Dioclécio Lopes
|
dioclecio.lopes@zerohora.com.br
De segunda até domingo, zerohora.com publica a série de contos "Causos de João Furtuoso", em comemoração à Semana Farroupilha. Personagem criado por Dioclécio Lopes, João Furtuoso é protagonista das narrativas ambientadas na zona rural, mais precisamente em um lugar chamado Bom Jardim, palco da difusão dos costumes, dos afazeres e da linguagem utilizada pelas gentes que marcam e mantêm acesa a cultura gaúcha.
********
Nem tinha raiado direito o dia, e na Fazenda do Minuano todos já andavam de um lado para o outro, aprontando-se para a colheita do trigal que já estava no ponto. Aos gritos, João Furtuoso excitava o gentario que abotoava camisas e arregaçava bombachas, enfiava os chapéus nos porongos, e se enfileirava no galpão para pegar foices, sacos, cordas... Tenório colocava canga nos bois e Zé da Broca já movimentava a trilhadeira, quando o patrão Antônio Balta surgiu à sua frente aos
berros, evitando a primeira manobra.
— Parem tudo!
Os olhos se arregalaram como coruja curiosa.
— Nas minhas terras ninguém vai colher coisíssima alguma — bufou Seu Balta visivelmente transtornado.
Juntou peão de todos os lados, pasmados, mais apreensivos do que velha em canoa.
— Mas que conversa é essa? — protestou o corpanzil de Afonso.
Espumando de raiva, Antônio Balta denunciou que lhe sumira todas as suas economias guardadas em lugar secreto e, portanto, seguro. Que se não tinha gente de confiança, contrataria outros em que tivesse. Sempre fora bom patrão, um amigo até, mas agora não mais - porque tudo tem limites!
Ferveu o sangue de Adão Tinhoso, o novo capataz da Estância. Disse que ali não tinha ninguém ladrão nããoo. E no repente um facão de três listras apontou em uma de suas mãos, lascando um "então prove, prove!". Antônio Balta recuou dois passos, sacou um 38 Smith recheado de balas - herdado de seu tio Cantalício - e, engatilhando a
arma, mirou a testa do desafiante.
Fez-se um silêncio
inquietante naquelas paragens. Não mugiu vaca, não cantou galo, não latiram cães, nem vento soprou. O coração de João Furtuoso galopava-lhe pela boca, cerraram-lhe os dentes e lhe impediram qualquer palavra conciliatória, e o corpo, desobediente, chumbou-se no chão. Dois tiros (que barbaridade!) romperam costelas... O fio do facão rasgou entranhas... E dois corpos tombaram no pasto ainda úmido pelo sereno. As mulheres correram estremunhadas, houve uivos agoniados dos cães, miados chorosos no porão; mugidos lúgubres no curral, sons que invadiram o ar da velha fazenda e se propagaram pelas planícies e baixadas.
Mas... destramelada a porta do quarto, o cusco Piloto entrou faceiro para lamber os pés calejados de João Furtuoso, pois passava das seis, e a cuia Princesa já corria solta entre a peonada.
— Credo, homidideus, quipesadelu, hein?! — disse aliviado dessa vez João Furtuoso, depois de lavar-se, olhar-se no espelho e alinhar os cabelos entre os dedos, enquanto o
patrão Antônio Balta e Adão
Tinhoso mantinham animada conversa no galpão.
ZEROHORA.COM