas indagações são muito mais complexas e estruturais do que simplesmente relegar a baixa representatividade feminina ao desinteresse das mulheres pela política. É preciso remontar mesmo à história do regime democrático e à construção dos sistemas políticos, que desde a base vêm perpetuando a segregação da mulher na vida pública.

A partir do final do século 18, o Ocidente vivencia a construção das repúblicas modernas, modelo que se consolida e domina todo o século 19. Nesta sociedade, estabelece-se a separação radical das esferas pública e privada, ficando a mulher restrita a esta última, dedicada ao lar e aos filhos, enquanto o homem se constrói como figura social pública.

— Desde o princípio, então, as mulheres são proibidas de participar, a começar pelo voto, que no Brasil só foi conquistado por elas em 1932. A participação das mulheres na política é hoje uma questão global, e o Brasil é monitorado pela ONU. Ou seja, o fato de termos candidatas, ainda que poucas, não é por bondade dos partidos, mas porque existem leis e cobranças internacionais nesse sentido – esclarece a professora do Departamento de Antropologia do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFSC, Miriam Grossi.

No Brasil, há 20 anos existe a lei que estabelece cotas para mulheres nas listas de candidaturas. No caso do Legislativo municipal, a proporção deve obedecer a um mínimo de 30% de candidatas. Apesar disso, a porcentagem das eleitas se mantém praticamente a mesma desde então, entre 10% e 15%. No Congresso, composto pelo Senado e pela Câmara dos Deputados, o índice de representação feminina é inferior ao de países do Oriente Médio como Síria, Iraque e Afeganistão.

Isso mostra que a questão ultrapassa, e muito, a simples lacuna de candidaturas. A passagem de Dilma Rousseff pela presidência do Brasil exibiu os dois lados da moeda: por um lado, abriu uma via até então inédita para que mais mulheres, e de maneira cada vez mais engajada, ingressem na política, tanto pelos canais que foram abertos quanto pelo fator de inspiração e potência inaugural que se criou. Por outro, escancarou-se o Brasil da discriminação de gênero, especialmente na forma de ataques sistemáticos dirigidos muito mais à sua condição de mulher do que de presidente, comportamento que se intensificou com o desencadeamento da crise política em 2015.

— A questão da presença das mulheres na política é simbolicamente muito importante. Dilma teve grande impacto na forma de as mulheres se colocarem na política, levando muitas a se candidatar e a ter o projeto de ocupar cargos políticos – complementa a professora.

 

U

ma das principais bandeiras feministas na atualidade, e que ainda caminha a passos lentos no país, é pelo direito de tomar decisões sobre o próprio corpo, incluindo o livre exercício da sexualidade e da reprodução. São emblemáticas a Marcha das Vadias, a luta pelo combate à cultura do estupro e as mobilizações pela saúde da mulher, incluindo o clamor por políticas públicas voltadas a esse aspecto.

Um dos pontos mais delicados dessa discussão é o aborto, hoje considerado crime no Brasil, exceto em casos de estupro – diferentemente do que ocorre em países como Estados Unidos, França, Cuba e Uruguai, onde a interrupção da gravidez é permitida independentemente da motivação. A impressão é que, por aqui, ainda levará bastante tempo – e custará muito esforço – para que o tema deixe de ser tabu. Especialmente entre a opinião pública, que, bem ou mal, se reflete na composição do Legislativo e do Executivo.

Na ala das conquistas, em janeiro deste ano, Santa Catarina se tornou o primeiro Estado a aprovar a Lei das Doulas, que agora busca respaldo em nível municipal. Essa lei estabelece que os hospitais públicos e privados são obrigados a autorizar a permanência das profissionais (doulas) que atuam na promoção do conforto da mulher, tanto físico quanto emocional nas salas de parto, o que do ponto de vista ideológico simboliza um avanço no sentido de rever o discurso médico hegemônico e a forma como as mulheres são tratadas nas maternidades.

