INÍCIO

EXPULSOS DA ESCOLA

FAMÍLIAS DESALOJADAS

MINHA CASA OU MINHA VIDA

 

 CRIME EXPULSA ALUNOS

DA SALA DE AULA

– Eu preciso que vocês consigam uma vaga para o meu filho! Não quero que ele pare de estudar e lá na outra escola, na Vila Jardim, descobriram que ele mora aqui na Bom Jesus. Não pode mais ir para lá!

 

O relato é de um pai desesperado que no começo do mês procurou a secretaria da Escola Estadual de Ensino Médio Antão de Faria, no Bairro Bom Jesus. O que poderia ser um caso especial, na volta às aulas em meio à disputa entre duas facções rivais na Capital, virou rotina.

 

O entorno no caminho da escola virou campo minado. Um tiroteio ou a percepção de que alguém saiu de um “território inimigo” pode ter consequências drásticas. E apavora pais como ele.

 

O filho está no sétimo ano do ensino fundamental. Nunca teve envolvimento com a criminalidade, mas tem a sua rotina transformada pelos confrontos que tiveram início justamente entre os dois bairros vizinhos. Uma situação que é repetida – em ainda maior volume – na Vila Cruzeiro, onde estão outros redutos dessa guerra.

 

– Relatos de tiroteios e dificuldades em cruzar territórios de grupos criminosos rivais não são novos.Mas a cada ano essa escala fica maior, e nós não temos nenhum argumento para evitar a debandada dos alunos. É uma questão de segurança – diz o diretor da Escola Estadual de Ensino Fundamental Professor Afonso Guerreiro Lima, Edgar Ferreira, que há mais de dez anos atua na comunidade.

 

Conflagrada

 

Na semana de volta às aulas, o Diário Gaúcho fez um levantamento em 28 escolas públicas nas três regiões conflagradas pela guerra desde o começo do ano – Vila Jardim, Bom Jesus e Cruzeiro, além dos bairros vizinhos – e constatou uma debandada de estudantes.

“Percebemos o aumento de transferências e saúdas das escolas, e a violência é, sem dúvida, um grande motivador para isso. O problema é real e temos uma batalha para mudar isso.”

– O problema (da violência) é real e temos uma batalha para mudar isso – afirma a professora e policial civil Luciane Manfro, que coordena desde o ano passado a Comissão Interna de Prevenção à Violência e Acidentes Escolares, da Secretaria da Educação.

 

O medo no ambiente escolar, há muito tempo, é concreto. Um dado apurado pelo Diário Gaúcho ajuda a dimensionar o tamanho do problema. A reportagem apurou que, desde o ano passado, pelo menos 15 jovens (estudantes ou ex-estudantes) dessas instituições foram assassinados. Não se sabe quantos tinham relação com o tráfico de drogas.

 

A ideia da comissão é mapear as mudanças que o tráfico impõe aos alunos. O passo adiante é desencadeado pela Brigada Militar. A estratégia do comando da corporação, neste início de ano letivo, é manter o efetivo reforçado, com a Operação Avante, nos bairros mais conflagrados da Capital.

 

– A presença do policiamento tende a tornar a situação das ruas, do ir e vir para as escolas, mais próximo do normal. São comunidades que já vivem um histórico social complicado, então, o que conseguiremos agora é fazer as coisas voltarem ao habitual sufocando o confronto entre facções – adianta o comandante do policiamento da Capital, tenente-coronel Mario Ikeda.

 

 

 

NO MEIO DO CAMINHO

HÁ UMA GUERRA

 

Na Vila Cruzeiro, uma avó foi cedo à Escola Afonso Guerreiro Lima na primeira semana de aula para fazer a transferência da neta, que deveria cursar ali o primeiro ano. É a escola mais próxima da sua casa. O problema é que no meio desse caminho há uma fronteira marcada pelo medo.

 

– Todos os dias é tiroteio, não dá para arriscar mais a minha família – conta a dona de casa, que acabou matriculando a menina fora do bairro.

 

É que a casa da família fica na Vila Pantanal, que tem criminosos aliados aos Bala na Cara. São rivais da quadrilha dos V7, que tem a Vila 27 como reduto. E a escola fica nos fundos do território deles.

 

Anos atrás, após ameaças, a dona de casa foi obrigada a retirar o filho da escola e levá-lo para o Interior. Voltou no ano passado. No começo do ano, o rapaz foi atingido de raspão por uma bala perdida.

