e as mãos guardam a linha da vida, nas palmas de Adelina, Nilda e Octávio o traçado parece não encontrar fim. Com mais de 100 anos, acumulam marcas e histórias. Se antes tramavam rendas de bilro, agora estão cobertos de rugas. As que agilmente despachavam documentos, completam o caça-palavras. Aquelas que entalhavam madeira, empurram a cadeira de rodas. Contrariam as estatísticas, são sobreviventes. Reclamam por envelhecer, mas esperam que essa linha continue se alongando.

Os centenários ainda são raros no Estado – no levantamento mais recente feito pelo IBGE, eram 405 –, mas a tendência é isso mudar nos próximos anos. Eles fazem parte da faixa etária que mais cresceu em Santa Catarina entre 2000 e 2017. No início do milênio, eram 5,2 mil pessoas acima de 90 anos. Neste ano, o número quadruplicou – o que representa o maior avanço do país no período.

Diante dos desafios de pensar em políticas públicas para esse grupo em ascensão, o Laboratório de Gerontologia da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) iniciou um estudo para mapear como vivem os centenários catarinenses. O levantamento na Grande Florianópolis, primeira etapa do projeto que será ampliado para todo Estado, foi concluído em 2017, depois de dois anos de pesquisa. Foram entrevistados 58 idosos na região e alguns dados importantes já despontaram: 70% são mulheres, o que, segundo os pesquisadores, pode estar relacionado ao maior cuidado com a saúde, e 39,6% nunca estudaram. Apenas 15,5% são totalmente independentes e 96,5% têm cuidador, geralmente netos ou sobrinhos. A coordenadora da pesquisa, Giovana Zarpellon Mazo, defende que a capacitação dos cuidadores é um dos desafios apresentados pelo levantamento:

– Devemos dar voz ao idoso, informar sobre como prestar melhores cuidados, ter mais atenção afetiva. A família tem que estar preparada, mas deve manter a autonomia e a independência.

A doença mais incidente é a incontinência urinária (43,9%), seguida pela hipertensão arterial (36,8%). A pesquisadora Inês Amanda Streit destaca que são poucos registros de doenças como artrose e diabetes, também comuns na velhice e que, em geral, eles quase não precisam de remédios. Apesar disso, a maioria dos centenários (77,4%) apresenta algum comprometimento cognitivo, mesmo sem diagnóstico. O gerontólogo Alexandre Kalache, que foi diretor do Programa Global de Envelhecimento e Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS), reforça que, acima dos 85 anos, 40% das pessoas têm alguma forma de degeneração cognitiva e essa proporção aumenta nos anos seguintes:

– É o preço que se paga pela longevidade. O risco de você vir a ser dependente, sobretudo pelas doenças degenerativas, é muito grande.

A professora da Unicamp Anita Liberalesso Neri, autora de pelo menos 20 livros sobre envelhecimento, acredita que as pessoas ainda enxergam a velhice com preconceito e não sabem lidar com as mudanças que anunciam o declínio:

– A gente não vê a velhice como algo natural, porque no final dela existe a morte e o ser humano lida mal com a ideia da mortalidade.

Anita acredita que o processo é longo para mudar o prisma pelo qual as pessoas enxergam a velhice e passa pela conquista de qualidade de vida nesta fase. Genética à parte, uma longevidade saudável está relacionada principalmente aos hábitos adotados ao longo da vida. Uma boa alimentação e exercícios físicos, por exemplo, podem garantir anos ativos na velhice. Kalache defende que o primeiro passo é planejar a trajetória como se estivesse em uma maratona e não em uma corrida de 100 metros como antigamente, quando se vivia menos. Para perseguir a longevidade, o gerontólogo defende que é preciso ter alicerces bem estruturados na saúde, em conhecimento, no convívio social e em recursos financeiros. Além disso, a resiliência aparece como uma característica comum aos centenários.

– É dificílimo alguém ter chegado aos 90 anos sem ter experimentado perdas. Resiliência é a palavra-chave, porque pancadas, perdas de status, afetivas, financeiras, fazem parte e é fundamental ter as bases para continuar a vida com qualidade.

Kalache faz a comparação com uma flor de plástico: pode ser esmagada com toda força, mas se recupera e volta à forma original. Talvez com mais rugas e dores, mas ainda capaz de florir.

