Todos mobilizados
para salvar vidas
O empenho dos profissionais que interferem até no tráfego aéreo quando há um órgão disponível torna SC referência em doações no Brasil. O DC acompanhou parte desta missão que tem pouco tempo para ser executada e onde nada pode dar errado
Reportagem: Mônica Foltran Edição: Monica Jorge Design e infografia: Fábio Nienow Vídeo: Guto Kuerten
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telefone toca. Do outro lado da linha, aconfirmação: “Temos um doador”. Nos instantes seguintes a enfermeira Silvana da Silva Wagner, que chefia a área técnica operacional na Central de Transplantes em Santa Catarina, começa uma corrida junto a uma equipe que envolve aproximadamente 45 pessoas. Todos param tudo o que estavam fazendo para se dedicar à missão especial.
O Diário Catarinense acompanhou com exclusividade, duas etapas desta corrida contra o tempo pelo Estado. A prioridade da missão faz a diferença na hora de salvar vidas.
Enquanto a doação era apenas uma possibilidade, Silvana já esquematizava o processo. Depois, com a confirmação, tem que acelerar o processo. Em instantes, localiza o receptor, monta a logística de transporte dos órgãos para diferentes cidades e estados e, com base no horário de liberação do corpo do doador, define as cirurgias de retirada e de implante.
Não há tempo para que algo dê errado. Mesmo que as definições possam mudar diante de imprevistos, é preciso que tudo seja pensado nos mínimos detalhes.
Por céu e por terra, os órgãos são transportados aos destinos. O coração que bombeia e movimenta todo o “maquinário” é a Central de Captação de Órgãos em Santa Catarina, que pulsa conforme os segundos passam.
Há sete anos SC lidera o ranking nacional na doação de órgãos – somente este ano o Estado já registrou 42 doadores – mas ainda não é referência em realização de transplantes.
Na base aérea de Florianópolis, a aeronave começa a ser preparada. Enquanto isto, o paciente selecionado para receber a doação recebe o telefonema que pode significar a chance de uma nova vida. Ele tem de seguir imediatamente para o hospital, onde a equipe médica já o aguarda. O paciente precisa estar pronto para a realização do implante tão logo chegue o órgão. Tudo o que for possível é suspenso na entidade para que o leito seja disponibilizado.
O trabalho eficiente e minucioso traz resultados expressivos nas doações. A operação começa com a identificação de um possível doador – após a morte encefálica ser constatada e atestada com três criteriosos exames, a família é consultada sobre a doação. O sim dos familiares é o start para esta corrida pela vida.
COMO É O PROCESSO DE UM TRANSPLANTE EM SC
O DOADOR
O RECEPTOR
O TRANSPORTE
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Contato com a família
Assim que a morte encefálica ou cardíaca – para casos de doação de tecido ocular – é constatada, uma assistente social conversa com a família que, se tiver interesse em doar os órgãos, assina um termo de compromisso.
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Acionamento do transporte
O termo é enviado à Coordenação de Transplante de SC. Começa a busca por uma aeronave que possa fazer o translado do material. Caso nenhum órgão público tenha uma aeronave disponível, a central pode fretar um avião ou utilizar voos comerciais.
CRITÉRIOS PARA A DEFINIÇÃO DO RECEPTOR:
compatibilidade, gravidade do estado de saúde do paciente, ordem na fila de espera e localização – pessoas do Estado onde foi feita a doação têm prioridade.
No caso de mais de um órgão a ser doado, a logística é feita simultaneamente nas cidades que farão o transplante. Caso o receptor não seja de Santa Catarina, a responsabilidade da logística da operação passa a ser do Estado do paciente que receberá a doação.
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Análise no sistema
Enquanto isso, são feitos exames e repassados ao Ministério da Saúde, que cruza os dados com os do sistema da Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos e Tecidos (CNCDO/SC) para definir o paciente que irá receber o órgão.
Órgãos removidos
Assim que se encontra o receptor, os órgãos são retirados pela equipe de transplante. No caso de rins e pâncreas, amostras são retiradas antes para o exame de compatibilidade.
Contato
O receptor é contatado e recebe informações sobre a faixa etária e condições clínicas do doador, que não pode ter a identidade revelada em hipótese alguma. A partir destes dados, o receptor documenta se aceita ou não a cirurgia – se recusar, o próximo da lista é contatado.
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UTI
O receptor é encaminhado ao hospital onde receberá o transplante com horas de antecedência para que seja submetido à cirurgia tão logo o órgão chegue.
Tempo de sobrevida
Assim que o material é retirado começa a corrida contra o tempo de sobrevida do órgão.
