O ano em que elas
Violência, machismo, projetos de lei polêmicos. Esse conjunto de fatores resultou em um momento marcado pelo protagonismo feminino

A violência contra a mulher dificilmente sai de pauta. Páginas policiais comprovam constantemente a existência de agressões. O que é menos comum é ver a mulher não apenas na condição de vítima de crimes, mas assumindo o papel de protagonista da própria vida. Foi isso que ocorreu em 2015. Em atos contra o machismo, ou em manifestações contrárias a projetos de lei que tomam decisões por elas, as mulheres disseram “basta!”.

Só no primeiro semestre deste ano, um média diária de 179 casos de agressão foram denunciados à Central de Atendimento à Mulher no país. Em 31% há chance de morte. O tema também é latente em Santa Catarina. Até agosto de 2015, foram em média 18 agressões por dia – todas tipificadas pela Polícia Civil como violência doméstica. Foram 26 mulheres mortas por seus companheiros nos oito primeiros meses do ano. O número de mulheres estupradas por seus cônjuges foi superior: 37 casos.

Porém, uma análise positiva pode surgir dos números: o aumento dos relatos mostra a conscientização sobre a importância de fazer a denúncia.

“A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira” voltou em peso aos holofotes depois de ser tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), em outubro deste ano. No mês seguinte, o assunto foi das redes sociais para as ruas, quando milhares de mulheres protestaram por seus direitos.

O estopim para o evento batizado de “Primavera das Mulheres” foi o avanço do projeto de lei 5.069 de autoria do presidente da Câmara Eduardo Cunha, que dificulta o aborto legal em caso de estupro. Porém, também trouxe à pauta a reivindicação contra uma das vertentes do machismo: a violência. Para se ter ideia, entre janeiro de 2014 e outubro de 2015, a busca pelos termos “feminismo” e “empoderamento feminino” no Google foi de 8,1 mil para 90,5 mil e 70 para 3,6 mil, respectivamente. O ciberativismo tomou corpo em Florianópolis em duas manifestações femininas em novembro: nos dias 6 e 19.

Nas próximas páginas, a Hora de Santa Catarina traz histórias de três mulheres vítimas da violência. São relatos de agressões psicológica e física, que refletem o porquê da luta por direitos iguais e da necessidade de discussão sobre o tema. Pessoas ouvidas contam sobre o atendimento prestado às vítimas, o impacto da mobilização feminina e a projeção de resultados futuros. E ainda lembram que o grito de “basta!” tem que continuar.

julho

Assédio sexual:

Em 7 de julho, a Superinteressante publicou em seu blog 104 histórias de estupro enviadas por suas leitoras após uma campanha.

agosto

Margaridas:

Simbolizando a luta das mulheres camponesas, a marcha reuniu 70 mil pessoas em Brasília. Foi uma das maiores mobilizações femininas da América Latina.

Casos reais de violência
Psicológica

Rosa*, 33 anos, sempre foi independente. Estimulada pelos pais, aprendeu a dirigir e fez faculdade antes da maioria das amigas. Não precisava dar satisfações a ninguém. Na universidade, conheceu seu futuro marido, 19 anos mais velho.

– No início era um namoro normal. As coisas evoluíram rapidamente e eu me mudei para a cidade dele – lembra.

Longe da família, ela viu o relacionamento mudar. O companheiro passou a controlar todas as suas atividades. Não a deixava ficar em lugares com muitas pessoas e a situação se agravava quando eram muitos homens.

– Eu pensava que era um ciúme exagerado, mas era mais do que isso – reflete.

O autodiagnóstico de Rosa não é comum. A maioria tem dificuldade de reconhecer a forma mais subjetiva de violência, que atinge uma em cada três mulheres no mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde.

– Ele mandou cercar com lona escura as grades da nossa casa, para que ninguém que passasse na rua pudesse me ver. Não me deixava trabalhar, nem estudar. Eu não podia passar maquiagem, usar salto alto ou vestir uma blusa mais apertada. Engordei 20 quilos e ele dizia que não tinha problema – relembra.

