Onda dividida

com a chegada do frio – e das tainhas – surfistas e pescadores travam um embate nas praias do Litoral catarinense pela ocupação do mar

TEXTO | gabriela wolff

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raia Brava, domingo, 15 de maio, 9h. Um pequeno grupo de surfistas entra no mar próximo ao posto de salva-vidas. Alguns são novatos no esporte e estão tendo aulas com o professor Jorge Correa, o Dão, nativo da Lagoinha, no Norte da Ilha, praia vizinha à Brava. Cerca de 40 minutos depois, foram expulsos por pescadores que, com apitos, abanando camisas e gritando, exigiram que todos saíssem da água para não atrapalhar a pesca artesanal da tainha.

Segundo Dão, o pai de um aluno que observava a cena não gostou do jeito que os pescadores falaram com o filho. O presidente da Associação dos Surfistas da Praia Brava (ASPB), André Luiz Coelho, também estava na areia, e a confusão generalizada começou:

– Teve muito bate-boca, discussão, empurra-empurra. Não tinha nenhuma bandeira na hora. Mais gente tinha entrado na água, por isso entrei também. A gente estava na área liberada. O pai do aluno não gostou do jeito que eles falaram, já chegaram gritando, não sabem conversar.

Na discussão, o presidente da ASPB diz que foi agredido. No dia seguinte, segunda-feira, André foi até o rancho para tentar conversar com os pescadores. Ele conta que foi novamente agredido:

– Cheguei lá para tentar conversar e já fui destratado. Estou sendo ameaçado. Eles não querem acordo, querem a praia só para eles e deu. Registrei o boletim de ocorrência e estou preocupado com minha integridade.

Apesar disso, André diz que não quer briga e acredita ser possível uma solução pacífica.

Na versão dos pescadores, a situação foi um pouco diferente. De acordo com Nildo Vilmar dos Santos, 50 anos, patrão de rede (chefe do grupo de pesca) na praia Brava, existe um acordo verbal em que os pescadores colocam bandeiras vermelha e verde, autorizando ou não o esporte. Naquele dia, a bandeira estava vermelha. Eles pediram que os surfistas saíssem da água, mas dois se negaram. Por isso, os ânimos se exaltaram:

– Na hora, todo mundo ficou nervoso e acabou acontecendo a briga. Não tem como a gente pescar com eles na água. Perdemos um cardume de quase 3 toneladas pela demora deles em sair do mar.

Depois da confusão no domingo, o surfe-repórter Maurio Borges, especializado na cobertura do esporte em Santa Catarina, postou uma mensagem em sua página no Facebook relatando o ocorrido. Dezenas de surfistas comentaram criticando a violência e a proibição do esporte na praia Brava. Porém, uma mensagem em tom de ameaça dizia que já estava na hora de “ranchos de pescadores e canoas serem queimadas”.

A situação, que já estava tensa, piorou. Pescadores começaram a se mobilizar em grupos no WhatsApp para se defender e também registraram boletim de ocorrência por ameaça:

– Onde já se viu uma coisa dessas. A pesca da tainha é uma cultura do nosso povo, só aqui na praia Brava são 36 homens que estão na atividade. Chegamos todo dia às cinco horas da manhã e ficamos até de noite no trabalho duro – disse Nildo.

Entre quilhas e tarrafas

Além de Florianópolis, outras praias de Santa Catarina têm regras definidas
para o surfe e a pesca no inverno

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disputa entre pescadores e surfistas na praia Brava não é novidade. Localizada no extremo norte da Ilha de Santa Catarina, a praia com 1,5 quilômetros de extensão, separada por dois costões, tem mar aberto, o que propicia um ambiente ideal para o surfe e para a pesca. Mas se é no frio que as tainhas chegam, também é no outono-inverno que se formam as melhores ondas, influenciadas pelas ondulações do quadrante sul.

Na época da pesca artesanal da tainha, do lado direito, na Ponta da Feiticeira, se posicionam dois olheiros. No outro oposto do costão, na Ponta da Bota, que separa a praia da Lagoinha, mais dois vigias ficam o dia todo com os olhos no mar. Eles procuram a chegada de um cardume de tainha.

O rancho dos pescadores fica no lado direito, e as canoas com as redes posicionadas na beira do mar, prontas para entrar em ação. Quando os vigias veem o brilho platinado na água, sabem que um cardume de tainha está passando e, por rádio, avisam os camaradas que estão na praia. É aí que começa a correria. São poucos minutos para colocar a canoa na água. Seis homens começam a remar com destreza para não deixar o cardume escapar.