TEXTO | karine wenzel

imagens | marco favero

ultrapassar a barreira dos 100 anos é uma realidade crescente em Santa Catarina, onde a população acima de 90 anos quadruplicou entre 2000 e 2017 – o maior avanço do país de acordo com o IBGE

om ritmo acima da média geral, o crescimento da população acima dos 90 anos em Santa Catarina e no Brasil reforça a necessidade de uma sociedade e famílias mais preparadas para a velhice. Para se ter uma ideia, a estimativa é de que o número de centenários deve crescer 10 vezes no mundo, de cerca de 300 mil em 2011 para 3,2 milhões até 2050. O médico Alexandre Kalache, presidente do Centro Internacional de Longevidade Brasil, reforça que esse aumento é um fenômento mundial:

– Isso, por um lado, é motivo de celebração e, por outro, tem implicações bem importantes para a projeção e planejamento de serviços e para a sociedade como um todo. Como dar suporte para um grupo da população com necessidades que são obviamente maiores do que entre aqueles que tem 60, 70 anos?

O especialista explica que o desafio é que o Brasil começou a envelhecer antes de enriquecer, ao contrário de outros países desenvolvidos, que foram envelhecendo gradualmente. Diante desse cenário, uma das maiores dificuldades é o cuidado dos idosos. Kalache lembra que antigamente era comum os avós não ultrapassarem os 60 anos. Além disso, as mulheres estavam mais disponíveis para serem cuidadoras, porque nem todas atuavam no mercado de trabalho.

– É uma demanda muito grande, as famílias não estão preparadas.

A professora da Udesc Giovana Mazo defende que, com famílias menores, a recomendação é que se amplie a rede externa de apoio a esse idoso, com grupos de convivência, por exemplo. Além de ser necessário aumentar o número de instituições de longa permanência e centros com desenvolvimento de atividades e cuidados durante o dia. A educadora física Inês Amanda Streit acrescenta que o fundamental é encontrar o equilíbrio, porque o cuidado excessivo também pode fazer com que o idoso fique mais acomodado e menos independente:

– A qualidade dessa rede é o que importa, às vezes ela é menor, mas tem a questão da afetividade, que é o que o ajuda a viver mais feliz.

A professora do Programa de Pós-Graduação em Gerontologia da Unicamp Anita Liberalesso Neri, no entanto, acredita que o período mais crítico deve vir daqui a alguns anos, quando a geração que teve menos filhos ou que nem se casou estará na velhice. Nestes casos, a sociedade terá de estar preparada para atender a essas necessidades, com serviços de habitação, transporte e bem-estar.

– Houve expansão real da expectativa de vida, mas ainda falta alcançar a condição da boa longevidade para a grande maioria. Esse é o maior desafio desse processo de envelhecimento – afirma Anita.

A pesquisadora reforça que a tendência é de que a população seja atingida por doenças associadas ao envelhecimento, como diabetes, hipertensão e artrite mais tarde. Isso adia a incapacidade e torna as pessoas mais longevas.

– Não adianta viver 80, 90, 100 anos com má qualidade de vida. Esses centenários são um milagre, são os sobreviventes de uma boa genética, de bons hábitos. Só informação não é suficiente para chegar aos 100. As pessoas precisam ter condições reais de acesso à nutrição de qualidade, acompanhamento médico e reabilitação.

s outros dizem “eu não vou em tal lugar porque é longe” aí penso “eu vou, gosto de ir”.

Assim, Adelina do Nascimento continua indo. Para todo lado. Atravessa Florianópolis de ônibus, mas às vezes, quando ele não aparece, ela vai a pé. Um dia desses não queria esperar. De chinelos de dedo e passinhos apressados, a senhora miúda saiu de casa no bairro Carianos para visitar uma irmã no Pantanal. Os seis quilômetros, com algumas subidas íngremes, não foram obstáculo para a manezinha de 101 anos.

As caminhadas fazem parte da rotina. Prova disso é que em uma pesquisa feita pela Udesc, ela somou 8 mil passos por dia – média considerada alta até para um adulto, dizem os pesquisadores. Andar de um lado para o outro já lhe rendeu alguns tombos, mas orgulha-se de nunca ter quebrado nenhum osso sequer.