Nem o nascimento da filha fez com que ele parasse – pelo contrário, as restrições se estenderam à criança.

– A gente acaba ficando doente, porque começa a aceitar tudo para conseguir viver em paz. Mas eu decidi que preciso ser forte. Depois de 19 anos juntos, pelo bem da pequena e dela própria, Rosa decidiu romper a relação.

Eu não podia passar maquiagem, usar salto alto ou vestir uma blusa mais apertada.

Rosa* |  vítima

Física

setembro

Mulher negra:

A americana Viola Davis, estrela da série de TV How To Get Away With Murder, foi a primeira negra a vencer o Emmy de melhor atriz dramática. Ao receber o prêmio, ela disse que a “única coisa que separa mulheres de cor de qualquer outra pessoa é oportunidade.”

outubro

#PrimeiroAssédio:

Telespectadores foram às redes sociais postar comentários de assédio depois que Valentina Schulz, 12 anos, apareceu no programa de TV MasterChef Júnior Brasil. Foi então que a ONG Think Olga iniciou a campanha online #PrimeiroAssédio, incentivando o compartilhamento de histórias de abuso. Segundo a ONG, a hashtag teve milhões de buscas no Google, e o termo entrou no ranking de Pesquisas do Ano de 2015.

Teve uma vez que apanhei tanto que cheguei a desmaiar. Eu estava grávida.

Dália* |  vítima

Morte

Rúbia* era amiga e vizinha de Margarida*, 36 anos, em Rio do Sul. A proximidade entre as duas casas refletiu na amizade entre elas, que se estreitou com o passar do tempo. Entre os muros, elas dividiam xícaras de açúcar e confidências. A amiga conta que Margarida viveu junto de Pedro*, 47, por dois anos naquela casa, até que o relacionamento acabou, em 2014.

– Ela desconfiava de uma série de atitudes dele, e então resolveu terminar e mandá-lo embora de casa. Mas ele não aceitou bem a situação – relata Rúbia à reportagem.

Depois de alguns meses, o marido fez as malas e voltou para a casa de Margarida, forçando-a a recebê-lo. Passaram-se quatro dias quando ele a atingiu com 11 facadas no peito. Ela morreu minutos depois no hospital.

– Acordei no meio da madrugada com os gritos dela. Ela dizia: “para, amor, para”. Nunca vou esquecer – detalha a amiga da vítima, que testemunhou o crime à Delegacia da Mulher do município e contribuiu para a prisão do autor do crime.

Margarida, vítima do feminicídio (que é caracterizado quando a mulher é assassinada justamente pelo fato de ser mulher), deixou dois filhos. Junto com ela, outras 15 mulheres chegam à morte a cada dia por não conseguirem romper o convívio violento com seus parceiros, conforme o Instituto de Pesquisa e Estatística Aplicada (Ipea). É um homicídio ocasionado pela violência de gênero a cada uma hora e meia.

O medo que 34% das mulheres brasileiras sentem diariamente: o de serem mortas por quem elas amam e pensam ser amadas, segundo a Comissão Parlamentar Mista da Violência contra a Mulher.

 

Mulher negra:

A americana Viola Davis, estrela da série de TV How To Get Away With Murder, foi a primeira negra a vencer o Emmy de melhor atriz dramática. Ao receber o prêmio, ela disse que a “única coisa que separa mulheres de cor de qualquer outra pessoa é oportunidade.”

Redação do Enem:

“A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”  foi tema da redação e levantou uma série de debates nas redes sociais e rodas de conversa.

Acordei no meio da madrugada com os gritos. Ela dizia: ‘Para, amor, para’. Nunca vou me esquecer.

Rúbia* |  amiga da vítima

Atendimento às vítimas

Medo, dependência financeira, esperança de que a situação mude e amor. Essas são as principais dificuldades enfrentadas por mulheres que encontram forças para dar um basta à violência doméstica.