— Tivemos que trabalhar muito para aprovar essa lei, de autoria de uma deputada. Foi aí que comecei a me envolver e a entender como se faz política, como se dão as negociações. Foi difícil negociar com os deputados. A gente vai falar de violência contra a mulher, violência de gênero, e muitos não sabem do que estamos falando. Para mim, pessoalmente, foi um aprendizado sobre o quanto a gente precisa se engajar e participar, estar sempre próximas e buscando espaços – relata a doula e educadora perinatal Virginia Vianna, que atua em Florianópolis.

Por essa via, ao mesmo tempo em que o embaraço da discussão emperra o avanço das pautas feministas na política institucional, são esses impasses que muitas vezes despertam a consciência, o engajamento e o tal interesse por parte das mulheres em ingressar na política. É o que revela uma candidata a vereadora da Capital – cujo nome será omitido em função da campanha eleitoral.

— Costumo dizer que é preciso termos mais mulheres na política para garantirmos mais políticas para mulheres, porque para mim é óbvio: nossos direitos devem ser delineados levando em consideração nossas vozes. E a presença das mulheres na política coloca em jogo a distribuição do poder, o status quo masculino. A presença das mulheres na política redesenha a própria política e, consequentemente, a dinâmica social — defende.

Dayana Pinto, 29 anos, está a frente da fanpage Arquivos Feministas...

... que criou em 2015 com a companheira Janaine Rambow, 29, com denúncias, desabafos e orientações para  mais de 240 mil seguidores

Dois gêneros, duas medidas

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mundo se divide majoritariamente entre masculino e feminino. O sexo biológico ainda é o principal fator que define se o recém-nascido se constitui como menino ou menina. Azul para eles, rosa para elas. Carrinho para eles, boneca para elas. O mundo para eles, a casa para elas. Guardadas as devidas nuances, isso está tão enraizado na sociedade que, para muitas pessoas, é difícil conceber uma outra forma de pensar. E, talvez por isso, a discussão ainda encontre pouco respaldo nas instituições políticas tradicionais.

Para os movimentos feministas de forma geral, as consequências desse modelo vão muito além da perpetuação de estereótipos: culminam na violência, no abuso, na cultura do estupro e na segregação, reafirmando valores arcaicos que incidem não apenas sobre a mulher, mas também sobre toda a causa LGBT. À parte as conquistas no campo específico da violência, com as delegacias da mulher e a já consolidada Lei Maria da Penha, a chamada ideologia de gênero busca fazer um novo furo nesse castelo tão bem montado promovendo recursos para uma consciência social que leve em conta a identificação manifestada pelo indivíduo com este ou aquele gênero, ou mesmo com nenhum.

Em Santa Catarina, o tema tem sido frequentemente rechaçado entre prefeitos e vereadores, que em parte das cidades vêm optando por vetar ou excluir a temática no âmbito da educação municipal. Em Blumenau, onde em julho de 2015 a Câmara decidiu não apenas excluir, mas proibir o uso da terminologia de gênero do Plano Municipal de Educação e materiais afins – ecoando decisão de Brasília sobre o Plano Nacional de Educação –, o Coletivo Feminista Casa da Mãe Joana vem atuando intensamente na discussão da questão.

Em campanha lançada na última terça-feira, o grupo afirma que “ao vedar o debate sobre o tema, os representantes locais ignoram a existência dessas pautas e, portanto, ocultam desigualdades escolares. A escola, como uma das principais instituições de socialização das crianças, permanece num campo heteronormativo, agressivo e opressor que reforça estigmas carregados por mulheres”. Para a integrante Manoella Back, o fato tem grande ressonância na baixa representatividade feminina na política.

— As coisas estão interligadas. A mulher é historicamente menos inserida nos processos de decisão. O mundo para os homens é apresentado muito antes, e nisso também entra a política. Em decorrência disso, existe uma dificuldade maior de se acessar determinadas pautas. Mas a minha opinião é que isso tende a mudar, minha visão para o futuro é otimista — ressalta ela.

