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violentada aos 14 anos, ade* engravidou e casou obrigada. a união deixou cicatrizes que ela carrega no corpo. cortes de facão, queimaduras de cigarro e um osso quebrado são a parte visível de uma dor que não se apaga

EU NÃO QUERIA CASAR COM ELE, MAS MINHA MÃE NÃO ACEITOU. ELA DIZIA QUE EU ESTAVA EMBUCHADA, COMO SE FALA NO CAMPO A RESPEITO DAS VACAS PRENHAS, E PRECISAVA DE UM HOMEM POR PERTO.

m maio, enquanto o sol se encolhia atrás das montanhas da Serra do Mar, na divisa de Santa Catarina com o Paraná, a agricultora Ade*, 45 anos, esticava os braços.

— São cicatrizes deixadas pelo corte de facão, queimadura de cigarro e o osso quebrado.

Marcas dos 30 anos em que sofreu nas mãos do homem 15 anos mais velho e com quem se casou aos 15. Meses antes da união, o presságio de que a paz não faria parte da vida do casal. Ade, uma menina que sequer sabia como uma mulher descobria estar grávida, foi estuprada.

O crime ocorreu durante uma viagem para visitar parentes dele que moravam numa cidade próxima. Mal chegou e o namorado ignorou a recomendação da mãe de Ade, para que ele, em quem confiava, cuidasse bem da filha. Jogada sobre a cama, ela teve as roupas arrancadas e a genitália dilacerada. Como nunca tinha tido relação sexual, achou que o forte sangramento e as dores sentidas eram normais. Meses depois descobriu ter ficado grávida.

— Eu não queria casar com ele, mas minha mãe não aceitou. Ela dizia que eu estava embuchada, como se fala no campo a respeito das vacas prenhes, e precisava de um homem por perto.

Com o passar do tempo, a violência só cresceu. Chegaram os espancamentos. Independentemente do que a agricultora tivesse feito ou estivesse fazendo: trabalhando na lavoura, lavando a louça, limpando a casa. Com uma força física desproporcional em relação à dela, o homem jogava-lhe cadeiras, dava-lhe chutes, a arrastava pelos cabelos.

Muitas vezes, lembra-se, ela buscava explicação para uma vida tão atormentada.

— Sofri muito na mão dele. Fui massacrada, estuprada. Na verdade, eu não sei se apanhava porque ele gostava de me bater ou se era um vício que ele tinha de me espancar.

Ade revela que muitas vezes pensou em pedir ajuda. Mas tinha medo de represálias, de que alguma coisa ruim pudesse acontecer com quem tentasse protegê-la. Ou que se vingasse dela. Não era uma preocupação descabida. Impiedoso, o companheiro também atuava como um torturador que atingia o psicológico – afiava o facão nas paredes da casa. Era um aviso.

— Depois das paredes, era a minha vez de ser riscada com o fio da lâmina.

Ade sentia tanto medo, que paralisava. Não conseguia se defender, sentia-se uma presa diante de um predador com quem não conseguia medir forças.

— Eu o deixava fazer o que quisesse, me cortar, machucar meus braços, deixar as cicatrizes que carrego.

Não bastasse esse terror, ela ainda enfrentava uma jornada de trabalho que se estendia da madrugada à noite. Roçava a lavoura, puxava cana-de-açúcar e feixes de erva-mate.

Ade só conseguiu tomar uma decisão depois que os filhos cresceram. Certo dia, pegou os adolescentes e foi se abrigar na casa da mãe.

— Eu estava cansada de tanto apanhar.

O basta foi dado depois de mais um espancamento que chegou ao extremo, quando teve um braço e uma costela quebrados. Foi ao hospital e também dar queixa na Delegacia de Polícia. O agressor chegou a ficar detido por uns dias. Mas, colocado em liberdade, começou a rondar a vizinhança.

— Eu senti muito medo.

Ao ir morar com a mãe, ela teve que abrir mão do sítio onde vivia e dos bens que o casal havia adquirido.

— Perdi a moradia, mas deixei aquela vida.

Ade arranjou emprego numa empresa agrícola e manteve os filhos na escola. Diz não ter como esquecer a violência que passou. Teve depressão e usa medicamentos controlados.

— Isso nunca vai sair de mim.


*Nome fictício

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Material publicado em 26 de junho de 2017