– Cada caso é um caso. E um é pior que o outro. São vários os fatores que fazem com que aquela mulher permaneça em situação de violência. E a sociedade não entende isso e ainda tenta encontrar justificativas para elas terem sofrido – explica a assistente social Josiane Madeira Espíndola, que atua em uma casa de passagem em São José.

– Quando a mulher decide procurar ajuda, ela já está no seu limite. Foi um passo muito grande. Ela também se sente derrotada, por ter tentado mudar o parceiro, fazer com que ele parasse de agredi-la e ter falhado – complementa a psicóloga Bianca Spíndola Pereira, que atua em outro abrigo.

Não bastasse a fragilidade psicológica, ela ainda encontrará pela frente uma rede de atendimento desintegrada. Apesar da variedade de serviços, os órgãos não se comunicam e obrigam a mulher a fazer uma via-sacra até receber o atendimento necessário.

As mulheres têm à disposição um disque-denúncia (Ligue 180), Delegacias da Mulher, casas de passagem (ou de abrigo) em cada comarca, Centros de Referência Especializado de Assistência Social, Centros de Referência de Atendimento à Mulher, Defensoria Pública, juizados especializados e a Coordenadoria de Execução

Penal e Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher. Mas o que, onde e como são oferecidos nesses lugares são dúvidas que as vítimas buscam respostas.

– A maioria das mulheres não sabe o que fazer. As coisas ainda estão andando muito devagar – avalia a desembargadora Salete Silva Sommariva, da Coordenadoria de Execução Penal e Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher do Tribunal de Justiça de Santa Catarina.

#AgoraÉQueSãoElas: Entre os dias 2 e 8 de novembro, mulheres ocuparam espaços de fala para denunciar ataques físicos, políticos e simbólicos que sofrem cotidianamente.

Primavera das Mulheres: Reportagem de capa da revista Época endossa a força o movimento das mulheres no Brasil.

Onde procurar ajuda na Grande Florianópolis

Central de Atendimento

à Mulher

• Central de Atendimento à Mulher  funciona 24 horas por dia, de segunda a domingo, inclusive feriados. A ligação é gratuita. Na Grande Florianópolis, a 6ª Delegacia de Polícia é o ponto de atendimento.

LIGUE 180

Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher

• Órgãos da Justiça ordinária com competência cível e criminal, responsáveis por processar, julgar e executar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher.

INFORMAÇÕES

(48) 3287-6485

 

#Mulheres
ContraCunha:

Elas vão às ruas protestar contra o projeto de lei 5.069 que dificulta o aborto legal em caso de estupro. O texto do PL foi aprovado em 21 de outubro pela Comissão de Constituição e Justiça. Em Floripa, manifestações aconteceram nos dias 6 e 19.

Centros de Referência

de Atendimento à Mulher (Crams)

• Espaços de acolhimento e acompanhamento psicológico e social a mulheres em situação de violência, que também fornecem orientação jurídica e encaminhamento para serviços médicos ou casas abrigo.

INFORMAÇÕES

(48) 3224-6605

Abrigo em São José

• Mantido por uma família adventista, a casa de passagem atende mulheres que sofreram violência doméstica. São oferecidas 20 vagas, sendo 10 por um convênio com a Prefeitura de São José. O local oferece apoio às vítimas e seus filhos. As mulheres têm atendimento psicológico, ginecológico, social e demais especialidades. O abrigo acolhe e encaminha para o mercado profissional e dá apoio no que a vítima precisa. Para solicitar uma vaga é preciso ser encaminhado pela Delegacia Especializada.

INFORMAÇÕES

(48) 3278-1978

 

Centros de Referência da Assistência Social (CRAS)

• Unidades públicas que desenvolvem trabalho social com as famílias.