Fica ainda mais difícil acreditar na idade avançada quando se conhece a rotina dela. Levanta às 5h, prepara o café e “procura o que fazer”. Lava e passa roupa, limpa o banheiro ou visita alguma das irmãs. Uma vez por semana ajuda a neta Maria Alayde, 61 anos, com quem mora, na feirinha da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Na barraquinha de venda de salgados e sucos naturais, ela ajuda a descascar laranjas. Em poucos minutos, as mãos ágeis enchem uma bacia com as frutas.

Adelina não dá folga para o cabelos brancos, admite que não sabe ficar parada. É acostumada ao trabalho duro desde nova, quando ajudava a família na Costa da Lagoa, lugar onde nasceu e que chama de roça. Filha de pescador, era com a renda de bilro que ajudava nas contas da casa. Depois lavou roupa para fora. Também trabalhou como empregada doméstica por muito tempo. Só na casa de Fúlvio Aducci, que foi prefeito de Florianópolis, governador de Santa Catarina e morreu em 1955, foram 18 anos. Nem lembra quando parou de trabalhar porque diz que “idade a gente não está contando”. Mas as lembranças denunciam o quanto já viveu. Quando jovem, já caminhava bastante. Naquela época, atravessava a ponte Hercílio Luz, ainda em construção.

Apesar de ter uma cirurgia marcada de catarata, usa apenas óculos para ler e escuta muito bem. Só toma um remédio por dia, o de pressão alta. Faz questão de controlar pessoalmente os horários dos comprimidos.

– Envelhecendo eu estou. Tenho cabelo branco. Também era mais gorda, mais forte, tinha outra aparência, de gente moça. Quando era mais jovem era melhor, não tinha cansaço para nada.

Apesar da idade, não parece estar cansada. Com frequência a pele negra marcada por rugas se rompe em uma gargalhada. Diz que tudo que quiser fazer, ela faz. Só tem uma coisa que tinha vontade e não conseguiu: ir à faculdade. A centenária, que estudou só até a quarta série, queria frequentar as aulas para “conhecer a melhor parte da vida”.

Além da saúde, a idade traz outros fardos, como perder gente querida. Adelina lembra com tristeza da morte da irmã e quando perdeu o neto em um acidente de carro. Mas nem por isso se deixa abater. Em meio a gargalhadas, diz que valeu a pena chegar até aqui:

– Mesmo pobre, trabalhando, passando sacrifício, valeu. Tudo o que eu vi está bom, mas se vier coisa pior, não quero ver – brinca.

Tanta disposição e a memória em dia tornam Adelina um exemplo fora da curva. Ela sabe disso. Mas não consegue dizer o que fez para envelhecer tão bem. Apenas que foi a primeira da família a chegar tão longe. Diz que come de tudo, “menos pedra”. Gosta muito de Coca-Cola e toma uma cervejinha nas festas da família – são dois filhos, quatro netos, nove bisnetos e quatro tataranetos. À noite, não dispensa um hambúrguer.

– Tudo são alegrias, a tristeza a gente bota fora. Não tenho medo da morte, tenho medo de morrer e deixar quem eu gosto. A gente nasceu foi para morrer. Com tanta gente no mundo, se ninguém morrer, vai ficar como?

Um em cima do outro?

E mais uma vez, Adelina solta uma de suas gargalhadas.

“Ô Laura,

Como é linda a vida!

Ô Laura,

Como é grande o amor!”

 

ançada em 1957 por Braguinha e Alcyr Pires Vermelho, a música Laura é uma das paixões de Octávio Francisco Pereira. Emociona-se quando a filha Marlene coloca a canção para tocar. Mas faz questão de dizer que o sentimento é apenas pela música. O nome da paixão de sua vida foi na verdade Maria, com quem esteve casado 67 anos. A esposa morreu em 2003, mas Octávio desvia do assunto. Depois de tanto tempo, ainda não gosta de falar sobre isso. O nordestino de 106 anos prefere lembrar o tempo na marcenaria. A memória leva Octávio com frequência para Pernambuco, onde nasceu e viveu as primeiras quatro décadas. Lá aprendeu sozinho o ofício e orgulha-se dos trabalhos feitos a mão.

