A partir de hoje até domingo, zerohora.com publica a série de contos "Causos de João Furtuoso", em comemoração à Semana Farroupilha. Personagem criado por Dioclécio Lopes, João Furtuoso é protogonista das narrativas ambientadas na zona rural, mais precisamente em um lugar chamado Bom Jardim, palco da difusão dos costumes, dos afazeres e da linguagem utilizada pelas gentes que marcam e mantêm acesa a cultura gaúcha.

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João Furtuoso é peão da Estância do Minuano, lá pras bandas do Bom Jardim, de propriedade de Antônio Balta, exigente no trato com o gado e com as suas lavouras que se debruçam sobre as coxilhas e sobre as várzeas que margeiam arroios.

Furtuoso é de estatura mediana, musculoso não pelos exercícios repetidos nas academias, mas pelos movimentos rígidos do machado, do arado e da rudeza de tantas outras lides campeiras. Cabelos penteados para o lado, barba por fazer, rosto ornamentado por um bigode generoso que se esparrama sobre vizinhanças lindeiras.

O nariz aquilino insinua voo incerto e aventureiro. No mais, suas virtudes são delatadas pelo cumprimento da palavra empenhada, pelo dom da liderança despretensiosa, pelo trato afável ou áspero quando a ocasião assim determina.

Ainda guri, Furtuoso foi levado de casa por um padrinho que se compadeceu de seu estado de miséria e o colocou na garupa com destino a uma vida de menos sacrifícios. De lá só saiu quando o benfeitor abandonou o mundo dos vivos durante uma carreirada marcada por desafios e trágica peleia.

João criou-se praticamente em terras estranhas, arando, plantando, colhendo... Pouco se pechou com sua família de onze irmãos depois que se mudou para a Estância do Minuano.

Conta-se que certa feita, em uma de suas andanças de peão, acompanhado de Tenório, João atou a tordilha em um moirão-mestre na querência das mulheres da vida. Galopou, de vereda, o olhar em uma morenona de olhos muito graúdos, cabelos escorridos até a cintura, coxas lustrosas e fartas.

Mas o Tenório — seu melhor amigo, companheiro de estância e ligeiro que só ele — atirou primeiro o laço e, num só pialo, cingiu a cintura da china, tocando-se para um local em que gozasse privacidade. Sem um fiapo de hesitação, João mirou a pontaria numa alemoa de olhos muito azuis e provocadores, seios abundantes e sotaque carregado nos erres.

Enlaçados, enfurnaram-se ansiosos em um cômodo composto por apenas uma tarimba e um toucador de espelho salpicado pela ferrugem. E assim João Furtuoso passou a noite nas pelejas prazerosas da carne, entre sussurros e cochichos, num upa-upa incansável, derrotando o jejum que já lhe inquietava o corpo e o espírito.

Ao amanhecer, os dois amigos se aprumaram satisfeitos e altivos em seus pingos que os esperavam ainda encilhados. Não dispensaram às chinocas as mesuras da despedida — a tirada de seus chapéus de abas largas, que os colocaram sobre o peito como sinal de pleno agrado.

Conversa vai, conversa vem no longo caminho de volta à Estância do Minuano. E foi no relato daquela grande noitada, nas narrações incontidas dos detalhes, nas gargalhadas estrondosas, nas costuras das coincidências... que João Furtuoso (barbaridade!) tomou conhecimento de que Tenório dormira aquela noite com Consuelo — a irmã que Furtuoso não enxergava há mais de 10 anos..

— Credo, homidideus, quidistinu, hein?! — disse Furtuoso, dessa vez apertando, constrangido, a aba do chapéu de barbicacho, enquanto Tenório baixava os olhos, meneando a cabeça, entre incrédulo e visivelmente embaraçado! Arre!