com R$ 300 milhões em dívidas e falência decretada, a Buettner retrata como a crise levou empresas catarinenses que já enfrentavam dificuldades a uma corrida por pedidos de recuperação judicial

TEXTO | larissa linder

E

m um sábado à noite de 1993, a atriz Tonia Carreiro ocupava parte do intervalo comercial do Supercine da Globo. Bonitona, com ar elegante e cabeleira loira, ela ensinava a pronunciar Buettner, caprichando no biquinho ao dizer “bítner”. Em Brusque, em frente à TV, Edgar Buettner, então na direção da empresa, recebia dezenas de ligações de pessoas interessadas em fazer negócios ou apenas querendo parabenizá-lo pela propaganda.

Se dissessem àquele Edgar que em agosto de 2016 a empresa estaria leiloando terrenos para pagar salários atrasados, pareceria um disparate. Mas a publicidade com Tonia Carreiro seria uma das últimas lembranças do sucesso da empresa antes de começar a caminhar em direção ao abismo.

O lucro da Buettner caiu sem parar desde o final dos anos 1990 até se converter em dívidas que hoje somam R$ 300 milhões. Em abril de 2016, a companhia pediu falência, encerrando um período de cinco anos de recuperação judicial. A decisão foi tomada pelo administrador, o advogado Gilson Sgrott, que deu a notícia para uma direção já resignada a fechar as portas. No ato, 600 funcionários foram demitidos.

A Buettner hoje é uma gigante abandonada. Dos 2 mil empregados que chegou a ter no auge, entre os anos 1970 e 1980, sobraram os vigilantes e um funcionário da administração.

Antes, dezenas de caminhões carregados de algodão paravam ao lado dos prédios de tijolinhos à vista para que a empresa desse conta da demanda. Hoje, qualquer carro que estacione em frente à portaria desperta curiosidade. Só um vira-lata anda por ali e faz companhia a Marinho Vanelli, porteiro da fábrica há 30 anos. A crise econômica que começou a mostrar as caras em 2014 foi demais para uma empresa adoentada.

Mas a Buettner não está sozinha. Neste ano, no primeiro semestre, Santa Catarina bateu recorde de pedidos de recuperação judicial – foram 60, o maior número em pelo menos 10 anos. Outras 16 pediram falência.

No mercado, costuma-se dizer que a crise só revela quem já estava o tempo todo nadando pelado. Com a água alta, todos estão cobertos e felizes. Mas quando ela baixa, dá para ver quem estava dando braçadas sem roupa. Foi o que aconteceu com a Buettner, pela segunda vez. A primeira, havia sido nos anos 1990. Até então, era uma empresa aparentemente saudável e bem gerida. Mas sua capacidade foi colocada à prova quando o mercado brasileiro foi aberto ao exterior e chegaram os chineses.

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a década de 1970, um dos melhores empregos que se poderia ter em Brusque era o de operário da indústria têxtil. Nessa época, a Schlösser tinha 1,5 mil trabalhadores, a Buettner tinha quase 2 mil e a Renaux, outras tantas centenas. Nos encerramentos de turnos, amontoados de bicicletas iam e vinham pela cidade. O sonho de consumo era ter um fusca, coisa que demandava uns dois anos de trabalho.

– As portas se abriam quando a gente falava que trabalhava na Renaux, na Schlösser ou na Buettner. Se chegasse no comércio para abrir um crediário, era só mostrar a carteira de trabalho como garantia. Era um emprego sólido, seguro, com benefícios – lembra Aníbal Boettger, ex-operário da Schlösser e atual dirigente do sindicato da categoria.
Marinho, o porteiro sobrevivente da Buettner, concorda.

– Meu filho trabalhou aqui, e a empresa pagava 50% da mensalidade da faculdade dele. Tinha muitos benefícios, era o melhor lugar para se trabalhar, as vagas eram disputadas – lembra.

Em 1969, a Buettner abriu o capital, como já haviam feito outras têxteis da região. Era uma forma de capitalizar a empresa para investir em modernização. Na esteira, veio o milagre econômico. A empresa já era rica antes, mas os anos mais lucrativos começaram por volta de 1972.

