PÉS EM DESTERRO,

olhos no firmamento

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Registro da primeira observação
astronômica de Brazilício

Crédito: Reprodução

6 de dezembro de 1882:
Às nove da manhã cessou a chuva e pude observar por alguns instantes o disco do sol. Vênus ainda não se destacava nele. 12 horas e chuva, porém fraca. Duas horas e cinco minutos. Finalmente! Em um curto espaço de cinco minutos ficou o Sol meio descoberto e aplicando a luneta vi perfeitamente Vênus bem destacada no disco solar.

osé Brazilício de Souza viveu de paixões. Uma delas, a astronomia. Não há informações de que alguém tenha lhe ensinado a observar a cintilante Via Láctea. O provável é que tenha aprendido sozinho. Fez isso dia a dia, durante 25 anos (1882-1907), anotando suas observações em um diário. Além do olho nu, utilizou binóculo, sextante – instrumento que serve para medir a altura dos astros e suas distâncias regulares –, luneta.

Com os pés sobre o chão de Desterro, apreciou planetas, meteoros, cometas, eclipses, estrelas duplas. E momentos de rara beleza, como as conjunções de astros, quando, aparentemente estão próximos uns dos outros, ainda que separados por anos-luz de distância. O primeiro registro astronômico de Brazilício data de 11 de agosto de 1882. Lá se vão 134 anos. É uma descrição histórica para a astronomia brasileira.

“Das 7 horas às 8 ½ da noite. Constelações estudadas – Cruzeiro do Sul, Triângulo Austral, Altar, Centauro, Boieiro, Compasso. Signos do Zodíaco, Centauro, Compasso. Signos do Zodíaco- Escorpião, Balança, Virgem. É na constelação do Centauro que se acha a estrela mais vizinha de nós (1ª grandeza). No signo de Escorpião acha-se a estrela Antares (1ª grandeza). Na de Virgem, a estrela Spica (1ª grandeza).”

Existe um astro que inúmeras vezes foi observado por Brazilício, o planeta Vênus, a brilhante e popularmente conhecida estrela-d’alva – uma das vezes, em 1882, durante um raro evento, o trânsito dela sobre o disco solar. Para se ter uma ideia da singularidade do fenômeno que ele testemunhou, o próximo só ocorreria em junho de 2004, exatos 122 anos depois.

Brazilício observou, registrou e divulgou a astronomia em jornais e revistas da época. Em alguns dos artigos usava o pseudônimo Sufi Junior. O nome seria uma homenagem ao astrônomo persa Abderrahmam Al-Sufi, que viveu no século 10.

O interesse pela astronomia era tão grande que as páginas dos periódicos pareciam ter pouco espaço para suas descrições. Por isso, chegou a fundar um jornal em Desterro, o Sul-Americano, no qual conseguia tratar o assunto de forma pedagógica.

Desenho da passagem do Grande Cometa registrada em 11 de setembro 1882

 

No mapa da ciência universal

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“5h.m. Bonita madrugada. Observação da luz cinérea da Lua. Magnífico espetáculo. Notei do mar da Tranquilidade, ao S. de Plínio, duas crateras muito brilhantes apresentando variações rápidas na intensidade da luz, parecendo algumas vezes estrelas de 6ª ou 7ª grandeza. Pode ser fenômeno ótico, mas por diversas vezes vi reproduzir-se o mesmo. As crateras que apresentarão maior brilho na Lua Cheia, principalmente Procles que se acha no mesmo campo da luneta, é muitíssimo inferior agora ao brilho de Aquellas duas. Enche-se o céu. Dia lindo. Noite estrelada”

A astronomia não é uma ciência isolada; é a fonte perene da qual emanam todas as ciências. A ela intimamente se prendem a física, a geologia, a mineralogia, a cronologia e tantas outras ciências que hoje abrem o seu santuário à nossa curiosidade... (Sufi Jr., jornal Sul-Americano, 17 de agosto de 1902.)

Brazilício trocava correspondência com Camille Flammarion, à época secretário geral da Sociedade Astronômica da França. Em 1895, associou-se ao clube da revista L’Astronomie , identificando-se como “professor de música”.

Tornou-se membro efetivo e recebeu diploma. Na seleta lista de associados constavam outros brasileiros, como Santos Dumont e D. Pedro II. Uma observação feita em 11 de maio de 1885 foi enviada à redação da L’Astronomie. Nela, o astrônomo de Desterro contava ter tido dúvidas se o que avistara havia sido um fenômeno óptico.

Tempos depois, chegava a Desterro a resposta da carta enviada a Paris. A publicação é de abril de 1890, página 149, e traz a informação de Lopez Morales, diretor do Observatório de Almeria, na Espanha. O texto mostra que o evento observado por Brazilício, em Desterro, foi percebido de forma parecida em outra região lunar.

