A cada hora, seis crianças são espancadas, queimadas, mutiladas no Brasil. Apesar de impressionante, a dureza da estatística não expressa a plenitude desse tipo de violência, com os efeitos físicos e psicológicos que cada menino ou menina vivencia. Cerca de 70% das situações envolvem laços familiares e ocorrem em residências, seja da vítima ou do agressor. NO ESPECIAL a seguir, além de números que expõem a dimensão desse problema também comum em Santa Catarina, mostramos casos em que os responsáveis foram condenados pela Justiça. Mas essa é uma parte pequena. A estimativa é que para cada episódio denunciado, 10 fiquem no anonimato

AZUL-CLARO

é a cor  adotada nas  fitas como símbolo de conscientização contra maus-tratos em crianças.

UM PROBLEMA

SEM TAMANHO

TEXTO | ÂNGELA BASTOS

ideia desta reportagem surgiu no finalzinho do ano passado. Percebi que a imprensa estava divulgando muitos casos de violência contra crianças. Decidi ir atrás de pessoas ligadas ao tema e buscar estatísticas. Com dados suficientes, procurei os editores para  conversar. Iniciei contando sobre as histórias que tinha levantado:

– Nem me conta isso, não consigo ouvir – disse um deles.

Compreendi que não significava um não à pauta. E sim a reação do pai de uma menina de quatro anos, assustado com o que eu contava e que, no imaginário, havia transferido à filha o relato sobre o bebê espancado por chorar à noite.

Procurei outro editor para conversar. Expliquei que optaria por casos transitados em julgados, que não daria nomes para evitar identificação e não emitiria juízo de valor. Aliás, um dado me chamava a atenção: várias mães envolvidas neste contexto de violência criam seus filhos longe dos pais biológicos, estando a maioria em lugar incerto. Como meu colega era da editoria de Arte, expliquei que não usaríamos fotografias. Mas que tinha cópia dos laudos que mostravam os ferimentos nas crianças.

–  Sinceramente, nem sei se consigo ver isso...

Isso me fez pensar. Talvez ao escrever a respeito de violência contra crianças o tema traga desconforto em parte dos meus leitores. Não que sejam indiferentes ou insensíveis. Mas, como diz a editora: “Estamos diante de um assunto indigesto”.

Concordo. É mesmo um soco no estômago olhar para essa realidade. Instigante também. Afinal, como dirá um dos especialistas entrevistados:

– A mesma sociedade que já conseguiu proibir os escravos de apanhar; que criou leis para defender as mulheres, que já não bate mais nos seus “loucos”, que possui instituições em defesa dos índios, que considera crime a tortura de prisioneiros e que luta contra maus-tratos em animais vai continuar achando normal e aceitável bater em crianças?

VULNERÁVEIS

 

ábado, quatro de junho de 2016. Quando hoje – Dia Mundial das Crianças Vítimas de Agressão – for ontem, cerca de 150 pequenos brasileiros terão sofrido alguma agressão física. A cada hora, seis vão ser espancados, queimados, mutilados.

Santa Catarina contribui para essa estatística dolorosa. No ano passado, 1.006 denúncias chegaram às regionais de polícia do Estado, quase três por dia. Outro sinalizador dessa situação perversa em território catarinense é o Disque 100, o serviço de atendimento telefônico sigiloso e gratuito da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, com sede em Brasília. Em 2015, 1.681 denúncias tiveram origem em Santa Catarina.  Um aumento de 19% em relação ao ano anterior.

Tão duro quanto as estatísticas – a estimativa policial é de que para cada caso denunciado 10 fiquem no anonimato – é saber que o espaço em que isso ocorre se dá exatamente onde as crianças deveriam se sentir mais protegidas: dentro de casa. Cerca de 70% das ocorrências no país são nas residências, seja da vítima ou do agressor.

Ainda que parte dessa realidade permaneça escondida em casa ou velada por supostos acidentes, os dados servem de alerta. Em Santa Catarina, no ano de 2014, foram 253 internações. Em 2015, um pouco mais, 291, sendo que 73 das vítimas tinham entre zero e nove anos.

Em alguns casos a crueldade é tanta que as crianças não resistem e morrem. É o que especialistas chamam de violência fatal. Isso aconteceu em 10 de abril com uma menina de três anos em Araquari, vítima de traumatismo craniano. A mãe e o companheiro foram indiciados pelo Ministério Público pelos crimes de tortura, seguido de morte e estupro de vulnerável.

O homem, por execução; a mulher, por omissão.

Em Florianópolis, a 6a Delegacia de Polícia de Proteção à Criança investiga duas mortes ocorridas também neste ano. Um caso é de um menino de três anos que teria caído de uma árvore. Há suspeitas de que tenha sido empurrado por um familiar adulto. A mesma equipe policial cuida de outro inquérito. Neste, o pai é  suspeito. Laudo pericial sugere que os coágulos na cabeça da criança sejam consequência da “síndrome do bebê chacoalhado”.

muitas vozes

Este especial descreve casos em que crianças foram vítimas de maus-tratos físicos. Você está convidado a conhecê-los, por meio de áudios, textos e vídeo. As frases em destaque fazem parte da narrativa completa que você acessa ao final da página

Trata-se de uma criança de apenas três anos, mas com boa fluência verbal. Notou-se que utilizava a palavra ‘castigo’ para se referir a algumas condutas do agressor, como quando fazia xixi na calça: nariz na parede, dormir em pé.

 

Relatório da psicóloga do serviço de atendimento com base no que disse  a menina

Sustinho sem graça

OUÇA AQUI

Agora vou morar sempre com a minha tia-madrinha. Lá tenho o meu quartinho, a minha caminha.
Não durmo mais no banheiro. Banheiro é só
pra fazer xixi e tomar banho

 

Relato do menino de cinco anos durante atendimento psicossocial

OUÇA AQUI

LEMBRANÇA AMARGA

Ele só dizia que a gente
incomodava muito.

 

Tenta explicar uma das crianças sobre os maus-tratos sofridos nos autos do processo

OUÇA AQUI

FIOS QUE QUEIMAM

Naquela madrugada, eu ouvi
a aflição da criança, que
dava gritos de desespero.

 

Relatou uma vizinha à polícia
sobre o sofrimento da menina

PRIMEIRAS E ÚLTIMAS PALAVRAS

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A morte vem te pegar.
E vem de roxo.

 

Menina de cinco anos repetiu

na delegacia a frase que ouvia do agressor

VIOLÊNCIA ENRAIZADA

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O QUE DIZEM OS ESPECIALISTAS

Quem apanhou tende a reproduzir o 'sistema educacional' que recebeu,
sem perceber os efeitos nocivos desta reprodução

 

Psicólogo
João David Cavallazzi Mendonça

Não se pode estabelecer uma relação direta quando se fala das consequências de experiências com relações violentas na infância

 

Psicólogo e professor universitário Paulo Sandrini

Não basta separar a criança da família e penalizar o agressor, que precisa de tratamento adequando, para que não volte a cometar o mesmo crime após cumprir as pena ou reclusão

 

Enfermeira e pesquisadora
Cristhiane Baccarat Godoy Martins

ASSISTA AO VÍDEO

AGRADECIMENTOs: CLÃ DE LIVRES ARTEIROS CIA ARTÍSTICA, UNI DUNI TÊ BRINQUEDOS EDUCATIVOS, COMPOSITORA DENISE DE CASTRO E PROFESSORA SASSÁ MORETTI

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