— Comecei marceneiro, aprendi muito. Não tinha máquina naquela época, fazia tudo na mão. Não tinha um que me derrubasse.

É difícil mesmo derrubar Octávio. Desde 2015, ele precisou de cadeira de rodas, quando as pernas começaram a falhar. A visão se foi há duas décadas, vítima de uma doença autoimune que causa inflamação nos olhos. Quando morava com a filha Marlene, 68 anos, o passatempo era escutar rádio. Passava grudado com o aparelho e compartilhava as notícias que ouvia com a família. Hoje já não escuta tão bem e o radinho ficou de canto. Em 2012, foi diagnosticado com aneurisma da aorta abdominal, “mas nada que incomode”. Apesar de tantos percalços, a saúde continua em ordem. Por dia, toma apenas sulfato ferroso, para tratar da anemia. Ele também não dispensa um cafezinho preto no meio da tarde.

No caso de Octávio, a longevidade é coisa de família. Ele não é o primeiro a alcançar a marca dos três dígitos. A avó e o irmão mais velho também chegaram ao centenário, mas dessa idade não passaram:

– Nem eu sabia o que era ter um século. O segredo é ser constante, não fazer o que os outros fazem. Eu não fumava, nem bebia e continuei trabalhando. É difícil e não é, não pode se comparar com outros que já passaram por nada. Depois de ter um século, é difícil manter, não pode abusar de nada.

E ele não abusa. Fala pausadamente e com sotaque ainda carregado de Pernambuco. Veio com a filha para Palhoça há poucos anos para ter uma velhice mais tranquila. Depois de um tempo, Marlene se viu sobrecarregada e doente e teve de procurar um lugar para que cuidassem do pai.

Desde maio, uma construção azul claro em meio à vegetação, com uma ampla varanda, é a nova morada de Octávio, em Santo Amaro da Imperatriz. Pelo menos duas vezes por semana familiares visitam o centenário. São cinco filhos, 11 netos e 10 bisnetos.

Sentado em sua poltrona cativa com a boina, ele logo reconhece pela voz quem o visita. Embore goste de ficar na instituição, reclama de envelhecer:

– Como pode ser bom perder as pernas, não conseguir mais fazer o que fazia antes? – questiona.

Ainda assim diz que não tem medo de “morte morrida, só da matada”. Ao fazer as contas, planeja anos a mais:

– Fiz um balanço comigo e cheguei à conclusão que estaria satisfeito com 110 anos. Ficar velho é difícil, mas é impressionante.

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ntre 18 irmãos, Nilda Ulysséa Mattos era a mais doente. Não sabiam o que ela tinha, mas era muito frágil. Quando nasceu, a expectativa de vida era de cerca de 35 anos. Hoje, ela ri ao se dar conta que foi a única da família numerosa a viver um século. Além da catarinense, apenas um irmão, 13 anos mais novo, ainda está vivo. Prestes a completar 101 em outubro, Nilda diz que não sabe o que é envelhecer, porque ainda não chegou lá. Considera-se uma menina.

Mas a menina, aos poucos, sente o peso da idade avançada. Ela mora no décimo andar de um prédio no Centro da Capital e quase não sai de casa. No centenário, chegou a dançar uma valsa com o professor de ginástica, coreografia que passou meses ensaiando. Agora, precisa de ajuda para levantar e caminhar. Como mora apenas com a filha Nícia, 73 anos, e precisa de apoio extra, a solução foi contratar cuidadoras para ajudá-la à noite e nos fins de semana.

No entanto, a senhora franzina mantém algumas atividades. As aulas de ginástica são sagradas. Duas vezes por semana tem aulas com um instrutor em casa. Pedala, alonga-se
e recebe massagem. Vaidosa, passa creme todos os dias. Recentemente cortou o cabelo branco bem curtinho, porque “sempre quis tê-lo assim”. Até os 95 anos, tricotava e doava os conjuntos. Mas depois de cair e quebrar o punho, reclama que a mão não permite mexer com as agulhas. Ainda se arrisca a cortar algumas roupas, faz bainhas e conserta peças.