 

– A nossa preocupação é que em muitos casos as famílias daqui estão saindo da cidade, não apenas trocando de escola. São relatos que aumentaram muito neste ano – conta o diretor da escola, Edgar Ferreira.

 

 Vila Cruzeiro13 mortos A escola inicia o ano com 350 alunos. São 100 a menos do que no ano passado. A causa, assegura o diretor, é a insegurança. Ele chegou a considerar a possibilidade de encerrar turmas do sétimo ao nono ano. Aconselhado pela Secretaria Estadual da Educação, resolveu reduzir essas turmas.

 

 

Félix Zucco

Félix Zucco

Félix Zucco

Félix Zucco

Félix Zucco

Félix Zucco

 

“COM O CORAÇÃO NA MÃO

 

Um furo de bala na placa de trânsito, que deveria marcar a travessia segura de estudantes em frente à Escola Erico Verissimo deixa claro a missão perigosa que virou chegar até ela. No pátio, logo no primeiro dia de aula, uma cápsula de pistola foi recolhida por uma criança.

 

Ali, todos conhecem a história dos mortos em um ataque contra uma roda de pagode em janeiro. Foi a uma quadra da escola.

– Eu faço questão de levar e buscar os meus filhos. Se dá um tiroteio, eles nem sabem para onde correr. Mantenho eles na escola com o coração na mão – diz  uma técnica de enfermagem de 49 anos.

Nem mesmo a van escolar representa alguma segurança. Um morador da Vila Jardim manteve a filha de oito anos em uma escola da Bom Jesus. Todos os dias a van a leva. O problema é o meio do caminho.

 

– Já tem algumas ruas em que a van não passa porque tem risco de tiroteio. Então, nós nunca sabemos o que pode acontecer no outro dia – desabafa o pai.

 

 Bairros Bom Jesus e Vila Jardim20 mortos Naquela região, enquanto as escolas Antão de Faria, Lea Rosa Cechini Brum e Coelho Neto aumentaram em torno de 80 o número de alunos em relação ao ano anterior, as escolas Ruben Berta, Marechal Mallet e Açorianos – próximas à Avenida Saturnino de Brito – calculam uma perda de pelo menos 70 estudantes em relação ao ano passado. A guerra de facções teve início com a rivalidade entre os bandos da Vila Jardim e da Bom Jesus.

 

 

 

TURMAS VAZIAS,

ROTINAS SOB RISCO

 

A professora Angélica Oliveira apresentou-se na Escola Estadual Erico Verissimo, na Vila Ipe 1, Bairro Jardim Carvalho, no começo do mês, como todos os colegas. Deveria assumir uma turma de terceiro ano do ensino fundamental, mas encontrou a sala de aula vazia. De uma mãe, ela ouviu a explicação: não tem como sair de casa com as crianças de manhã cedo. Elas temem a violência.

 

A escola tem 60 alunos a menos do que os cerca de 300 do ano passado. Além da turma do terceiro ano, outras duas de primeiro ano foram fechadas por falta de estudantes.

 

Nos últimos dias a situação piorou. Um assassinato e tiroteios forçaram o fechamento da escola três vezes em nove dias. A gota d’água foi reconhecida pela Secretaria Estadual da Educação que, em uma decisão inédita, decidiu reduzir os turnos da manhã e da tarde a duas horas de aula cada, das  9h45min às 11h45min de manhã, e das 13h15min às 15h15min à tarde. Por tempo indeterminado.

 

 

Até que se normalize

 

O prazo, conforme nota da escola no Facebook, é “até que a situação de violência se normalize no bairro”. Na manhã desta terça-feira, os moradores foram acordados com intenso tiroteio. A polícia esteve no local e encontrou mais de 30 cápsulas nas ruas da Vila Ipe 1.

 

À noite, a Brigada Militar prendeu quatro homens e apreendeu dois fuzis, uma submetralhadora, uma espingarda e um colete à prova de balas. As prisões foram na mesma rua da escola. Os homens estavam rondando a região.

 

O comandante do 20º Batalhão de Polícia Militar, Egon Kvietinski, disse que enviou diversas vezes uma viatura da Patrulha Escolar para a instituição nos últimos dias. Ele admite que tentou se reunir com a direção da escola e oferecer viaturas, mas não houve resposta. Planeja agora uma reunião com a Coordenadoria Regional de Educação com a escola e a Secretaria de Educação.

 

Proibidos de ir e vir

 

A estratégia de reduzir a carga horária foi adotada para evitar a exposição das crianças aos tiros e confrontos. No começo do ano letivo a maior parte da debandada  também foi imposta pela realidade territorial do crime.