FLORIANÓPOLIS:

Centro: (48) 3222-0148

Trindade: (48) 3338-1076

Capoeiras: (48) 3348-6237

Jardim Atlântico: (48) 3244-0683

Canasvieiras: (48) 3369-0840

Ingleses do Rio Vermelho: (48) 3369-1302

Saco Grande: (48) 3338-2610

Saco dos Limões: (48) 3222-9165

Tapera: (48) 3338-1042

Rio Tavares: (48) 3337-4028

 

PALHOÇA:

Brejaru: (48) 3286-3441

 

BIGUAÇU:

Rio Caveiras: (48) 3243-2800

Cepevid

• A Coordenadoria de Execução Penal e da Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher é um órgão vinculado à Presidência do Tribunal de Justiça e realiza ações junto à Corregedoria Geral da Justiça. Integram a Cepevid os Núcleos Operacionais de Execução Penal e da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.

INFORMAÇÕES

(48) 3287-2580

Previna na ameaça

#MeuAmigoSecreto: Mulheres usam as hashtags #MeuAmigoSecreto e #MeuAmigoOculto para denunciar nas redes sociais o machismo cotidiano. A exposição dos casos aumentou em 40% as denúncias no Disque 180.

#NãoTiraO
BatomVermelho:

A cantora Clarice Falcão lança o clipe Survivor com a participação de 66 mulheres. Antes, a youtuber Jout Jout já havia gravado um vídeo onde pedia para as mulheres não tirarem o batom vermelho quando seus companheiros obrigassem.

Mapa da Violência:

A edição de 2015 do Mapa da Violência foi divulgada no dia 25 de novembro. O assassinato de mulheres negras cresceu 54% em 10 anos (2003 a 2013), enquanto que o de brancas diminuiu 10%. Estudo revela ainda que 50,3% das mortes violentas de mulheres são cometidas por familiares e 33,2% por parceiros ou ex-parceiros.

16 dias de ativismo:

A campanha iniciou em 25 de novembro, Dia Internacional da Não Violência contra a Mulher, e foi até 10 de dezembro, o Dia Internacional dos Direitos Humanos, passando pelo 6 de dezembro, que é o Dia Nacional de Mobilização dos Homens pelo Fim da Violência contra as Mulheres.

Abrigo de passagem

dezembro

Feminismo no Esquenta:

Em 6 de dezembro, o programa Esquenta, da Rede Globo, tratou da temática do feminismo. A apresentadora Regina Casé levou ao palco as especialistas Clara Averbuck, Luíse Bello e Juliana de Faria.

Casa da mulher brasileira em Florianópolis

Um projeto do Governo Federal a ser implantado em Florianópolis pretende unir e integrar os órgãos de atendimento às vítimas de violência doméstica. A Casa da Mulher Brasileira é um dos eixos do programa “Mulher, Viver sem Violência”, da Secretaria de Políticas para as Mulheres, da Presidência da República, e está em fase inicial na Capital catarinense.

A casa de 3,8 mil m² terá dois pavimentos e contará com a atuação de 160 profissionais em acolhimento e triagem, apoio psicossocial, delegacia, juizado, Ministério Público, Defensoria, promoção de autonomia econômica, cuidado das crianças, alojamento de passagem para 20 mulheres e central de transportes. Ela será construída ao lado da 6ª Delegacia de Proteção à Mulher, ao Menor e ao Adolescente, no bairro Agronômica.

Em setembro, a Assembleia Legislativa aprovou a cessão de uso do terreno do Estado à União por 20 anos. Agora, para Florianópolis ser a quarta capital a receber a Casa, espaço e projeto técnico devem ser validados pela SPM. O processo de implantação pode levar até dois anos.  Ainda não há previsão de início para construção. O custo está orçado em R$ 7,84 milhões.

Nos três primeiros anos, a manutenção mensal de R$ 700 mil será bancada pelo Governo Federal. Depois, as contas ficarão a cargo do município, mais especificamente da Coordenadoria da Mulher de Florianópolis, em uma regulamentação protocolada. Mas Dalva Maria Kaiser, que comanda a repartição, alerta que não há competência administrativa para manter o espaço.

