a segunda-feira, Rosângela Koerich de Souza irá para seu escritório de advocacia, como faz todas as semanas. Mas não será um dia como outro qualquer para ela. Desde 1979, 30 de novembro tem um significado especial para a advogada trabalhista de 54 anos. Na manhã daquela data, a então aluna de Direito da UFSC foi à Praça XV protestar contra a ditadura militar diante do presidente da República, o general João Figueiredo. A manifestação em Florianópolis culminou em uma revolta popular que ficou conhecida como Novembrada e resultou na prisão de sete universitários, entre eles a advogada.

Solta no dia 12 de dezembro, Rosângela foi a julgamento com os colegas em 17 de fevereiro de 1980. O promotor pediu o enquadramento dela e de Lígia Giovanella na Lei de Segurança Nacional (LSN), acusadas de terem agredido verbalmente o presidente. Por três votos a dois, todos – as duas mais Marize Lippel, Geraldo Barbosa, Newton Vasconcelos Jr., Adolfo Luiz Dias e Amilton Alexandre, o Mosquito – foram absolvidos pela Justiça Militar em Curitiba. No mesmo ano, Rosângela se filiou ao nascente PT, partido no qual hoje integra a executiva municipal. Com a perspectiva de quem viu a sigla nascer, ela avalia o conturbado momento pelo qual passa o governo federal.

– A gente (petistas) não precisava estar passando por essas denúncias de corrupção. Acho que na educação também poderíamos ter avançado mais – critica, reticente.

N

Naquela sexta-feira em que se tornou procurada pela polícia, Rosângela já circulava cedinho pelas ruas do Centro ajudando a distribuir os 2 mil panfletos que atacavam as mordomias governamentais e exigiam melhores condições de vida. Apesar de o Diretório Central dos Estudantes (DCE) da UFSC ter convocado a população para o ato, ninguém – nem os órgãos de segurança muito menos os próprios organizadores – imaginaria tamanha adesão. O pai, dono de granja em São José, só pedia que caso acontecesse alguma coisa, a filha não dissesse que era comunista. Justamente como ela se definia.

– Eu era muito rebelde. Havia um curso anual oferecido pelo Congresso para alunos de Direito selecionados. O diretor do curso de Direito da UFSC, professor Lisboa, me inscreveu para ver se eu me “enquadrava”. Fomos de avião, ficamos em hotel cinco estrelas. Não adiantou nada! – diverte-se Rosângela, ao lembrar do início na militância.

Na projeção do governo, a mobilização não atrapalharia a festa preparada para receber Figueiredo, com outdoors, faixas, camisetas, bandeiras e até um balão com o slogan “João, o presidente da conciliação”. Era final de ano letivo e os no máximo 150 manifestantes esperados seriam abafados pelos servidores estaduais e alunos da rede pública de ensino, dispensados pelo governador Jorge Bornhausen para saudar a ilustre visita.

No livro Novembrada: Uma Revolta Popular, o jornalista Moacir Pereira lista algumas razões para que o pequeno grupo de insatisfeitos se transformasse em uma turba enfurecida: “(...) o descontentamento popular com o reajuste de 58% nos preços da gasolina; a declaração do presidente João Figueiredo de que era preferível o cheiro do cavalo ao cheiro do povo; a extinção do MDB e Arena colando uma pá de cal no bipartidarismo por imposição do regime militar; o contraste e as dificuldades da população com o aumento do custo de vida; as despesas exageradas com a ostensiva recepção à comitiva presidencial; a manipulação política produzida pela massiva campanha”.

À

s 10h, Figueiredo chegou ao palácio Cruz e Sousa com Bornhausen e comitiva. Os estudantes, concentrados em um dos cantos da praça, começaram a gritar “abaixo a fome”, “chega de sofrer, o povo quer comer”, “abaixo a exploração” e “abaixo Figueiredo, o povo não tem medo”. Dos alto-falantes instalados nas janelas do palácio, saía o Samba da Conciliação, jingle encomendado por 100 mil cruzeiros (equivalente a R$ 13,5 mil) ao maior nome da música catarinense, Luiz Henrique Rosa. A letra dizia que “o coração brasileiro não se cansa de ter sempre uma esperança para a vida melhorar”.

– Luiz Henrique era nosso amigo, inclusive o pai dele era padrasto do Adolfo. Estranhamos ele ter feito essa música, mas entendemos como contradições de um artista – diz Rosângela.

Irritado com as vaias, o presidente apareceu na sacada e, com a mão direita, gesticulou de uma forma entendida pela multidão como um insulto. A reação foi imediata e soterrou o protesto estudantil: “cavalo”, “fascista”, “filho da p*”, “um, dois, três, quatro, cinco mil, queremos que o Figueiredo vá pra p* que o pariu”. Indignado, o general desceu à praça e, escoltado por agentes de segurança, caminhou até o Ponto Chic, na esquina do calçadão da Felipe Schmidt com a Deodoro, onde tomou um café, ganhou o diploma de “Amigo do Senadinho” e voltou a ser ofendido.