A decolagem
Quando a equipe da Central de Transplante chega ao aeroporto com o órgão a ser transportado, a base aérea já está preparada para decolar a aeronave imediatamente. O tráfego aéreo é interrompido para que este voo tenha prioridade.
Em viagem
Os aviões envolvidos na operação têm apoio da Central de Controle de Tráfego Aéreo para que possam traçar a rota mais rápida ou pegar “atalhos”.
A caminho do hospital
Ao chegar ao destino, a aeronave tem prioridade para pousar. Outra equipe da Central de Captação aguarda na pista para levar o órgão ao hospital.
Os órgãos são transportados imersos em um líquido que pode mantê-los “vivos” por algumas horas.
O transporte aéreo pode ser feito por Polícia Militar, Corpo de Bombeiros, SAMU, Polícia Civil, Casa Civil, táxi aéreo e voos comerciais. A definição é feita de acordo com a disponibilidade no momento.
O trajeto, dependendo das condições do trânsito e da distância, pode ser feito de carro ou de helicóptero.
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MOBILIZAÇÃO POR CÉU OU POR TERRA
No dia 19 de março, a equipe do DC acompanhou uma etapa do complexo processo que envolve um transplante. Neste dia, logo pela manhã, a equipe da Polícia Militar (PM) recebeu a missão de seguir até Joinville para buscar parte do material de um pâncreas que seria examinado no Hemosc, em Florianópolis. O procedimento faz parte da bateria de testes de compatibilidade necessários, neste caso, antes da cirurgia.
Quando a reportagem chegou na base aérea de Florianópolis, por volta das 11h, a aeronave que iria até Joinville para buscar o material estava pronta havia cerca de uma hora. Faltava apenas o sinal positivo para a decolagem. Às 11h44min, o Corisco 711, levantou voo.
O tenente-coronel Abelardo Camilo Bridi estava no comando da operação, e o capitão Igor Gonçalves de Castro era o copiloto. A missão durou exatos 52 minutos. Em Joinville, um integrante da Comissão de Transplantes aguardava a entrega do material no aeroporto, o relógio marcava 12h41min. Onze minutos depois a aeronave retornava a Florianópolis.
– Neste momento o Águia 1, helicóptero da PM está levando o coração e o pulmão de Joinville para o aeroporto onde uma aeronave do Paraná levará estes órgãos para transplante naquele Estado – disse o tenente-coronel Bridi durante o voo.
À tarde a equipe da aeronave iria fazer o translado dos rins do paciente para um novo transplante.
A missão “transplante de órgãos” permitiu que a aeronave tivesse prioridades, entre as demais, tanto na decolagem como na aterrissagem, em ambos os aeroportos.
O trajeto pôde seguir por um atalho, já que a Central de Controle de Tráfego Aéreo muda as rotas que forem necessárias para que o avião que transporta o órgão faça o caminho mais rápido.
Às 13h44min, o Corisco pousou na base aérea de Florianópolis, imediatamente o material foi encaminhado ao Hemosc para ser examinado.
– Quando a gente executa uma missão pra salvar vidas, é gratificante. Vamos para casa no final do dia, com a sensação do dever cumprido.
O DC ACOMPANHOU ETAPAS DA OPERAÇÃO TRANSPLANTE
OS PROFISSIONAIS POR TRÁS
DA MISSÃO TRANSPLANTE
equipe formada por médicos, enfermeiros e assistentes sociais que integram a Comissão de Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos e Tecidos de Santa Catarina (CNCDO-SC) está presente nos 40 hospitais de alta complexidade do Estado. O esforço dos profissionais começa com a autorização do familiar do doador e vai até o implante do órgão.
A notícia da morte de um paciente é um dos momentos mais difíceis em um hospital. No Regional de São José, a assistente social Renata Fernandes dá apoio aos familiares no momento da perda. Integrante da Comissão de Transplantes desde 2010, ela enfrenta a resistência e também a dor dos parentes da vítima ao tentar mostrar a importância da doação dos órgãos.
– Tem todas as situações: quando a família já diz que não quer logo de cara e quando querem te ouvir e conversar. É um envolvimento grande – conta Renata.
O diretor adjunto do Centro de Captação de órgãos, o médico intensivista Rafael Lisboa Souza, explica que é fundamental o preparo da equipe em dar o devido acolhimento e segurança aos familiares durante o procedimento.
No dia 9 de março, o Diário Catarinense teve a oportunidade de acompanhar uma etapa no processo de transplantes dentro do Hospital Regional, em São José. Para que a missão, na sala de cirurgia fosse bem-sucedida, cinco médicos de SC e do RS se dividiram nas captações.