Apesar da dificuldade em acessar determinadas pautas, Manoella Back vê o futuro com otimismo

Um silêncio que fala alto

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ão logo assumiu a presidência interina, tornada definitiva na quarta-feira, uma das primeiras medidas de Michel Temer foi fazer modificações nos ministérios. Enxugou o número de pastas e alterou os chefes de algumas delas. No país e na imprensa internacional, choveram críticas ao fato de que, do dia para a noite, as mulheres foram afastadas e o Brasil voltou a ter um ministério totalmente masculino, o que não ocorria desde 1979. Já há poucas semanas, o ministro da Saúde afirmou que os homens trabalham mais do que as mulheres e, por isso, vão menos ao médico.

Esses são apenas dois acontecimentos recentes que colocam o Brasil em posição constrangedora quanto à igualdade entre os gêneros. A diferença salarial, aliás, também persiste: de acordo com dados da ONU de março deste ano, brasileiras podem ganhar até 25% menos que brasileiros. Além disso, a presença de mulheres em cargos públicos nem sempre é garantia de representatividade, já que em muitos casos a forma de se fazer política não muda. O Portal Catarinas surgiu em Florianópolis do interesse e da necessidade de um grupo de amigas de criar um espaço para dar visibilidade a conteúdos relacionados especialmente a gênero e feminismo. O projeto foi financiado de forma colaborativa e hoje se tornou também uma associação que se propõe a atuar como coletivo.

— Acho que há um grande esforço, uma grande luta interna das mulheres que participam de partidos hoje. Se isso reflete exatamente a atuação de outras formas de movimento, não consigo afirmar. Mas acho bem importante defender que a participação dessas mulheres possibilita o avanço em direção a outras situações. Se nem sequer tivermos mulheres na política, como vamos ter políticas públicas para as mulheres? — questiona a jornalista Clarissa Peixoto, do coletivo Catarinas, que também trabalha na coleta e no cruzamento de dados estatísticos sobre a participação das mulheres no quadro catarinense.

Assim como o coletivo Catarinas, outros grupos se articulam na rede. A mineira Dayana Pinto, 27 anos, e a catarinense Janaine Rambow, 29, se conheceram em grupos online de militância. As duas companheiras estão à frente da Arquivos Feministas, com informações sobre o tema no Facebook. Criada em 2015, a fanpage já reúne mais de 240 mil seguidores. Além de dar publicidade a alguns temas, o espaço recebe denúncias e desabafos e orienta mulheres que buscam apoio.

— Há várias meninas que vêm relatar casos de estupro, de assédio. Uma vez, uma garota de 13 anos pediu ajuda porque estava grávida do padastro e a mãe dela não acreditou. Orientamos a buscar ajuda de um adulto que ela confiasse e então fazer a denúncia na polícia — conta Janaine.

Sobre política, as duas afirmam que não há um único partido – ou candidata – que represente o movimento feminista no Brasil:

 — Há diferentes vertentes e cada uma vota de acordo com o próprio pensamento. No movimento feminista, há a luta das negras, por exemplo, que são mais oprimidas dentro de um grupo que já sofre discriminação. Nem todas as mulheres eleitas são comprometidas com as causas, mas é importante garantir representatividade — diz Dayana.

Se as 105 milhões de brasileiras não estão representadas de forma proporcional no Congresso, nas câmaras e nas prefeituras, o barulho se dá pela ausência. A cada eleição, há a oportunidade de ocupar novos espaços. E ainda que essa batalha seja de avanços e retrocessos, não pode ser abandonada. Na semana em que a primeira mulher eleita presidente da República sofreu impeachment, cabe guardar as palavras dela: “Abrimos um caminho de mão única em direção à igualdade de gênero. Nada nos fará recuar”.

 

Jessyka Zanella Costa, 24 anos.

Funcionária pública estadual. Atua no projeto de

pesquisa e extensão Direitos das Mulheres, na UFSC

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