O conflito se generalizou pelas ruas do Centro. Na praça, a massa ainda arrancou a placa em homenagem a Floriano Peixoto, doada por Figueiredo na semana anterior. A programação foi mantida e o presidente rumou para o almoxarifado da Celesc, em Palhoça, onde cerca de 3 mil pessoas o aguardavam para um churrasco com 3.200 quilos de carne. Em seguida, embarcou para Brasília. Para ele, a Novembrada estava terminada.

– À tarde, depois de nos reunirmos no DCE na rua Álvaro de Carvalho para avaliar a situação, fomos para o bar Roma (tradicional reduto da esquerda, na esquina da av. Hercílio Luz com a rua Fernando Machado) tomar cerveja. Aí chega o Nelson Wedekin (advogado, suplente de deputado estadual pelo MDB) dizendo que a polícia estava atrás da gente – conta Rosângela, que acabaria presa no domingo com Marize, Geraldo, Newton e Mosquito.

Formada em 1981, ela trabalhou como concursada no Tribunal de Justiça (TJ) até 1983, quando se mudou para Criciúma para atuar no sindicato dos mineiros e organizar a fundação da Central Única dos Trabalhadores (CUT) local. Retornou a Florianópolis em 1990 para montar o Sindicato dos Trabalhadores do Serviço Público Estadual de Santa Catarina (Sintespe). Atualmente, advoga para o sindicato dos servidores públicos de São José, sua cidade natal. É casada há 25 anos e não tem filhos.

– Sou militante até hoje. A luta pelo fim das injustiças continua.

Para Lígia Giovanella, o front de batalha é a saúde pública, área pela qual dedica a carreira. Aos 60 anos, ela é pesquisadora da Escola Nacional da área, instituição ligada à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro. Ingressou no PT carioca, mas não tem mais vínculo com nenhum partido.

– Tivemos avanços muito importantes no combate à pobreza e à miséria no governo Lula. O Brasil passa por uma situação econômica que também tem razões externas, mas já passamos por situações piores – opina Lígia.

 

 

E

Em 1979, Lígia era vice do presidente Adolfo Luiz Dias no diretório acadêmico da UFSC e monitora de saúde pública. Depois da Novembrada, os dois decidiram aguardar a poeira baixar na casa do irmão dela, o dentista Sérgio (militante do PCB, havia sido preso em 1975 pela Operação Barriga-Verde), em Blumenau. No sábado mesmo, foram para Rio do Sul, onde morava a mãe de Lígia, Josefina. Em Florianópolis, o então governador Bornhausen anunciava que os responsáveis pelo protesto seriam punidos. Às 7h de domingo, Marize Lippel telefonou para a casa de dona Josefina avisando que estava sendo presa.

Lígia e Adolfo fugiram para um camping em Ascurra. A próxima escala foi Lages, onde seriam abrigados pelo prefeito Dirceu Carneiro. Enquanto isso, o líder do MDB na Assembleia Legislativa, deputado Francisco Küster, negociava a rendição dos dois, ocorrida no dia 6 de dezembro. No dia 13, Lígia e Adolfo foram liberados. Dois dias depois, ela se formou em Medicina – era a oradora da turma.

– Estava tudo certo para eu ir trabalhar em um centro de saúde pública em Florianópolis. Como eu havia sido presa na Novembrada, fui proibida – diz.

Novamente Carneiro a socorreu, dessa vez com um emprego para implantar o projeto de saúde comunitária da prefeitura lageana. Em 1983, foi para o Rio de Janeiro fazer uma especialização e ficou por lá. Visita Santa Catarina três, quatro vezes por ano, para ver o irmão em Florianópolis e a irmã em Blumenau. Nas estadas na Ilha, nunca deixa de dar uma passada na Costa da Lagoa.

–  Fui construindo novos caminhos que me realizaram. Ser presa e processada é um negócio horrível, mas ter contribuído para a democracia, para a liberdade valeu completamente. Não tenho dúvida – assegura.

 

Outra dirigente do DCE, Marize Lippel também seguiu seu caminho na saúde. Em 1980, ela concluiu o curso de Farmácia e Bioquímica. Como sabia que a ordem do governador era para o Estado não contratar ninguém que havia participado da Novembrada, foi para Blumenau trabalhar no serviço municipal de saneamento. Só voltou a residir em Florianópolis em 2003, para atuar na Vigilância Sanitária. Aposentou-se em fevereiro, aos 56 anos. É viúva de Sérgio Giovanella (portanto, cunhada de Lígia) e tem duas filhas.

Sua militância vinha de berço: o pai, Arno Lippel, fora preso político em 1968. Na época dos protestos, Marize era ligada à juventude do MDB. Depois, foi para o PSDB.

– Não teve ruptura. As pessoas continuaram militando. Se você defende alguma causa, na vida profissional você continua de alguma forma, seja em sindicatos ou entidades de classe. Hoje não tenho partido, o que não quer dizer que eu seja contra Dilma – ressalta Marize, que faz parte do coletivo Memória, Verdade e Justiça “para que ninguém esqueça daquele período”.

