Vídeo: curiosidades e números da Constituinte
O Centrão declara guerra
Diante de um plenário tenso e abarrotado, o deputado José Lourenço (-BA), um dos mais exaltados do Centrão, pegou um exemplar do texto proposto pela Comissão de Sistematização, aproximou-se do microfone de apartes e anunciou que iria rasgá-lo. Em um gesto de ódio, em outubro de 1987, partiu as folhas ao meio. Era a declaração de guerra dos conservadores. Eles tinham tornado a mudança do regimento e de itens do texto da Sistematização questão fundamental.
Meses antes, em junho, essa poderosa comissão iniciava suas atividades. Com 93 membros, ela seria responsável por unificar os textos das subcomissões e comissões que haviam atuado entre abril e junho e apresentar uma proposta de Constituição para ser votada. Nos cinco meses de funcionamento da Comissão de Sistematização, dominada pela intelectualidade dos progressistas, dos moderados e dos parlamentaristas, os conservadores e o baixo clero ficaram sem função. Andavam a esmo pelo Congresso. Chegaram a ser apelidados de "turistas".
O alijamento do pensamento médio e a aprovação de propostas consideradas radicais – como a reforma agrária com direito à desapropriação de grandes terras produtivas e a proibição da "demissão imotivada" no serviço privado – começaram a trazer inquietações. Outras polêmicas eram a adoção do parlamentarismo e um mandato de quatro anos para Sarney.
Eram as senhas para o início da rebelião. Pelas regras vigentes, seria quase impossível modificar isso em plenário, onde seriam necessários 280 votos. A apresentação de novas emendas também era proibida. Ou seja, havia um grande engessamento que favorecia as decisões da Sistematização.
– O Centrão foi consequência de uma maioria descontente, por estar marginalizada. Juntaram-se a isso o conservadorismo e os interesses do governo Sarney – constata João Gilberto Lucas Coelho.
– A Comissão de Sistematização não representava a média do pensamento do plenário. Ulysses teve de interromper os trabalhos por vários dias para fazer os ajustes propostos pelo Centrão. Quando ele anunciou isso, o Haroldo Lima (PC do B) se indignou, subiu em uma mesa e passou a gritar. Fez uma bola de papel e jogou na direção do Ulysses. Ele errou, mas foi uma confusão tremenda – diz o deputado Miro Teixeira (PMDB-RJ), hoje no PDT.
– A Sistematização tinha um projeto de tendência socialista. Ao perceber isso, organizamos um levante – diz Guilherme Afif Domingos (-SP), hoje ministro de Dilma Rousseff pelo PSD.
A esquerda, integrada por metade do PMDB, PT, PDT, PC do B, e PSB, refuta a tese de que defendia ideais "comunistas".
– Não se propunha o socialismo, mas se defendia um Estado sob controle público, e não privado – relata o ex-deputado Olívio Dutra (PT-RS).
Em dezembro, o Centrão atropelou a ala progressista com 290 votos, aprovando a mudança regimental. Ganhou notoriedade, nesse período, o deputado Nelson Jobim (PMDB-RS). Como passaram a ser aceitos novos textos em plenário, Jobim criou o expediente da emenda aglutinativa, que permitia a junção de partes de textos distintos para escrever um outro de consenso entre os blocos políticos. Até hoje esse método é utilizado.
Depois da vitória da reforma do regimento, o bloco conservador jamais tornaria a reunir sozinho a maioria absoluta, engoliria derrotas, seria humilhado, teria de fazer vários acordos de plenário por não conseguir impor sua vontade, mas também voltaria a frustrar a esquerda.
– Tudo o que era reacionário, contra o interesses dos pobres, do povo e da nação, vinha do Centrão – opina Plínio de Arruda Sampaio, ex-deputado, então no PT e hoje militante do PSOL.
No entanto, muitos dos que se opuseram à rebelião conservadora mudaram de opinião. Creem, hoje, que a alteração do regimento foi importante.
– A Comissão de Sistematização era tão sectária que se chegou ao ponto de exigir maioria para derrubar o texto que a minoria havia escrito. Essa foi a primeira causa do surgimento do Centrão: a mudança do regimento. Perdi essa batalha. Ainda bem. O Centrão não era reacionário. Tinha reacionários, mas era essencialmente conservador, para o bem e para o mal. Esse conflito brecou os voos de generosidade sem limites da Comissão de Sistematização – analisa o ex-deputado Ibsen Pinheiro (PMDB-RS).