Gottard Pastor, o presidente da empresa à época, observou que as concorrentes de Blumenau iam bem ao investir nas exportações. Foi a Hamburgo, na Alemanha, onde tinha contatos – havia nascido e crescido no país europeu –, e lá conseguiu fechar parceria para exportação de toalhas. Começava a era mais rica da Buettner.

Na casa construída pelo velho Edgar – sogro de Gottard e a segunda geração à frente da empresa – no centro de Brusque, a família dava festas e recebia convidados famosos. Passaram por lá os Bornhausen, a atriz Tonia Carrero e Os Trapalhões. Os artistas foram apresentados por Beto Carreiro, que se tornou próximo dos Buettner e era também presença constante nos jantares. Os executivos estrangeiros que tinham negócios com a empresa também eram recebidos lá.

As exportações cresceram sob a liderança do filho de Gottard, Edgar, homônimo do avô, que contratou representantes na Suécia, no Canadá, nos Estados Unidos e na França. A Buettner nunca tinha vendido tanto.

Ao contrário de Herbert, o irmão que preferiu seguir caminho longe da fábrica e cursou direito e filosofia, Edgar fora moldado para assumir a liderança da empresa. Estudou engenharia química e fez pós-graduação na Alemanha e na Suíça. Além de ficar responsável pela parte técnica da empresa, passou a cuidar do setor de exportações, que naquela época chegou a representar de 60% a 65% do faturamento.

Para dar conta dos negócios, Edgar viajava constantemente. Em uma dessas incursões, foi comprar máquinas na Suíça por volta de 1975. Então, os vendedores lhe deram um aviso:
– Fiquem atentos, os chineses não param de comprar máquinas de tear. Eles estão comprando tudo. Vocês se preparem, porque a turma lá está botando tear para funcionar.

Não parecia ameaçador na época. Mas era verdade: enquanto os brusquenses se preocupavam em como gastar tanto dinheiro, os chineses botavam seus teares para funcionar. Na década de 1990, eles finalmente desembarcaram no mercado brasileiro graças à abertura do país às importações. Mas as têxteis de Brusque, acomodadas com a vida fácil que tinham até então, não estavam preparadas para a concorrência.

E os chineses nunca estão a passeio. Em 1980, o Brasil respondia por 0,3% dos produtos confeccionados exportados no mundo, enquanto a China era responsável por 4%. Em 1997, o país participava com 0,1% e os asiáticos já abocanhavam 18%. Em 2006, atingiram 27,7% e, no ano passado, representavam 34,8%, conforme dados do Banco Mundial, do BNDES e da Inteligência de Mercado (IEMI).

A Buettner – como várias outras têxteis – não foi capaz de competir com a China. Um dos grandes erros dela foi seguir apostando na verticalização: produzia desde o fio até o produto final. Era impossível manter maquinário moderno para tantas etapas de produção.

– Fazíamos o fio, tecíamos o pano, tingíamos ou alvejávamos, estampávamos e confeccionávamos. Isso foi o nosso ... – diz Edgar, enquanto faz o sinal de quem corta o pescoço.

– Fio já era commodity na década de 1970. Em 1990, a gente ainda produzia. Tentei convencer de que devíamos passar a comprar fora, mas o restante da diretoria não quis – completa.

Além disso, ser uma empresa familiar não facilitava a gestão. Enquanto os herdeiros se multiplicam, cada um reclama sua parte na empresa.

– Todo mundo quer uma parte. Entra genro, entra nora e cada um pensa de um jeito diferente. Quando tem dinheiro, é administrável. Mas quando as coisas começam a ir mal, desanda. É muito difícil. Uma empresa familiar não sobrevive mais hoje em dia – diz Herbert.

As outras duas gigantes têxteis de Brusque, Renaux e Schlösser, também cometeram erros de gestão e começaram a caminhar para o abismo nos anos 1990, quando o ex-presidente Fernando Collor abriu o mercado brasileiro.

– A abertura não foi planejada. Houve uma redução muito grande de unidades de produção, algumas com problemas de gestão, outras não. O fato é que essa abertura veio. E com o plano Real alguns anos depois tivemos uma moeda valorizada, que foi outro baque. Foi uma política de controle da inflação, mas que para a indústria foi muito perversa, porque não foi acompanhada de nenhuma estratégia de redução de custos – afirma Fernando Pimentel, diretor superintendente da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit).