Ela, com certeza, não esquece, principalmente do apoio da população. Segundo Marize, algumas pessoas recebiam os panfletos com cara feia. Após lerem o que os estudantes reivindicavam, ajudavam na panfletagem. Por isso, a despeito da prisão, das ameaças, das retaliações, guarda as melhores lembranças do momento em que o povo reagiu contra um governo que não o representava.

– Nossa preocupação era colocar as faixas na frente das pessoas, para ninguém ser machucado pela polícia. A responsabilidade pelos conflitos foi toda do governo. Como um gestor vai em uma sacada ironizar uma multidão e acha que ninguém vai reagir?


Às 5h do domingo seguinte ao protesto, Marize foi acordada em casa com a ligação do companheiro de diretoria do DCE Geraldo Barbosa informando que a polícia tinha ido lhe prender e que ela seria a próxima. Ele estudava Medicina, curso que foi trocado por Ciências Sociais após a Novembrada. É professor universitário.

– A maioria de nós era da ala à esquerda do PCB. Pensávamos que para a implantação do socialismo era necessário um grande acúmulo de forças, uma grande elevação do nível de consciência e organização do povo, e não acreditávamos que a burguesia brasileira, associada ao imperialismo, quisesse fazer a revolução.

O discurso de Geraldo deixa claro que se trata de um teórico revolucionário. O tema lhe é tão caro que, no apartamento em que vive rodeado por 10 mil livros com a família no Centro de Florianópolis, há uma parede só com títulos a respeito. Lê Marx em alemão, Lênin em russo – no alfabeto cirílico e tudo. Passada a Novembrada, continuou sua formação em São Paulo (mestrado) e no Rio (doutorado). Simpatizava com o PT por falta de opção.

– Nunca achei que o PT tivesse um projeto de transformação para o Brasil, ia ter que surgir outra coisa, como tem que surgir ainda hoje.

Votou em Brizola no primeiro turno em 1989 e em Lula no segundo. Mas se decepcionou com o PT, sobretudo com o partido no poder, embora reconheça alguns avanços sociais. Esperava mais reformas estruturais. Nas últimas três eleições, foi de PSOL. Aos 54 anos, mantém a esperança por uma sociedade mais justa e igualitária.

– Me considero um radical no sentido de pegar os problemas pela raiz. Sou um marxista muito mais sólido do que na juventude, porque estudei muito. Em dois séculos de história do socialismo, houve acertos e houve erros. Mas sou também mais maduro, observo a política com mais lucidez, mais discernimento – descreve-se o professor.

 

 

 

N

o dia 4 de dezembro de 1979, realizou-se um ato público em prol da libertação dos cinco estudantes da Novembrada – Lígia e Adolfo ainda não haviam se entregado – na mesma Praça XV. Pouco antes das 18h, cerca de oito mil pessoas reuniram-se em frente à Catedral. Na hora em que Francisco Kuster começou a discursar, conforme escreve Luiz Felipe Miguel no livro Revolta em Florianópolis – A Novembrada de 1979, “pelas ruas laterais chegaram dois contingentes de 21 soldados da PM. Pararam bem ao lado das escadarias da Matriz. Uma parte do público iniciou a debandada, enquanto líderes pediam ‘calma, calma’”.

Logo chegaram mais policiais que, armados de cassetetes e fuzis com baionetas, marcharam sobre a praça – e passaram sobre quem ficasse na frente deles. A cavalaria interveio. “Ado, ado, ado, soldado é explorado”, berravam os manifestantes.


– Para mim, ficou evidente que nós só fomos soltos devido à mobilização popular – reconhece Geraldo.

Em 1980, Adolfo Luiz Dias foi eleito presidente da União Catarinense dos Estudantes. Graduou-se em Direito em 1981. Era oficial de justiça do Tribunal Regional do Trabalho de Santa Catarina (TRT-SC). Morreu em 1999, aos 48 anos. Deixou dois filhos, Ramon e Diego. Mosquito suicidou-se em 2011, aos 52 anos. Newton Vasconcelos Jr. virou nutrologista e não fala sobre a Novembrada.

 – Eu entendo. Fiquei muito conhecida na época e não gostei de ser uma figura pública. Essa coisa de ser herói por alguns dias não é muito positiva, pode atrapalhar o foco – diz Lígia.

O presidente João Figueiredo ainda voltou a Santa Catarina em três ocasiões: na Festa da Maçã, em São Joaquim, na inauguração da usina termelétrica Jorge Lacerda, em Capivari de Baixo, e na campanha de Esperidião Amin ao governo estadual, em Florianópolis, em 1982. Em nenhuma das outras visitas a segurança se descuidou – e não houve novos incidentes.

– O protagonista da Novembrada foi o povo, não a gente – diz Marize.

 

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participaram da Novembrada no jogo abaixo

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(1948-1972)

 

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(1948-1973)

 

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