A médica Fabíola Perin, de Porto Alegre, dedicava-se à retirada do coração e dos pulmões, enquanto o cirurgião Mauro Igreja, de Blumenau, cuidava da retirada do fígado, dos rins e do pâncreas. Um anestesista controlava a pressão dos órgãos durante todo o processo.
Quando o relógio marcava 12h42min, o coração do jovem de 19 anos parou de bater. A morte cerebral era irreversível e constatada, mas os aparelhos mantinham os órgãos vivos, para a captação.
O coração foi retirado um minuto depois. Em 47 minutos, foi a vez dos pulmões. Outros cinco órgãos foram aproveitados para transplantes, aos cuidados do cirurgião Mauro Igreja.
No momento em que terminava a história daquele jovem, vítima de acidente, começava a nova chance de outros sete transplantados.
Após a complexa retirada, Fabíola carrega os pulmões, embala os órgãos em plástico e depois os coloca na caixa térmica com gelo. Todo cuidado é pouco. Ao constatar o bom estado dos órgãos durante a cirurgia, a médica ligou para o colega da equipe em Porto Alegre, onde um paciente já estava preparado em outro centro cirúrgico. Fabíola passou, então, de médica a guardiã das caixas térmicas. Rapidamente, ela decolou com o helicóptero da Polícia Civil do hospital até o aeroporto de Florianópolis, de onde partiria rumo à capital gaúcha.
– Quando retiramos o pulmão aqui, está tudo preparado lá em Porto Alegre. Os dois pacientes que irão receber cada um dos órgãos já estão na sala de cirurgia à espera da nossa chegada – explica a médica.
Com os aparelhos desligados e o coração e os pulmões removidos com a maior urgência, os próximos órgãos a serem retirados também ficaram sob responsabilidade do médico Mauro Igreja. Cada detalhe do processo foi vistoriado pelos profissionais.
Trabalho manteve médico em cirurgia por quase 12 horas
Após a retirada, os órgãos foram refrigerados próximo à temperatura de zero grau. Para evitar complicações, Mauro Igreja também realizou o implante dos órgãos nos outros pacientes, realizado no mesmo dia no Hospital Universitário. Um trabalho árduo e exaustivo que começou às 10h15min e foi concluído perto das 22h, mas que traz grandes satisfações.
– É complexo. A anatomia tem que estar mantida, se não, não conseguimos implantar em outro paciente – explica o médico, em um breve intervalo durante a captação, que começou por volta das 10h e foi concluída apenas após as 14h daquele dia.
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“O PROCESSO TEM ESPAÇO PARA MELHORAR”
Em entrevista ao DC, coordenador do SC Transplante, Joel Andrade, explica porque SC tem a melhor colocação em doação de órgãos, mas não é referência em transplantes
DC – Santa Catarina é líder na realização de transplantes?
Andrade – Não, SC tem a melhor colocação em doação de órgãos em sete dos últimos oito anos. A Central de Transplantes funciona desde 1999 em SC e a partir de 2006 teve o melhor desempenho nos anos seguintes com exceção de 2010. Já em relação aos transplantes estamos entre os três melhores nos programas que desenvolvemos, em especial no transplante renal e hepático. Alguns órgãos de doadores pediátricos como coração, pulmão, fígado e rim são enviados a outros Estados, alimentando suas estatísticas. Isso impede que tenhamos a melhor colocação também em transplantes.
DC – Por que temos os melhores resultados em doação, mas não na realização de transplantes?
Andrade – Foi uma decisão política de se estruturar um sistema eficiente aproveitando o melhor modelo do mundo, a Espanha, o qual adaptamos em Santa Catarina. Chegamos nos melhores resultados devido à formação dos profissionais. Temos coordenadores de transplantes em todos os hospitais do Estado que têm UTI.
DC – Qual o próximo passo?
Andrade – Nosso processo ainda tem espaço para melhorar. Aumentar o número de doadores. A Espanha, reconhecida durante 20 anos como a melhor do mundo em resultado de doações, tem a marca de 35 doadores por milhão de habitantes. Em 2004 tivemos 7 por milhão; 2005 foram 11,9 por milhão e em 2006, 12,8. Muita gente no Brasil sustentava que não seria possível atingir esta marca. Mas, em 2011 chegamos a 24 e, em 2013, fomos a 27,2 por milhão de habitantes. Agora queremos chegar aos 35 e, se possível, ir além desta meta.
DC – Como o senhor acredita que podemos aumentar o número de transplantes realizados?
Andrade – Um bom exemplo vem do excedente de rins enviados a outros centros de transplante no Brasil. As poucas equipes que utilizam rins de doadores idosos já têm experiências bem documentadas mostrando ser esta uma estratégia útil. Um colega nosso esteve na Catalhuna estudando esta estratégia.