Como a praia não é muito extensa, os pescadores conseguem chegar com rapidez de uma ponta a outra para cercar os peixes, com mais chances de sucesso. Por esse motivo, Nildo diz que não é possível dividir o mar com o surfista:

– Na hora que a prancha bate na água, o cardume se espalha e não conseguimos mais cercar. É tudo muito rápido.

Apesar de não existir nenhum estudo científico comprovando a tese, o presidente da Federação dos Pescadores Artesanais de SC, Ivo Silva, diz que a experiência comprova.

– Não precisa ser nenhum técnico para saber isso.

O cardume de peixe que é capturado na praia, com canoa a remo, sem nenhum motor, precisa estar unido para ser pego pela rede. Quando o surfista passa em cima do peixe, ele se espanta – explica Silva.

Em junho de 2014, a Brava também foi palco de outro conflito entre surfistas e pescadores. Até então, a praia estava sob a lei municipal no 4.601/95, que proibia o surfe em Florianópolis na época da tainha, com exceção das praias Mole e Joaquina. O sistema de bandeiras era o adotado.

O surfista Leandro Bernardo, 33 anos, conta que estava no mar por volta do meio-dia quando os pescadores pediram para que saísse da água.

– Eu saí na hora que pediram, mas quando cheguei na areia, eles pegaram minha prancha e falaram que só iriam devolver depois da safra. Eu mantive a calma e não teve agressão, mas tive que pagar advogado e entrar na Justiça para recuperar minha prancha. Para mim, essa lei é inconstitucional. Tenho o direito de praticar o esporte, ir e vir – comenta.

Em outras praias de Florianópolis e do litoral de Santa Catarina, também são inúmeros os casos de brigas entre surfistas e pescadores desde que o surfe chegou ao Estado, nas décadas de 1970 e 1980.

No documentário A Tainha e a Onda, lançado em novembro de 2015, o diretor Carlos Portella Nunes ouviu as primeiras gerações de surfistas na cidade. Eles contaram episódios de muita violência naquele tempo.

– Eu estava de férias da faculdade, a gente foi para praia. Fomos na Joaquina, nada. Fomos na Mole, nada, e alguém falou para irmos na Galheta. Estávamos entrando na água, quando a gente escutou um barulho. Parecia uma tribo de índios vindo de dentro do mato. Eles vieram para cima com muita violência, e a gente nem sabia o que era. Foi muita violência. Me machuquei todo. A minha prancha foi todinha furada com faca. Eles batiam com chicote, tipo umas varas, machucaram meu braço todo. O braço direito até quebrou – relatou o engenheiro Edson Teixeira em depoimento ao documentário.

O veterano Maurio Borges recorda que sempre existiram conflitos, mas antigamente havia muito mais pescadores do que surfistas:

– Por volta de 1985, com o (campeonato) OP-PRO e depois o Hang Loose, a imagem de Florianópolis como capital do surfe foi projetada para o Brasil. Com isso, novas gerações foram se formando.

Borges lembra que com a criação da lei municipal, a situação se acalmou um pouco, embora todo mundo tenha ficado muito descontente, porque não tinha acordo para o surfe.

As praias do Silveira, em Garopaba, do Rosa, em Imbituba, e Bombinhas também já foram zonas de conflito nos últimos anos. Mas, segundo a Federação Catarinense de Surfe (Fecasurf) e a Federação de Pescadores Artesanais de Santa Catarina (Fepesc), as partes entraram em consenso e não houve mais grandes confusões, somente casos isolados.

"A pesca da tainha é cultura do nosso povo. na praia Brava são 36 homens na atividade. todo dia chegamos às 5h e ficamos até A noite no trabalho duro"

 

nildo vilmar dos santos,

Patrão de rede da praia Brava

"Eles vieram para cima com muita violência, e a gente nem sabia o que era. Me machuquei todo. A minha prancha foi todinha furada com faca"

 

edson teixeira,

Surfista

c

om o aumento do número de surfistas e moradores na Ilha, em 1995, a Câmara dos Vereadores criou uma lei para regulamentar a atividade náutica de lazer nos balneários de Florianópolis. Em seu artigo 5o, a lei determinava que ficava proibida a prática de surfe em todas as praias no período da pesca da tainha, de 1o de maio a 15 de julho, com exceção da Joaquina e praia Mole. Em casos de agressão ou proibição por pescadores e surfistas, haveria apreensão dos instrumentos de pesca, só restituídos depois de 15 de julho. A lei ainda destacava que as suas disposições não impediam a realização de acordos entre associações de surfe e de pescadores nas demais praias.