– Não temos autonomia nem recursos para dar conta de maneira independente. A Prefeitura precisa de um olhar mais preocupado em relação às mulheres. Necessitamos a criação de uma secretaria, com poder administrativo e financeiro – diz Dalva.

Fachada do espaço no Distrito Federal

Cuidado com
os nudes:

A ONG Think Olga criou a campanha #MandaPrints, cujo objetivo é incentivar mulheres a denunciar aos órgãos responsáveis as agressões que sofrem via internet.

Legislação avança da Maria da Penha para 
o Feminicídio

No fim de 2014, o Congresso Nacional passou a discutir mudanças na Lei Maria da Penha, criada em 2006. A discussão foi necessária porque as taxas de mortalidade foram de 5,28 por 100 mil mulheres no período 2001 a 2006 (antes da lei) e de 5,22 em 2007 a 2011 (depois da lei), demonstrando uma diminuição irrisória.

– É uma questão cultural, que vem desde a época em que o Brasil era patriarcal e o homem era dono da mulher. Aliás, faz muito pouco tempo que nós, mulheres, saímos daquela condição de ré, de “coisa”. Mas a cultura machista continua a predominar – contextualiza a desembargadora Salete Silva Sommariva.

A impossibilidade de o agressor pagar fiança para livrar-se da acusação de violência doméstica, além do impedimento de o homem voltar para casa, em vez de a mulher ter de ficar escondida em casas de abrigo, foram as principais mudanças na legislação destacadas pelos parlamentares.

– Do que adianta medida protetiva (documento que pode ser solicitado pela mulher para pedir o afastamento do agressor)? É só um papel. Se o homem quiser vir e matar, ele vai fazer isso – comprova Dália*, vítima dessa realidade.

Diante da impunidade, a Comissão Parlamentar Mista da Violência Contra a Mulher solicitou uma alteração no Código Penal: para que passasse a se chamar “feminicídio” o crime de morte contra a mulher praticado por alguém que teve relação íntima com ela.

A Lei do Feminicídio foi sancionada em março de 2015 pela presidente Dilma Rousseff. A edição difere do homicídio masculino, pois a maioria dos casos de assassinato de mulheres é cometida por parceiros ou ex-parceiros e pode envolver o abuso contínuo em casa, com ameaças ou intimidação, violência sexual ou situações onde as mulheres têm menos poder ou recursos do que o homem.

Cristina Wolff, coordenadora do Laboratório de Estudos de Gênero e História da UFSC, faz uma análise sobre as lutas feministas

Observações finais

Para preservar a identidade das vítimas de violência, a Hora optou por substituir os nomes verdadeiros por nomes de flores em alusão à “primavera das mulheres”. Outras pessoas envolvidas nas histórias também foram protegidas.

Relembre 
os principais acontecimentos

O ano em que as mulheres lutaram por igualdade de gênero teve maior concentração de atividades no segundo semestre.

Ciclo da violência

Rosa*, Dália* e Margarida* completam o chamado ciclo da violência doméstica. Esse tipo de crime de gênero tem início na ameaça, passa pela agressão e pode se encerrar com a morte. A Organização Mundial da Saúde (OMS) identifica o feminicídio como o assassinato intencional de mulheres apenas pelo fato de elas serem mulheres.

Além da dificuldade que as vítimas têm para sair da situação de violência doméstica, seja pela dependência emocional, financeira ou familiar, a estatística as une. Somente entre janeiro e agosto de 2015 foram registrados 8.865 casos de ameaça contra a mulher no Estado. No mesmo período, houve 4.346 ocorrências de lesão corporal dolosa – quando há a intenção de machucar e são deixadas marcas no corpo.

