Fotografia:
GUTO KUERTEN Edição:
MÔNICA
JORGE Reportagem:
ÂNGELA BASTOS
Edição de vídeo:
LUCAS
AMARILDO Design:
MARIANA WEBER
O amanhã nas mãos do afeto
Maria se viciou no lugar mais protegido da vida. No ventre da mãe. Lugar onde deveria estar cercada de segurança e de conforto. Era feto quando recebeu pelo sangue materno substâncias que provocam sensações de prazer/irritação; euforia/inquietação. Efeitos do avassalador crack. A criança é filha de uma dependente química que vive nas ruas de Florianópolis. Agora bebê, enfrenta crises de abstinência. A mulher nem chegou a pegá-la no colo. A menina foi entregue para adoção ainda na maternidade.
A bebê sofre com tremores, choro excessivo, inquietação. Pelas mãos do destino, seguiu para uma instituição que realiza um método a partir de uma experiência de sucesso entre órfãos da Europa pós-guerra. Os recém-nascidos são colocados em um berço coletivo – um beliche adaptado – e fazem gestos que desconstroem a perversa realidade. As crianças se procuram, se buscam, se encostam. Parece o instinto. O aconchego, o calor dos corpos e a sensação de estarem com alguém por perto as deixam mais tranquilas. Aos poucos, o período das crises de abstinência fica menor. Reduz de 45 para 30 ou até 20 dias, conforme observam educadores da Casa Lar Luz do Caminho, localizada na Praia dos Ingleses, Norte da Ilha de Santa Catarina. A instituição tem capacidade para até dez crianças de zero a cinco anos – que chegam através do poder judiciário. Nem todas são filhas de mães usuárias de drogas. Mas um relatório da equipe de abordagem de rua da prefeitura aponta que, do ano passado a maio deste ano, 20 mulheres grávidas em situação de rua e dependentes do crack foram localizadas. Algumas crianças chegam de casa, mas também com carga de sofrimento. São histórias de maus-tratos, negligência, abandono. Sandra Fonseca Nicolau é uma das profissionais responsáveis por cuidar dos pequenos, diz que desde o começo chama-lhe a atenção o berço coletivo. No início chegou a questionar o método. Pensava que os bebês ficassem alheios ao que acontecia ao redor. Mas percebeu que eles respondiam. Fosse com o movimento do corpo, com o olhar ou com o colo. – No começo aparentam medo de cair. Então a gente diz: fique tranquilo, estamos cuidando de você, aqui todos te querem bem. Com o tempo, se mostram firmes e seguros – afirma.
Liberdade ajuda na cura
Um método diferenciado
Uma casa-lar é um lugar de passagem. Mas nem sempre a saída é rápida como deveria ser. Algumas crianças chegam recém-nascidas e ficam até três anos. Essa demora depende do desenrolar do processo judicial. Não tanto pela questão da adoção, já que bebês quase sempre fazem parte do perfil dos que querem adotar. Mas por que a Justiça age para localizar algum familiar que possa ficar com a criança. Pelo passar do tempo seria natural um certo apego dos educadores. Sandra fala por si. Mas parece resumir o sentimento das equipes formadas por profissionais:
– Quando a criança vai embora é uma alegria. Isso demonstra que o bebê também fez a sua experiência de superação – diz. Renata Bello é psicóloga e coordenadora na casa-lar. Ela defende que, assim como o berço coletivo, a aplicação do Método de Pikler, que se baseia nos princípios da motricidade livre, assistência necessária e autonomia, são diferenciais no acompanhamento das crianças. Para ela, liberdade é a palavra que melhor define o sucesso da metodologia.
– A diferença está nas pequenas coisas. Quando deixam o berço coletivo e estão aptas a andar, as crianças não recebem andador. Entendemos que elas têm seu tempo – avalia. Irene Gonçalves de Almeida, 85 anos, é voluntária. Faz uma atividade que considera das mais dignas: passa as roupas das crianças. Pelo menos uma vez por semana ela vai até a casa-lar para esvaziar o cesto cheio de vestidos, casacos, agasalhos.
– Eu passo as dobras e lacinhos como fazia nos tempos dos meus filhos. Quero que a criança se sinta bem ao ver que veste uma roupa bem passada – conta ela, que nunca trabalhou fora. Irene se mudou há dois anos de São Paulo, depois que o filho morreu. Mora na Praia dos Ingleses, junto com a filha Maria Lúcia de Almeida Silva, também voluntária. A manicure é encarregada da rouparia.
– Tenho um sentimento muito bom. Parte disso deve-se ao fato de primeiro eu ter conhecido as crianças: se tivesse ido direto arrumar as roupas, poderia ser uma coisa mais material e menos humana – diz Maria Lúcia. Na casa-lar, o custo de uma criança varia de R$ 2,7 mil a R$ 2,8 mil ao mês. Como a participação de convênios é de R$ 840, o equivalente a 18%, é necessário realizar eventos para cobrir o que falta. Lidar com criança recém-nascida é mais caro, pois o custo com fralda, leite em pó e lenços umedecidos é alto. Depende do número de crianças, mas chega a 2,2 mil fraldas e 16 latas de leite em pó por mês. Por sorte, explica o voluntário e presidente Maurício Aurélio dos Santos, o comprometimento da rede de colaboradores e voluntários é grande . Que seja. Para que Maria e as outras crianças possam continuar dando as mãos na contramão do destino.
Quando a criança vai embora é uma alegria. Isso demonstra que o bebê também fez a sua experiência de superação " "