Em 2002, foi assinado um acordo entre a Fecasurf e Fepesc, e o sistema de bandeiras chegou a funcionar por algum tempo em praias da Capital, mas com o passar dos anos novas confusões começaram a acontecer com o desrespeito de ambas as partes. Na praia Brava existia um acordo verbal: em dia de mar bravo, quando as canoas não conseguem passar a rebentação, a praia fica liberada para a prática esportiva.

Em uma coisa os surfistas e pescadores da praia Brava concordam: o acordo não está sendo cumprido. De um lado, surfistas reclamam que os pescadores dificilmente colocam a bandeira verde liberando o mar, mesmo com ondas grandes; do outro, pescadores dizem que os surfistas não respeitam a bandeira vermelha e estão entrando na água. A informação é contestada pelo patrão Nildo Vilmar dos Santos.

– Teve uma semana que liberamos dois dias, daí chega o terceiro eles já não querem mais sair – falou.

Pressionados por surfistas, em meio a protestos e discussões calorosas na Câmara, os vereadores de Florianópolis aprovaram em outubro de 2015 o projeto de lei 15.620/2013, do vereador Marcos Aurélio Espíndola, o Badeko, que alterava a lei 4.601/95.

Com a mudança na lei, o surfe passou a ser permitido parcialmente em mais seis praias no período da tainha, além da Joaquina e Mole. Lagoinha do Leste, Matadeiro,  Armação, Morro das Pedras, Moçambique e o canto esquerdo da praia Brava passaram a ser áreas compartilhadas.

Durante a sessão, o presidente da Associação de Pescadores das Praias de Ponta das Canas, Lagoinha (Norte) e Brava, Valdori Almeida, 51 anos, o Baga, se manifestou contrário ao projeto:

– Durante uma audiência pública em dezembro de 2014 comunicamos a posição contrária dos pescadores da Praia Brava. Na época, foi prometido que a nossa praia seria retirada do projeto, porque quando o mar estiver revolto e não tiver condição de pescar iremos liberar para os surfistas – falou na época, prevendo que poderiam ter problemas no local.

O ano de 2015 terminou sem a exclusão da praia Brava do projeto de lei e somente em fevereiro de deste ano o assunto voltou à tona na Câmara de Florianópolis, com a proposta de lei complementar do vereador Vanderlei Farias, o Lela, excluindo novamente a praia Brava e também Morro das Pedras dos locais permitidos para a prática de surfe.

Terça-feira, 17 de maio. Câmara dos Vereadores de Florianópolis. Um dia após o confronto na praia Brava, o vereador Roberto Katumi pede que a matéria seja votada naquela sessão, em caráter de urgência urgentíssima. Na tribuna, o vereador declarou:

– Vamos ser os principais responsáveis se acontecer uma tragédia.

Apesar do apelo, o vereador Pedro Assis Valente, o Pedrão, pediu vista para estudar melhor o assunto e a votação ficou para a semana seguinte.

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egunda-feira, 24 de maio, 16h. No horário marcado para o início da sessão na Câmara dos Vereadores de Florianópolis, o espaço reservado para os visitantes estava cheio. Na parte de baixo, pescadores ocupavam as cadeiras pedindo que a lei fosse alterada. No andar de cima, surfistas argumentavam que a lei é inconstitucional, pois não cabe ao município legislar sobre o mar.

Minutos antes do início, alguns vereadores ainda tentaram convencer os pescadores nos bastidores a adiar a votação para tentar uma mediação entre os dois lados. O patrão de rede da praia Brava, Marcelo Francisco dos Santos, falou em tom alto e claro para eles:

– Vocês votaram um projeto aqui dentro que faz com que os surfistas possam entrar no mar para pegar onda. Todos vocês assinaram um projeto. Agora vocês querem se excluir de um problema que vocês criaram. Eu quero sair daqui com esse projeto votado, com o problema resolvido. Não quero mais adiar, a pesca da tainha tá lá na praia. Antes sempre teve consenso entre os pescadores de colocar a bandeira, vocês que mudaram isso.