O vale-tudo pelo tempo de mandato
Sociólogo e político em ascensão, (SP) tentava discursar na convenção nacional do PMDB, em julho de 1987. Apenas tentava. As vaias e a gritaria de militantes que lotavam o auditório Petrônio Portella, no Senado, o impediam. A algazarra era generalizada. Cânticos, xingamentos e apupos não cessavam.
FH, um dos próceres da ala progressista dirigida por Covas, pretendia defender a adoção do parlamentarismo e um mandato de quatro anos para o presidente José Sarney. Era a questão que rachava o PMDB, sigla majoritária com 303 dos 559 constituintes. Os conservadores e os mais alinhados ao Planalto queriam o presidencialismo e cinco anos para Sarney. Esses temas contaminaram a Constituinte. Todos estavam interessados na sucessão.
Depois de FH ser calado por vaias, o gaúcho João Gilberto Lucas Coelho, então membro da executiva nacional do PMDB, tentou defender a tese dos progressistas. Eles queriam eleições diretas à Presidência em 1988 ou 1989, com o mandato de Sarney acabando logo após a Constituinte. Também não conseguiu falar.
– Sarney tinha um programa social de distribuição de leite à população. Começaram a espalhar entre a sociedade que, se não ficassem os cinco anos para Sarney, o programa iria acabar. A convenção do partido lotou de caravanas vindas de todo o país, com beneficiários dessa política. Sequer eram filiados. As vaias para os progressistas eram ensurdecedoras. O FH foi a liderança mais vaiada. Foi ali que eu pensei: se não consigo falar no meu partido, o que estou fazendo aqui? – diz João Gilberto, à época integrante do Movimento da Unidade Progressista (MUP), esquerda do PMDB.
O episódio da convenção – que acabou não tendo condições para decidir nenhum posicionamento de consenso do PMDB – também é relatado no livro Meu Diário da Constituinte, de Alaor Barbosa.
"Havia duas torcidas organizadas, uniformizadas e treinadas para gritar, urrar, vaiar, aplaudir, cantar slogans. Uma, pró cinco anos. A outra, pró quatro anos de mandato para Sarney", relatou Alaor, que era assessor do Senado.
Neste período, a cizânia no PMDB era enorme. O grupo de Covas dizia que a missão de Sarney era apenas fazer a transição. Acabada a Constituinte, encerrava-se o mandato. Sarney já havia perdido a paciência. Articulava-se cada vez mais nos bastidores. Argumentava que fora eleito para seis anos de mandato no Colégio Eleitoral. Aceitava reduzir para cinco, mas não acatava um dia a menos sequer.
Sarney põe o time em campo
Com as lideranças progressistas dominando a Sistematização e pressionando cada vez mais pelos quatro anos para Sarney e pelo parlamentarismo, o então presidente passou a se articular. Mas é controverso o papel de Sarney na formação do Centrão. Alguns dizem que os conservadores se uniram naturalmente por estarem alijados, apenas observando a esquerda construir o seu mundo ideal.
Miro Teixeira (PDT-RJ) isenta Sarney e diz que a articulação começou pela União Democrática Ruralista (UDR), presidida por Ronaldo Caiado, que repelia a proposta original de reforma agrária. Há, contudo, interpretações de que Sarney foi, sim, decisivo. Pedro Simon (PMDB-RS), então governador, relata o teor de uma conversa com Ulysses, recebido por ele no Piratini naquele período:
– No encontro, percebemos que algo estava acontecendo. Era gente nomeada em cargos, novos ministros. O Sarney entrou para rachar.
Em 1988, Simon recebeu uma ligação do presidente. Ele pedia a intermediação de um acordo com Mario Covas, líder do PMDB. Sarney aceitava implantar o parlamentarismo ainda no seu mandato, desde que tivesse cinco anos de governo.
– Sarney me disse: "O Covas tá louco. Quer quatro anos de qualquer jeito". Fui falar com Covas. Cobrei dele, disse que o acordo garantiria o parlamentarismo. Mas ele não aceitou. Covas era um baita cara, era incrível. Mas aquele foi o maior erro do nosso grupo – relata Simon.
O debate sobre o sistema e o tempo de governo era infindável. Com a derrota das Diretas Já em 1984, crescia a ansiedade pela retomada da disputa pela Presidência no voto o quanto antes. Muitos dos futuros candidatos ao Planalto estavam na Constituinte.