Na Grande Florianópolis, foram identificadas 1.841 ameaças, 1.004 lesões corporais dolosas (com intenção de machucar) e nove feminicídios até julho deste ano. Em 2014, foram 1.912 ameaças, 591 registros de lesão corporal dolosa e seis homicídios nos municípios do entorno da Capital. No acumulado dos últimos cinco anos, 2012 foi o pior, com cinco feminicídios registrados.

No comparativo com o restante do país, Santa Catarina é o terceiro estado menos violento da nação, perdendo apenas para São Paulo e Piauí, segundo a Comissão Parlamentar Mista da Violência Contra a Mulher, do Congresso Nacional.

Mas cinco municípios catarinenses estão entre os cem mais violentos para as mulheres, onde há maior registro de feminicídios: Lages (17º), Mafra (45º), Criciúma (83º), Balneário Camboriú (89º) e Chapecó (91º).

“A mulher do
fim do mundo”:

A cantora Elza Soares lançou o álbum com a música “Maria da Vila Matilde”, que trata do enfrentamento da violência contra

a mulher.

Vamos juntas?: Mulheres criaram grupos no Facebook e WhatsApp para irem juntas a qualquer lugar e, assim, enfrentar o medo de serem agredidas. Assunto foi reportagem da Hora.

Faltam políticas específicas

A coordenadora de Políticas da Mulher de Florianópolis, Dalva Maria Kaiser, acredita que as mulheres devem participar mais da formulação das políticas públicas para conhecerem a estrutura que está à disposição.

– Toda a violência doméstica deve ser combatida com políticas públicas, principalmente com campanhas temáticas que dão visibilidade à questão de gênero. Paralelamente a isso, a gestão pública deve dar conta de qualificar as pessoas e implantar os serviços de maneira ampla – defende.

– Políticas de gênero são desconsideradíssimas. Quando se fala em mulher, só se lembra de creche, de domésticas. Não é por aí – acrescenta a presidente do Conselho da Mulher, Kelly Vieira, que convida a participação feminina no programa municipal “Mulheres na Política”.

Membro da bancada feminista na Assembleia Legislativa de Santa Catarina, a deputada Dirce Heiderscheidt diz que a prioridade será trabalhar pela instalação da Casa da Mulher Brasileira em Florianópolis, mas reconhece que é necessário ir além.

– A Casa vai minimizar os efeitos da violência contra a mulher no Estado, mas essa é uma temática que deve ser trabalhada em várias esferas e sempre, até que não seja mais necessário discutir.

A desembargadora Salete Silva Sommariva acredita na educação do próprio agressor.

– Temos que inserir no currículo escolar, logo nos primeiros anos, disciplinas que impeçam essa formação atravessada e machista dos meninos. Também estamos dando os primeiros passos na inserção do programa de proteção ao agressor, que já existe em outros Estados. Enquanto não tratarmos o agressor, não iremos coibir a violência – explica.

A iniciativa funcionaria a partir do trabalho de um corpo de profissionais analisando cada situação. Se o agressor for alcoólatra, ele será encaminhado pela equipe ao tratamento, por exemplo.

– Paralelamente à punição prevista em lei, o acompanhamento pode evitar a reincidência dos casos, que é grande – avalia a desembargadora.

Aplicativo
contra o assédio:

O aplicativo Sai Pra Lá foi lançado por uma estudante com o intuito de mapear o assédio e atuar na prevenção. O sistema também surgiu para mostrar para as mulheres quais os locais onde mais ocorrem cantadas, assovios ou passadas de mão. Tema foi reportagem da Hora.

Marcha das Mulheres Negras: Evento em combate ao preconceito de cor e gênero reuniu 10 mil mulheres em Brasília, que foram repreendidas pela Polícia Militar.

Perspectivas para 2016

Em novembro, dois protestos ocorreram em Florianópolis

No fim de outubro, a estudante da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Marina Juliana Gonçalves, 23 anos, acompanhava pelo noticiário nacional as manifestações em grandes centros do país. Os atos foram organizados por mulheres contrárias ao avanço do projeto de lei 5.069, de autoria do presidente da Câmara Eduardo Cunha, que dificulta o aborto legal em caso de estupro. Isso a motivou a participar do primeiro evento do tipo em Florianópolis, no dia 6 de novembro.