A Renaux teve falência decretada em julho de 2013. A Schlösser deu férias coletivas aos funcionários em 2010. Quando voltou, em 2011, estava em recuperação judicial. No mesmo ano transferiu os teares para a Buettner, onde hoje opera com cerca de 30 funcionários. Agora, aguarda os rumos da massa falida da concorrente para saber seu próprio destino.

Entre as empresas que sobreviveram aos tombos da década de 1990 está a Döhler. Frente às ameaças da concorrência chinesa, passou a focar no mercado norte-americano, que exigia mais qualidade, coisa que os asiáticos não ofereciam. Aos poucos, voltaram-se novamente ao setor interno e passaram a investir nas licitações, tornando-se fornecedores das Forças Armadas. Hoje, a Döhler conta com 3 mil funcionários.

O

setor têxtil nacional começou a história por volta dos anos 1880, quando a cafeicultura entrava em declínio. Por conta disso, o governo brasileiro passou a dar incentivos tarifários à indústria têxtil e a sobretaxar importações.

Segundo Vanessa Jurgenfeld, mestre em desenvolvimento econômico que estudou a indústria têxtil, naquela mesma época surgiram novas regras que ajudaram na formação de capital do setor, como o afrouxamento nos critérios para criação de sociedades. O período que vai de 1860 a 1930 é considerado os anos dourados do setor têxtil nacional.

As três grandes de Brusque surgiram exatamente naquela fase. Primeiro veio a Renaux, em 1892. Depois, a Buettner, em 1898, e, por fim, a Schlösser em 1911. Todas começaram de forma parecida, com um ou dois teares de segunda mão vindos da Alemanha. O capital para formar essas empresas vinha em parte de alguns colonos mais abastados ou mesmo de poupanças, ainda que pequenas, trazidas por imigrantes.

Mas a Buettner não teria existido se a viúva alemã Maria Poninska von Buettner não tivesse ousado cruzar o Atlântico rumo ao Brasil. No final do século 19, ela embarcou em um navio com o futuro fundador da empresa, o filho Eduard, de 11 anos. Instalaram-se em São Pedro de Alcântara, mas após a morte da mãe, Eduard mudou-se para Blumenau, onde conheceu a esposa, Albertina von Burrow, também imigrante alemã.

Em 1875, foram para Brusque. Não há dados da população daquele ano, mas em 1900, a cidade tinha pouco mais de 9 mil habitantes. Eduard abriu um armazém de secos e molhados. Depois, em 1898, com a ajuda do filho mais velho de seis irmãos, Edgar, inaugurou uma firma de bordados finos, especializada em cortinas.

O tecido era comprado pronto, e a empresa confeccionava e bordava. Eduard faleceu pouco tempo depois, em 1902, mas a empresa seguiu. Os bordados fizeram sucesso entre as famílias da aristocracia brasileira e foram até ornar o Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, então capital federal.

Foi só em meados da década de 1910 que a pequena empresa familiar passou a produzir tecidos. Em 1922, a administração adquiriu ares mais profissionais, quando se tornou uma sociedade de capital fechado e importou

25 teares da Alemanha. O carro-chefe eram os mosquiteiros, vendidos para todo o país. Com o passar dos anos, foram entrando mais sócios, e a empresa foi se modernizando.

Pouco a pouco, a Buettner assumiu toda a produção do tecido, do fio à confecção.

Os mosquiteiros deram lugar a toalhas de mesa, e a linha se expandiu também para as de banho, que viraram a marca da empresa.

Já na década de 1930, Edgar conseguia ter uma vida abastada ao lado da família. Prova disso é a casa que construiu no centro de Brusque, de dois andares, revestida de pedras de quartzo. No interior, era decorada com quadros e obras de arte. A residência foi batizada de Vila Quisisana, nome inspirado em uma viagem que fizera. Hoje, sem habitantes, é mantida por um caseiro.

E

m 1942, enquanto a Buettner fazia toalhas de mesa, a Segunda Guerra dizimava a Europa. Gottard Pastor, um jovem alemão, havia sido convocado para lutar pelo exército nazista e acabou escalado para uma das batalhas mais sangrentas do conflito, a de Stalingrado. Em meio ao caos, ele teve sorte: levou um tiro na perna. Ferido, foi deslocado para um hospital no sul da Alemanha. Graças à bala, a mulher de Gottard, Renate Buettner, a filha de Edgar, não ficou viúva e com filhos pequenos para criar.

