O PESADELO DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA

FRAUDE NO LAR LEGAL

T

ereza Dias dos Santos, 85 anos, dedicou a vida ao trabalho na roça. Não teve a oportunidade de estudar, de aprender a ler e a escrever. Criou 19 filhos, comprou uma casa não regularizada e vive em Santa Terezinha do Progresso, Oeste de Santa Catarina. Justiça e Ministério Público estadual suspeitam que, assim como ocorreu com ela, pelo menos 600 famílias – humildes e de baixa renda, na maioria dos casos provida por aposentados ou trabalhadores que sobrevivem com salário mínimo – foram vítimas de uma fraude no Oeste e Extremo-Oeste, estimada em R$ 1,4 milhão.

São pessoas que acreditaram na prometida regularização da casa, lote ou terreno onde moram, graças à emissão judicial da escritura pública. Para isso, cortaram gastos, abriram mão de economias e pediram dinheiro emprestado. Tudo para honrar uma cobrança média de R$ 900, feita por uma empresa credenciada pelo Estado para atuar na legalização fundiária. Dois anos se passaram, o dinheiro se foi e as famílias não têm perspectivas de que um dia receberão o documento.

Foi assim, sob os olhos do poder público, que o sonho virou pesadelo. A emissão do título deveria ser viabilizada pelo programa Lar Legal, iniciativa desenhada em 1999, executada pela Secretaria de Estado de Assistência Social, Trabalho e Habitação e amparada pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), que hoje está em andamento em 207 municípios.

Destinado a famílias inseridas no Cadastro Único de programas sociais a fim de garantir e agilizar o andamento do título de escritura aos donos de propriedades irregulares em áreas urbanas, o Lar Legal teve oito empresas credenciadas pelo Estado para oferecer esse serviço. Elas foram autorizadas a fazer a cobrança de uma taxa aos interessados e dar entrada em uma ação judicial que pleiteia o documento. Cabe às empresas organizar a papelada, cadastrar beneficiados, cuidar das medições do terreno e da moradia, fazer o ajuizamento da ação e acompanhar o trâmite do processo judicial.

 

Autoridades reconhecem

que há uma ação criminosa

 

Nos últimos anos, 30 mil famílias aderiram à iniciativa, um símbolo de conquista que se transformou em problema para as autoridades envolvidas. O próprio coordenador do Lar Legal no TJSC, desembargador Lédio Andrade, denuncia o que chama de ação criminosa cometida contra moradores de boa-fé. Gente que confiou no poder público, arcou com pagamentos de boletos bancários e criou expectativa de ter em mãos um documento que reconhecesse formalmente a devida propriedade do imóvel. São  habitantes de lugares onde o asfalto é raridade,  não há saneamento básico ou fartura na mesa. São famílias lesadas, que vivem a angústia da falta de respostas e o medo de perder o direito à propriedade.

Documentos a que o DC teve acesso dão a dimensão da fraude no Lar Legal. Neles, as próprias autoridades usam termos como  “esquema”, “ações ilícitas” e “práticas criminosas” para descrever as irregularidades. “O programa possui bons propósitos, mas houve sacanagem em sua implantação”, disse em reunião no Ministério Público João Ghizoni, consultor-geral e coordenador do Lar Legal na Secretaria de Assistência Social, Trabalho e Habitação. Declaração que confirma a existência dos favorecimentos e reforça a necessidade de responsabilização defendida pelo desembargador Lédio Andrade:

– Não é possível que essas famílias, que têm necessidades econômicas muito fortes, sejam lesadas  e que isso fique por isso mesmo, sem responsáveis.

Embora existam denúncias de cobranças indevidas e dúvidas sobre o credenciamento de empresas, o Lar Legal tem papel importante para a regularização fundiária catarinense. Há processos em andamento na Justiça e reconhecimento já dado a pedidos judiciais para emissão de escrituras que já beneficiaram 30 mil pessoas. Prova disso é que nesta segunda-feira o TJSC fará a entrega de 246 documentos em Caçador, no Meio-Oeste, para moradores do distrito de Taquara Verde que agora terão em mãos a tão sonhada escritura de seus imóveis.

 

DC EXPLICA

FORÇA-TAREFA DO MP APURA ESTELIONATO

A

realidade de dúvidas, sonhos interrompidos e mãos vazias foi constatada pela reportagem do DC nos municípios de Tigrinhos, Santa Terezinha do Progresso, Iraceminha e Flor do Sertão, na região de Maravilha, no Extremo-Oeste catarinense. São cidades pequenas, com população entre mil a 4 mil habitantes, e de pouca infraestrutura. Locais onde as histórias se repetem: famílias que esperavam ter acesso à escritura de legalização de suas moradias se sentem enganadas pela empresa responsável pelo procedimento, a Construtora Dias Moreira. Sentimento comum também aos prefeitos desses locais.

O desembargador Lédio Andrade, que esteve pessoalmente em visitas pelos municípios, diz que as prefeituras confiaram no programa, convocaram a população, fizeram reuniões, mas também acabaram à mercê de algo que agora passou a ser alvo de apurações. Na região Oeste foi estabelecida uma investigação do Ministério Público de Santa Catarina que mobiliza sete promotores. Eles identificam famílias, reúnem documentos, examinam processos, orientam as comunidades e coletam provas do que já afirmam se tratar de uma fraude que pode chegar a

R$ 1,4 milhão.