– Mesmo antes de ter acontecido a manifestação aqui estava um clima muito incrível de uma catarse coletiva, sabe? De finalmente as mulheres terem chegado ao seus limites – conta Maju, como é conhecida na articulação do Coletivo Jornalismo Sem Machismo, primeira mobilização acadêmica feminista da UFSC.

Mas a contrariedade ao projeto de lei foi somente o estopim dos eventos batizados de Primavera das Mulheres. Nos cartazes, elas bradavam pelo fim da violência de gênero, por maior igualdade salarial e pelo direito de serem protagonistas de suas vidas.

– Cada mulher vai ter uma dificuldade específica e vai vivenciar o machismo de uma maneira diferente. Então isso tudo acaba culminando dentro de uma manifestação como essa – afirma Maju.

A coordenadora do Laboratório de Estudos de Gênero e História da UFSC, Cristina Wolff, confirma a visão da estudante. Para ela, não existe somente um feminismo: há vários movimentos que se unem na luta contra a opressão das mulheres. A tomada de consciência pelos direitos femininos é o grande trunfo dessa nova fase de mobilização.

– O momento atual é uma nova efervescência. Agora as pessoas começaram a ver a ameaça de retrocesso. O discurso de alguns políticos conservadores trouxe à tona o questionamento de alguns direitos femininos já adquiridos. Ou melhor, de direitos que a gente achava que já estavam garantidos, mas na verdade não conquistamos.

Cristina, que também participa do Instituto de Estudos de Gênero e edita a revista Estudos Feministas, justifica o raciocínio:

– Porque os níveis de violência ainda são inaceitáveis, porque a diferença salarial ainda é inaceitável, porque ainda há mais mulheres desempregadas do que homens, porque o feminicídio continua existindo.

É exatamente por essa pauta ampla e necessária que a estudante Maju espera que a Primavera das Mulheres seja definitiva:

– Eu acho que não tem mais volta. Acho que a partir do momento em que as mulheres decidiram ir pra rua ou fazer o ciberativismo, que também é muito forte e importante, ninguém mais vai conseguir segurar.

Na posição de especialista, Cristina também torce para a manutenção do movimento:

– Eu vejo essas jovens muito animadas, muito imbuídas dessas reivindicações. E ao mesmo tempo vejo uma resistência forte do outro lado. Poder e resistência, como diz Foucault, estão juntos. A gente espera conquistar os direitos, mas por enquanto eu acho e espero que esse movimento perdure até que a gente consiga adquirir outro patamar nessa conquista de direitos – finaliza.

Com dois filhos criados, Dália*, 42, conheceu seu agressor. Ela encontrou o companheiro na igreja.

– Frequentávamos as mesmas celebrações e nos aproximamos. Sabia que ele tinha histórico com drogas, mas torcia para que se recuperasse. Queria fazer parte do processo de salvação – conta Dália.

Mas ela não conseguiu resgatá-lo. Ao contrário, Dália ficou dependente dele quando se viu encurralada em um convívio violento. O envolvimento entre os dois foi tão rápido quanto a volta dele ao tráfico e ao consumo de drogas.

Alucinado, oscilava entre as agressões e as promessas de melhora. – Ele me batia muito. Eram empurrões, tapas, puxões de cabelo, socos.  Teve uma vez que apanhei tanto que cheguei a desmaiar. Eu estava grávida – detalha a vítima, com o filho no colo.

A história de Dália não é um caso isolado. Os dados da OMS indicam que 7% das mulheres correm o risco de sofrer violência em algum momento.

Monica Zilberman e Sheila Blume, estudiosas do assunto em São Paulo e em Nova York, estimam que o uso de álcool ou drogas possa estar envolvido em até 92% dos casos de violência doméstica.