 

Moradores da Vila Colina, no mesmo bairro, ficaram proibidos de chegar à escola na Rua Comendador Eduardo Secco. Na lógica do crime, a escola está na Vila Ipe 1, dentro de um território controlado pelos Anti-Bala. A Colina, por outro lado, é reduto dos Bala na Cara.

 

“Eu às vezes me atraso, mas foi o jeito de achar um pouco mais de segurança”E a consequência, uma empregada doméstica de 32 anos sente na pele. Obrigou-se a percorrer um trajeto três vezes maior para levar o filho, de 12 anos, todos os dias até o Instituto Estadual Gema Belia.

 

– Leva muito mais tempo, eu às vezes me atraso, mas foi o jeito de achar um pouco mais de segurança – conta ela.

 

A escola foi uma das que absorveu outras crianças da Vila Colina. A estimativa da direção é de que este ano foram recebidos cem alunos a mais do que no ano passado.

 

 

 

METADE DOS

ALUNOS FOI EMBORA

 

Até o ano passado, a direção da Escola Estadual Nações Unidas seguia um fluxo equilibrado de entradas e saídas de alunos a cada ano. Quando se deparou com os matriculados deste ano, levou um susto.

 

– Tínhamos 500 alunos. Este ano começamos com 250. Estamos tentando atrair os estudantes, mas foge da nossa alçada. Já tivemos tiroteio aqui perto em pleno meio-dia. É uma debandada porque não existe segurança para as crianças chegarem – conta a diretora, Deisi Miller.

 

Nos fundos da escola fica a região conhecida como Cantão, na  Cruzeiro. Criminosos dali vivem uma guerra marcada por intensos tiroteios e o uso de armamento pesado contra rivais da Vila Formiga. O problema é que o Cantão fica justamente no meio do caminho até a escola para os moradores da vila inimiga no mundo do tráfico.

 

 Bairros Bom Jesus e Vila Jardim20 mortos A constatação é de que a maior parte dos estudantes saiu do bairro ou foi matriculada em escolas fora da Vila Cruzeiro. Uma realidade que também mudou os planos de pelo menos duas famílias que matricularam as crianças de três e cinco anos na recém inaugurada Escola de Educação Infantil Vila Tronco, em frente ao Postão. Quando abriu a nova escolinha, os pais informaram a desistência das vagas. Motivo: sofreram ameaças do tráfico local. E as duas famílias foram embora da região.

 

 

 

VIOLÊNCIA REFLETE

NAS SALAS

 

Não é fácil para quem tenta trabalhar na prevenção à violência ser ouvido justamente nas comunidades mais problemáticas. Em abril do ano passado foi criada a Comissão Interna de Prevenção à Violência e Acidentes Escolares, e até agora não houve resultados concretos na Capital.

 

– Há muita resistência nas áreas conflagradas. As escolas, infelizmente, não tomam a frente para mudar a realidade ao seu redor. Em boa parte, por medo de represália mesmo – afirma Luciane Manfro, coordenadora da comissão.

 

Em alguns municípios, a comissão colocou em prática o seu principal projeto, que é a transformação do professor em um mediador de conflitos. E, a partir dele, multiplicar a iniciativa entre os estudantes.

 

Na prática, a própria comissão já constatou que a violência do entorno das escolas se reflete do lado de dentro dos muros. Dos relatos enumerados pelo grupo desde o ano passado, a metade aconteceu dentro das escolas.

 

Para o sociólogo Rodrigo de Azevedo, essa é a consequência previsível para o cenário criado nas comunidades conflagradas pelo tráfico de drogas.

 

– É uma geração que tende a entender que o que vale é a “lei do mais forte”, porque vivem em um ambiente entendido como terra sem lei. A educação pública é mais um serviço público com obstáculos para ser acessado. Com o estado de direito em xeque, resta a esses jovens se colocar em um grupo, em uma facção. O estrago no aprendizado é concreto – aponta.

 

Luciane Manfro contesta. Segundo ela, a migração forçada de estudantes não reflete em perda no aprendizado.

 

– O sistema de ensino é o mesmo em toda a rede. Os professores estão aptos a essa adaptação dos alunos, pelo menos no aspecto pedagógico – diz.

A professora admite, no entanto, que os danos psicológicos são reais.

 

– Há mudanças comportamentais. Seja na criação de um aluno introspectivo em excesso, ou na transformação em um aluno violento, que reflita o ambiente das ruas – explica.

 

 

 

Bairro Jardim Carvalho

7 mortos