Apesar de ter dificuldade para escutar, os olhos azuis se mantêm ativos. Todos os dias lê jornal e passa horas preenchendo caça-palavras acompanhada das guloseimas favoritas: ela adora doces. Potes cheios de suspiros e paçocas ficam perto da poltrona de leitura. À noite, gosta de acompanhar os jogos de futebol. Mas para acordar cedo, a simpática senhora resiste. Confidencia que sempre reclama e questiona se já está na hora de sair da cama. Levanta, toma banho com ajuda da cuidadora, veste-se e toma café. Depois, volta a dormir mais um pouco.

A memória continua preservada. Lembra da infância em Laguna, das festas que ia com o marido, que faleceu há 22 anos de infarto. Sempre gostou de ir a teatro, cinema e viajava bastante. Recorda com carinho das idas frequentes a São Paulo e ao Rio de Janeiro. Quando jovem, trabalhou com o pai na mercearia e depois no cartório do marido. Mais tarde, Nilda se aposentou por uma doença do coração e até hoje toma remédios – são nove comprimidos por dia. A lucidez não lhe permite esquecer a maior tristeza desse centenário de vida, a morte do filho caçula há 12 anos.

Ela acredita que mesmo com as perdas, o segredo está em ver “tudo de um jeito bom”. Garante que não tem medo de nada, afinal são quatro pessoas cuidando dela. Diz que só se assusta com as notícias de malas cheias de dinheiro que ninguém sabe de onde vêm.

– Não tenho dor, tudo é bom. Deus é bom. Vou até os 103, porque como de tudo, não faço dieta e não me incomodo com nada – prevê.

EVERTON SIEMANN

everton.siemann@somosnsc.com.br

 

s olhos claros chamam a atenção. O sorriso é radiante.

A audição e a memória podem não ser plenas como antes, falham às vezes, mas são compensados pelo jeito cativante. Sentada em um sofá na área de convívio comum da Casa São Simeão, um abrigo para idosos em Blumenau, Catarina da Costa, 100 anos, faz o que, segundo ela, mais gosta: observa.

– Os outros trabalham, eu só olho – diz, precedendo uma gargalhada contagiante.

Também pudera, a senhorinha que carrega três dígitos de idade já cumpriu sua parte na missão de ajudar a crescer e desenvolver a cidade, a região e o Estado. E como. Acompanhou os municípios do Vale do Itajaí se transformarem, deixando para trás os ares de colônia, avançando com o crescimento da indústria e se adaptando às exigências do mercado.

Natural de Brusque, a colona, como ela se autodenomina, fez a sua parte. Na terra plantou, colheu e aprendeu a viver. Casou, teve um casal de filhos e construiu a vida. Milho, feijão, taiá, batata e chuchu são algumas das verduras que se recorda de ter plantado. Muito antes da era das redes sociais ela já dava sentido ao verbo compartilhar, com todas as suas letras. A nora conta que Catarina distribuía os frutos das colheitas entre vizinhos e conhecidos.

O zelo pelos outros está na origem de Catarina. Ela gosta de conversar e contar histórias. E quantas. A maioria dos relatos é carregada de altruísmo, sempre com o outro em primeiro plano: auxílio em partos, distribuição de comida para crianças com fome, cuidado com pequenos... Verdadeiras lições.

– As crianças me amam. Sou madrinha de muita gente – afirma, orgulhosa.

Desde 2012, vive na casa São Simeão. Viúva há quase 40 anos, tem orgulho em dizer que “marido a gente só tem um na vida”. Mãe de dois filhos, tem nove netos e dois bisnetos, que a visitam com frequência.

Catarina é motivo de orgulho. A nora conta que um dos bisnetos, de 15 anos, diz que “a bisavó é mais bonita do que a rainha da Inglaterra”. A origem simples reflete-se no paladar. Afirma gostar de comer de tudo. Funcionários do abrigo e familiares divergem sobre os alimentos favoritos: banana, cenoura, ovo, polenta e doces estão na lista. Música é outra paixão de Catarina, que é fã de cantigas italianas. A assistente social da instituição conta que é comum ouvi-la cantarolando pelos corredores logo de manhã cedo. Há pouco tempo, quando representantes do Lira Circolo Italiano di Blumenau visitaram o local, contaram com um apoio especial.

– Ela cantou praticamente todas as músicas junto com eles – recorda a servidora.