Poucos anos antes da guerra estourar, Renate havia deixado Brusque para passar uma temporada na Europa. Lá, conheceu Gottard. Voltaram à cidade catarinense somente para a festa de casamento. Com a Europa arrasada após o conflito, o Brasil parecia ser o melhor destino para o casal.

– A Alemanha era como as imagens que vemos hoje da Síria. Não havia nada, era só concreto e ferro retorcido. Até hoje minha mãe fala que só conseguimos fugir porque ela era brasileira – recorda Edgar, que tinha sete anos quando chegou ao Brasil.

Com a morte do pai de Renate, o caminho natural era que Gottard assumisse a fábrica. Foi o que aconteceu. A partir de 1948, a presidência da Buettner voltou para as mãos de um alemão.

Gottard abraçou o Brasil e a empresa. A partir de 1950, começou a modernizar a fábrica com a importação de teares automatizados. A Buettner seguia uma história sólida que ainda ia durar algumas décadas antes de começar a ruir.

fazíamos o fio, tecíamos o pano, tigíamos,
estampávamos e confeccionávamos. Isso foi o nosso ….

diz Edgar enquanto faz o sinal de quem corta o pescoço

 

edgar pastor,

Herdeiro da Buettner

PAREM AS MÁQUINAS

P

ara os irmãos Edgard e Herbert Pastor, filhos de Gottard, uma sucessão de erros de gestão levaram a Buettner a falir. Por trás de todos eles, havia falta de profissionalização. Em 1998, já em declínio, eles venderam a firma para investidores de São Paulo.

O valor da transação não é revelado pela família, que aparentemente vive tranquilamente em Brusque. Herbert tem uma agência de viagens. O irmão, Edgar, mora em uma casa elegante cercado por relíquias herdadas dos pais, como um velho relógio francês de um metro e meio de altura. Viaja frequentemente para a Europa. O destino preferido é o mesmo para o qual ia em busca de máquinas para a empresa: a Suíça. A mãe, Renate, já tem mais de cem anos e mora em Itapema.

– Dizem que foi a nossa geração que quebrou a empresa. E não estão totalmente errados – diz Edgar.

Contudo, o ressentimento dos ex-funcionários se concentra em outro nome: João Machewsky, que começou como office-boy na empresa e chegou à presidência. Ele é acusado de ter enriquecido enquanto a Buettner sangrava. Por isso, não tem a simpatia dos antigos trabalhadores. Procurado pelo DC, ele não quis se manifestar.

Foi Machewsky quem ficou à frente da empresa depois da venda para os investidores paulistas. Com o desempenho cada vez pior e sem conseguir pagar credores, a Buettner pediu a recuperação judicial em maio de 2011. Tinha então 800 funcionários.

No ano seguinte, chegou a ter falência decretada pela Justiça, que alegou invalidade de uma assembleia de credores, mas a decisão foi revertida, e a empresa retomou o processo de recuperação judicial. Desde então, diz Gilson Sgrott, o administrador judicial da companhia, a fábrica conseguiu caminhar “mais ou menos em equilíbrio”, embora em alguns meses a despesa superasse as receitas.

– Um dos problemas é que a Buettner é muito cara. Apenas para manter a empresa funcionando são necessários R$ 4 milhões por mês, que inclui folha de pessoal e energia elétrica, por exemplo. Em meados de 2015, com a crise, tornou-se impossível manter a empresa – diz Sgrott.

O que resta à Buettner agora é vender a massa falida para pagar as dívidas. No topo da lista estão as trabalhistas. Em agosto, a primeira propriedade foi vendida: um terreno arrematado em leilão por R$ 1,5 milhão.

Marinho, o porteiro sobrevivente, garante que vai ficar até o final. Espera ainda receber o que lhe devem – tem dois salários atrasados:
– Agora, infelizmente, chegamos ao fim.

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Um dos problemas é que a Buettner é muito cara.

Apenas para manter a empresa funcionando,

são necessários
R$ 4 milhões por mês, com folha de pessoal e energia elétrica.

 

gilson sgrott

AdmInistrador judicial da Buettner