Com a votação da lei mantida, a expectativa da Fepesc era de que fosse aprovada:

– Já conversei com alguns vereadores, parece que eles estão entendo a situação. Ninguém quer atrito, mas tem que entender que Florianópolis é uma das ilhas mais respeitadas do Brasil, aqui é o único Estado do Brasil que tem esse tipo de pesca. A reivindicação da federação é que a sinalização seja através de bandeiras. Bandeira vermelha para a pesca, verde pode o surfe. É usar o bom senso, pois o pescador precisa somente desses dois meses para fazer a pesca. Depois disso não tem mais peixe, e os surfistas podem surfar tranquilamente. A bandeira vai funcionar, já conversei com os pescadores, todo mundo vai respeitar – disse o presidente Ivo Silva.

Em tom conciliador, o presidente da Fecasurf, Reiginaldo Ferreira, disse que acreditava ser possível a harmonia entre todos:

– A posição da Fecasurf é de um entendimento entre os pescadores e os surfistas, que estamos tentando há anos. Querem mudar a lei que é uma conquista que tivemos, por um caso isolado na praia Brava. Eu acredito que cada presidente de associação deve ter um entendimento com seus pescadores, conversar no rancho das suas praias, porque já existe esse entendimento na maioria das praias. Fizemos esse sistema de bandeiras há muito tempo, funcionou. Surfe é um esporte que cresceu muito, é um esporte em desenvolvimento, que gera emprego, trabalho – explicou.

Após o discurso de alguns vereadores, foi feita uma pausa na sessão antes do início da votação. Na mesa principal, foram chamados os representantes das federações e o secretário municipal da pesca, Willian Costa Nunes. O vereador Pedrão apresentou algumas emendas para a lei e após muita conversa, houve um consenso entre as partes.

A votação foi unânime. Dos 19 vereadores presentes, todos concordaram em retirar a Brava e o Morro das Pedras entre as áreas com permissão parcial para o surfe e adotar o sistema de bandeiras, com a diferença que antes cabia somente aos pescadores de cada praia decidir quando a bandeira verde seria hasteada. Com a nova redação da lei, passa a ser uma decisão conjunta, entre um representante da Fecasurf, um da Fepesc e um da Secretaria Municipal da Pesca por meio de reuniões nos ranchos de pesca locais.

A data da proibição também foi alterada e passou de 1o maio a 10 julho. No texto anterior, a data se estendia até 30 de julho. Da lei de 1995, foi suprimido o item que previa a pena de apreensão de itens de pesca no caso de violência, para dar um tratamento igualitário, já que não estava previsto o confisco de equipamentos de surfe.

A Lei no 10.020/16 foi sancionada na quarta-feira pelo prefeito Cesar Souza Junior. No rancho dos pescadores da praia Brava ele comentou o aumento da limitação da prática do surfe:

– Quando tem conflito, é preciso uma lei que seja dura para disciplinar as duas atividades, privilegiando os pescadores, a pesca artesanal de Florianópolis, que é forte, principalmente a pesca da tainha.

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e o sistema de bandeiras realmente irá funcionar, só o tempo vai dizer. Mas ao final da votação, as duas classes sinalizaram satisfação parcial.

– Não estamos totalmente satisfeitos, mas tivemos um ganho, porque antes queriam deixar proibido até 30 de julho. O que mais nos deixou contentes foi a volta do sistema de bandeira, pois agora vai haver o respeito. O surfista vai ter a oportunidade de entrar no mar nos dias em que antes ninguém surfava ou pescava. Acredito que vai funcionar, porque é a vontade de todos que tenha harmonia – declarou Reiginaldo Ferreira.

Na visão do representante dos pescadores, o importante agora é a conscientização.

– Não foi aquilo que a gente queria, mas foi o que deu de acordar e ficou bom para os dois lados. Vamos agora fazer um trabalho de divulgação, para que nem os pescadores nem os surfistas possam dizer que não conhecem a lei – declarou o Ivo Silva, da Fepesc.

Nildo, o patrão da praia Brava, palco da polêmica deste ano, também acredita que foi a melhor solução.

– Agora vamos poder trabalhar tranquilos. Nunca tivemos a intenção de deixar a praia fechada. Com a conversa vamos nos entender. Este ano a safra está muito boa, mas não é um trabalho só de agora, a preparação é o ano todo – afirma.

Depois de ter passado três anos imerso no assunto, ter ouvido os dois lados, além de partes neutras, o diretor do documentário A Tainha e a Onda, Carlos Portella, que também é surfista, acredita que possa existir a convivência pacífica.

– Pena que temos radicais intransigentes dos dois lados. Existem pessoas em uma busca real pela harmonia, mas as laranjas podres estragam tudo. A convivência pacífica é possível mesmo considerando que atrapalha a pesca. Basta liberar nos dias que tem onda de verdade. Ser radical não leva a nada.

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