– Covas, FH, Ulysses, Lula, Afif. Todos parlamentares paulistas que pretendiam ser presidentes. Isso levou a discussão do tempo de mandato do Sarney e do sistema de governo a gastar uma energia enorme da Constituinte. Um falso problema. Foi uma pena, afetou a modernização do Estado brasileiro – avalia Ibsen Pinheiro.
Como Covas não aceitou o acordo intermediado por Pedro Simon, inviabilizando o convencimento dos demais progressistas, o Centrão conseguiu atropelar. Primeiro, contando com votos do PT e do PDT, aprovou o presidencialismo. Depois, enfrentando o bloco progressista, garantiu os cinco anos de mandato.
O drama da ocasião é que o presidencialismo foi aprovado em conjunto com vários itens do parlamentarismo, como as medidas provisórias (MPs) e a pluralidade partidária.
– Lembro que copiei exatamente o texto da constituição italiana, apenas com a devida tradução, para definir o nosso modelo de MP. Mas ela só existe no parlamentarismo, e se não é aprovada, é dissolvido o governo. No caso do Brasil, o resultado é um chefe de Executivo superpoderoso e um Congresso enxovalhado – diz José Fogaça (PMDB-RS), que havia sido relator da subcomissão de sistema de governo.
Sarney conseguiu manter os cinco anos, mas passou a ser acusado de ter ampliado o próprio mandato com o seu poder sobre a Constituinte.
– A batalha e a propaganda foram tão grandes que o Sarney entrou para a história como o presidente que aumentou o seu mandato de quatro para cinco anos. Na verdade, diminuiu de seis para cinco – contrapõe Ibsen Pinheiro.
Os "traidores do povo" sofrem
Constituintes do Centrão chegavam em seus Estados e viam os seus rostos nos postes. Eram cartazes simples, colados aos milhares pelas ruas, com uma foto do deputado ou senador e uma inscrição em destaque: traidor do povo!
– Estávamos articulados com os movimentos populares. Idealizamos esses cartazes, e deu certo. Cansei de receber parlamentares que me diziam: "Não votarei contra vocês, não deixa colocar os cartazes" – diz o senador Paulo Paim (PT-RS).
– A esquerda era craque em difamar. Éramos tratados como impuros e ladrões. Mas, se não fosse o Centrão, não sei o que seria da Constituição – diz Luis Roberto Ponte (PMDB-RS).
O fato é que a alcunha de traidor do povo foi apenas o prelúdio do declínio do Centrão. Sozinho, o bloco fez mais de 280 votos somente para alterar o regimento. Nas outras votações, limitava-se a obstruir as pautas da esquerda consideradas radicais.
Como nenhum dos lados alcançava a maioria absoluta, restavam os acordos. Centrão e progressistas chegavam a um meio termo e aprovavam a matéria em consenso, caso das 44 horas semanais de trabalho, do pagamento de um terço de férias e do direito de greve. Sem consenso, a alternativa era dizer que haveria regulamentação posterior por lei.
A erosão do Centrão também decorreu do fato de que vários conservadores eram nacionalistas. Eles votaram com os progressistas em praticamente todo o capítulo da ordem econômica. Monopolizaram a exploração do petróleo, do solo, dos minérios. Protegeram a empresa nacional.
O golpe fatal no bloco foi dado graças à ação de uma incontrolável facção fisiológica. Sem pudores, esses parlamentares passaram a indicar pessoas próximas para cargos no governo. O mensalão da época, na
avaliação de Ponte, era a distribuição de concessões de rádio e TV. O então ministro das Comunicações, Antonio Carlos Magalhães, distribuiu centenas delas para aliados. Depois da Constituinte, atuando como chefe da Casa Civil, Ponte disse a Sarney que era preciso dar um fim à prática, que ainda persistia. O presidente não titubeou:
– Ponte, essa é a coisa mais certa que eu faço. Estou democratizando a comunicação. Repassamos as concessões a grupos diferentes.
Líderes do Centrão também falaram demais. O deputado Roberto Cardoso Alves (PMDB-SP) disse a Sarney uma célebre frase: "É dando que se recebe, presidente", sugerindo mais cargos aos aliados. Daso Coimbra (PMDB-RJ), em entrevista, desabafou.
– Se falar tudo o que sei, mandam me matar – disse ele, referindo-se aos conchavos de gabinetes. As reuniões no Carlton Hotel também traziam dor de cabeça. Era explícito o lobby.
– As multinacionais devem ter dado dinheiro, sim. Não vou dizer que não – recorda Ponte, referindo-se à conduta de parte dos seus colegas.
Com o tempo, o Centrão estava em frangalhos.
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