Depois de uma surra que a deixou inconsciente, Dália decidiu sair de casa levando o filho para viverem em segurança em uma casa de passagem. O marido, por sinal, está solto e ela desconhece seu paradeiro.

– Sinto falta de sair na rua sem ficar olhando para trás para ver se estou sendo seguida. Tenho medo que ele me encontre. Eu estou presa e ele está livre – relata a mulher.

novembro

Proibir a companheira de usar certas roupas, maquiagem ou cor de esmalte nas unhas, restringir saídas a determinados lugares e isolá-la do convívio de amigos e familiares são alguns dos exemplos de relacionamento abusivo. Reconhecer e dizer “não” a esse tipo de comportamento pode ser o começo do fim para o sofrimento.

– As mulheres costumam dizer: “ah, mas ele só me xinga, não faz nada mais”. Mas esse é o início de um abuso que já deve começar a ser combatido. Por vezes, as marcas de uma violência psicológica podem ser mais fortes que um soco – explica a psicóloga Bianca Spíndola Pereira.

Num contexto de prevenção, a Organização Mundial da Saúde cita seis maneiras de combater a violência:

• Reforçar a vigilância e rastreio de violência: trabalho de cooperação entre polícia, médicos e agências com objetivo de coletar e relatar com mais detalhes a relação vítima-infrator.

• Capacitar e sensibilizar profissionais de saúde: estudos têm mostrado que grande parte das mulheres acessa os serviços de saúde (por causas de violência) no ano anterior ao de ser morta.

• Capacitar e sensibilizar policiais: junto de entidades de proteção às crianças, a polícia é o principal serviço que pode dar suporte às menores afetadas.

• Aumentar a prevenção e pesquisa de intervenção: segundo a OMS, esta é a melhor maneira de reduzir a morte de mulheres no mundo, pois intimida a violência de parceiros.

• Reduzir a posse de armas e fortalecer as leis sobre armas: o risco de morte entre as mulheres cresce três vezes quando existe uma arma em casa.

• Reforçar a vigilância, investigação, leis e consciência de assassinato em nome da “honra”: advogados têm relatado sucesso na sensibilização destes crimes por meio da coleta e análise de dados, processos e decisões judiciais, utilizando como referência os direitos humanos internacionais.

Quando se dirigem às casas de passagem, as vítimas estão no ponto máximo do abalo físico e psicológico. Muitas chegam com as marcas da violência ainda bastante vivas. Outras, deixam o olhar se perder entre as conversas travadas com quem as recebe, evidenciando a fragilidade do momento.

As que chegaram ao local elas deram um passo muito grande para colocar um ponto final na agressão sofrida pelos companheiros: fizeram a denúncia em uma delegacia de Polícia Civil. Mediante o registro do boletim de ocorrência, elas são encaminhadas para esses espaços de acolhimento, onde recebem apoio de psicólogas e assistentes sociais para tentar restabelecer a vida – agora, sem violência.

Entre as sessões de terapia, as vítimas conversam, saem em busca de novos empregos, cozinham e brincam com os filhos – que podem conviver nesses espaços em quartos compartilhados com outras mães. Em geral, a estrutura é bem equipada e nada falta para essas mulheres. A não ser a saudade da própria casa.

– Elas perdem a referência, não tem jeito. É muito difícil para uma vítima ter que deixar a casa, às vezes seu emprego e, principalmente, a pessoa que ela ama ou amava, mas que a fez sofrer – explica a assistente social e coordenadora de um desses espaços em Florianópolis, Késsia Grasiele Ientz.

Quem fez

Reportagem

Gabriele Duarte

Edição

Stefani Ceolla
Ana Paula Bittencourt

Fotos e vídeo

Betina Humeres

Fotos

Charles Guerra

Arte e Diagramação

Leonardo Gomes

reprodução

evaristo sá/afp

stèphane munnier/divulgação