 

ações que contrariam

critérios do programa

 

Para os promotores Marcos Brandalize, Ana Elisa Goulart Lorenzetti e Alexandre Volpato, é possível apontar que houve um golpe dentro do programa de regularização fundiária e prejuízo a consumidores. A força-tarefa do Ministério Público apura a autoria do crime de estelionato pela empresa Dias Moreira, uma das credenciadas pelo Estado para o Lar Legal. Informações já levantadas revelam que a construtora não tem dado andamento judicial a grande parte dos processos pelos quais recebeu pagamento adiantado, o que contraria as regras do programa.

Os promotores ainda apuram se a fraude foi aplicada também nas cidades de Saltinho, Campo Erê, São Miguel da Boa Vista, Modelo, Saudades e Bom Jesus do Oeste, e verificam se há indícios de problemas em outros sete municípios do Meio-Oeste. As irregularidades vão desde o já citado não ajuizamento da ação pela empresa, vencimento dos cronogramas de trabalho e entrada do processo na Justiça com falta de informações importantes. Há ainda pessoas relacionadas pela empresa para serem beneficiadas que não se enquadram na condição de baixa renda e moradoras de propriedades em área rural, dois critérios que também estão fora do objeto de trabalho do Lar Legal.

– Tem situações que a empresa colocou a expressão “fulano de tal” para se referir a pessoas e ajuizou a ação sem o levantamento ideal. Há ainda ações em área rural ou de preservação permanente que não podem ser incluídas, numa espécie de conto da sereia. A empresa vendia o sonho às pessoas, mas elas recebiam pesadelo. Um absurdo – exemplifica a promotora Ana Elisa Goulart Lorenzetti.

Aos promotores, a empresa Dias Moreira afirmou que teria sido vítima do golpe de um ex-sócio, mas os membros do MP estranham que isso não tenha sido denunciado à polícia.

 

 

POSSÍVEL DIRECIONAMENTO DE EDITAL É INVESTIGADO

A

lém da fraude que lesou centenas de famílias no Oeste, um direcionamento de edital em favor de uma empresa mancha ainda mais a imagem do programa. Promotores em Florianópolis e o desembargador e coordenador do Lar Legal no Tribunal de Justiça, Lédio Andrade, afirmam ter indícios de que o ex-secretário-adjunto de Estado da Assistência Social, Trabalho e Habitação, Eleudemar Ferreira Rodrigues, o Léo, beneficiou a SC Engenharia no edital de credenciamento para atuação no programa. O encaminhamento teria ocorrido em 2012 e garantido à empresa uma fatia maior de municípios para atuação em relação às demais.

A SC Engenharia, que tem sede em Florianópolis, ficou com 56% dos 207 municípios conveniados ao programa na época. Entre eles estão os maiores e os mais populosos de Santa Catarina, enquanto as outras sete empresas credenciadas ganharam percentuais menores para atuação. Desta forma, com mais cidades para atuar, é maior também o número de famílias capazes de serem abrangidas pelo Lar Legal e a possibilidade de arrecadação. No caso da SC Engenharia, conforme a reportagem do DC apurou, há situações em que a ação foi enviada incompleta para a Justiça.

Isso ocorreu, por exemplo, em Jaraguá do Sul, no Norte do Estado, onde no dia 11 de agosto deste ano a juíza Anuska Felski da Silva afirmou em despacho que a petição inicial não estava acompanhada dos documentos do Lar Legal e, por este motivo, o processo poderia ser indeferido. Em Palhoça, na Grande Florianópolis, isso se repetiu em outra ação, como ressaltou a juíza Gabriela Sailon de Souza Benedet em 18 de setembro de 2015, ao apontar que a SC Engenharia instruiu o procedimento sem a documentação exigida pelo programa.

 

Ato de improbidade já está

em investigação há um ano

 

Em Florianópolis, há um inquérito civil aberto em 15 de outubro de 2014 na 27a Promotoria, que apura o direcionamento para credenciar empresas no Lar Legal. Autor da investigação, o promotor Paulo Locatelli, coordenador do Centro de Apoio Operacional do Meio-Ambiente na Capital, afirma que ficou constatada a ligação do ex-secretário-adjunto Eleudemar Ferreira Rodrigues com a SC Engenharia. Ele, inclusive, trabalhou na empresa após deixar o cargo de confiança na secretaria.

– Está apurado que ele trabalhava como secretário-adjunto e assim que saiu da secretaria (de Assistência Social) foi trabalhar para esta empresa de engenharia. Isso está evidenciado através de depoimentos coletados. A questão agora é ver se essa conduta tem algum ato de improbidade – explicou o promotor.

A investigação da promotoria ainda não foi concluída e Locatelli afirma que poderá haver responsabilização tanto à empresa quanto ao ex-secretário-adjunto. Nomeado para o cargo em março de 2012, ele permaneceu na função até 2014. Em fevereiro daquele ano chegou a ser secretário interino após o falecimento do então titular, João José Cândido da Silva.

 

 

POSIÇÕES DA JUSTIÇA,

DO MP E DO ESTADO

Irregularidades no programa executado pela Secretaria de Estado de Assistência Social, e que é amparado pelo Tribunal de Justiça, estão sendo investigadas pelo Ministério Público no Oeste e em Florianópolis.
A Assembleia Legislativa, uma das partes do acordo de cooperação do programa, disse através da assessoria de comunicação que o presidente, Gelson Merisio (PSD), não iria se manifestar a respeito das denúncias.

Lédio Andrade

Desembargador do Tribunal

de Justiça de SC

Paulo Locatelli

Promotor do MPSC

Marcos Brandalise

Promotor do MPSC

angela albino

Secretária de Estado de Assistência Social

VÍTIMAS DA FRAUDE

CONTRAPONTOS