Catarina não é santa, como a padroeira que dá nome ao Estado, mas a fé e a devoção cristã bem que fazem dela uma beata. Com a sapiência de quem já viveu tanto, aconselha para uma boa noite de sono:

– Reza a oração do Senhor Bom Jesus de Iguape. Vai dormir tranquilo – sentencia, antes de declamar a oração, contando nos dedos das mãos cada estrofe da reza.

CRISTIANE SCHIMITZ

cristiane.schimitz@somosnsc.com.br

 

s poucos metros que separam Camilo Zacarias Pereira do portão de casa, em Joinville, têm se tornado um percurso cada vez mais difícil. Manter o prazer de sentar-se perto da rua, olhar o movimento do bairro que viu surgir quando tinha “só duas valetas” e fumar cachimbo ficaram mais raros. Perto de completar 102 anos em 5 de novembro, a memória dele ainda é boa e a disposição para conversar, melhor ainda. São as pernas que traem essa disposição. Essa talvez seja a principal – e talvez única – reclamação com a chegada da velhice.

É na companhia da filha Alcenira, 66 anos, com quem mora há oito anos, que Camilo passa os dias tranquilamente. Conta que trabalhou desde os 14 anos, quando vivia com o pai e os oito irmãos na localidade de Poço Grande, hoje Guaramirim. De memória, acredita que frequentou a escola apenas por um ano. A filha corrige e lembra que, naquele tempo, faltavam muitos professores, e as aulas paravam e recomeçavam o tempo todo. A desistência também era muito grande. Mas Camilo sabe ler e escrever direitinho, garante, apesar de não ter o hábito da leitura. O trabalho diário no campo é a lembrança mais feliz do passado.

– Pintinho piando, porco berrando, é isso que eu gosto. Se eu pudesse ser novo de novo, era lá que eu queria estar – recorda.

A relação com os animais sempre foi muito forte: no sítio da família tinha de tudo (“menos bode, meu pai não gostava”, ressalta), e ele acordava cedo. A primeira coisa a fazer era lavar o rosto e seguir para o curral das vacas, onde tirava uma caneca de leite fresco e bem quentinho. Quem sabe aí more um pouco do segredo da longevidade de Camilo.

Muito festeiro na juventude, Camilo lembra que o pai era “muito boa pessoa” e sempre deixava um dinheirinho para as festas. O trajeto até os salões, é claro, era feito a cavalo, animal com qual Camilo sempre teve uma relação muito sentimental. Foram vários deles que o ajudaram no sustento da família, quando, já pai de três filhos, veio morar em Joinville há 66 anos e começou a profissão de carroceiro.

Os dias na cidade começavam indo até o terreno onde o cavalo passava a noite. Depois de alimentá-lo e encilhá-lo, às 7h, já estava no ponto de encontro dos carroceiros da região. Carregava de tudo: linhas de carretel de uma fábrica, lenha, barro, pequenas mudanças, o que viesse. Conheceu Joinville inteira sentado em uma carroça.

Sempre fez tudo sozinho, até perto de completar

sete décadas, sem pedir ajuda aos oito filhos. Depois, passou alguns anos trabalhando no cuidado de cavalos de passeio. Quando parou de trabalhar, já tinha passado dos 80.

Camilo viu muita estrada de chão virar asfalto, e hoje, ao passar de carro, diz não conseguir reconhecer os lugares que passou, tamanha a transformação urbana.

Ele vive com a filha Alcenira desde que ela ficou viúva. Porém, passa três finais de semana por mês na casa dos outros filhos. Eles se revezam e o levam para passear. Dos oito irmãos, apenas uma irmã, Amélia, ainda está viva, com 84 anos. A companheira de uma vida, Justina, se foi há 13, por complicações da osteoporose.

Apesar da idade, garante a filha, o pai não dá trabalho nenhum. Come de tudo, adora feijão com farinha, legumes. O que não entra no cardápio de jeito nenhum é ovo, seja frito ou cozido. Desde novo, não gosta de nada muito quente. E fuma o cachimbo desde os 20 anos. Não tem diabetes, colesterol alto, não precisa de dieta especial. Adora uma visita para conversar.

Questionado se teria algo ainda por fazer, só pensa em descansar. Hoje em dia, tem muito sono, conta. Mas queria voltar no tempo.

– Queria viver a vida no sítio mais uma vez.