Alguns trabalhos sobre astronomia feitos por Brazilício serviram de estudos de navegação para a Marinha brasileira. São cinco desenhos do céu, entre eles a estrela A da constelação do Cruzeiro do Sul; manchas solares; o disco solar às 5h30min do dia 10 de fevereiro de 1883, e a passagem de Vênus pelo sol, no dia 6 de outubro de 1882. Também para as armadas da Inglaterra e da Alemanha.

Se era verdade que Brazilício passava horas olhando para o céu, verdade também para o que dele caía. Foi também meteorologista. Entre os anos de 1884 a 1887, anotou em um outro diário os dias de chuva na cidade de Desterro.

Sobre a dedicação revelada nos estudos astronômicos, um ex-aluno de Brazilício, Antônio Mâncio da Costa, observou:

— Tudo me impressionou muito, mas o que mais me admirou foi o número de noites em que esse homem (Brazilício) ficou acordado.

Por essas coisas da vida, o homem que passava horas olhando os céus não teve tempo para esperar a visita do cometa Halley, em 1910.  Brazilício morreu três meses antes do cometa pela primeira vez se deixar fotografar e ganhar fama mundial. Mas, no ano anterior, em 18 de julho, de 1909, ele escreveu um artigo a respeito desse corpo celeste para a edição de 1910 do Almanaque Santa Catarina.

Artigo publicado na revista
francesa L'Astronomie

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Brazilício foi também meteorologista. Entre os anos de 1884 a 1887, anotou em outro diário os dias de chuva na cidade de Desterro (Florianópolis).

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O cometa Halley foi objeto de artigo publicado no Almanaque de Santa Catarina em 1910.

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Alexandre Amorim, astrônomo amador e especialista em fotometria

 

Da luneta ao telescópio

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Infelizmente não conseguimos fazer uma homenagem digna a um homem que tanto ajudou a divulgar a astronomia, em uma época de muitas dificuldades de comunicação, quando os navios gastavam tempo para trazer os impressos e não haver a tecnologia que contamos hoje, inclusive, nos instrumentos de observação

Alexandre Amorim Astrônomo amador

De profissão eletricista, Alexandre Amorim, 42 anos, utiliza fiação elétrica para iluminar ambientes. Astrônomo amador que é, recorre à Via Láctea para identificar pontos luminosos. Integrante do Núcleo de Estudo e Observação Astronômica José Brazilício de Souza (Neoa), com sede em uma sala do Instituto Federal de Santa Catarina, em Florianópolis, ele reconhece no patrono da entidade um cientista notável:

— O Brazilício foi um astrônomo completo, pois não apenas observou diversos fenômenos e objetos como registrou em um diário o que viu ao longo de quase 30 anos.

Separados por mais de um século de vida, o interesse pela astronomia une os dois, que possuem outras características em comum. Américo, o pai de Alexandre, também era militar. Nas horas de folga, pescador nas águas da Costeira do Pirajubaé, Baía Sul. Foi Américo que, numa certa manhã, mostrou para Alexandre a estrela-d’alva – o planeta Vênus – a olho nu. Tinha uns 10 anos e não se esqueceu desse dia.

Além disso, depois de passar boa parte da noite pescando camarão no baixio (que os nativos da região chamam de “pegada”), o pai costumava contar sobre passagem de satélites e estrelas cadentes que avistava durante a noite. Relatos que aguçavam a imaginação do menino:

— O pai contava também sobre uma “estrela de cauda enorme” que via nas manhãs em meados da década de 1960. Mais tarde eu descobri que se tratava do Ikeya-Seki, o mais brilhantes cometa do século 20.

O menino que se deixaria levar pelo gosto de observar os céus cresceu, assim como a maioria dos catarinenses, limitando o nome de Brazilício à autoria da melodia do hino do Estado que cantava na escola. Inimaginável que, anos depois, se tornaria líder de um movimento que, em 2015, pretendeu emplacar o nome Sufi Junior, pseudônimo que Brazilício usava em artigos sobre cosmografia, para o planeta orbitando Épsilon Eridani. Também queria batizar uma estrela de Cambirela, nome da montanha localizada no Parque Estadual da Serra do Tabuleiro.

— Infelizmente não foi desta vez, mas temos certeza que seria uma homenagem digna para um homem que tanto ajudou a divulgar a astronomia. Isso em uma época de muitas dificuldades de comunicação, quando os navios gastavam tempo para trazer os impressos e o fato de não haver a tecnologia que dispomos hoje, inclusive, nos instrumentos de observação — sugere Amorim.

Amorim tornou-se especialista em fotometria visual e soma 30 mil registros visuais. Atualmente é coordenador de observações do Neoa e da Rede de Astronomia Observacional, a Cometas da REA-Brasil, e integra outros grupos. Possui dois livros publicados: O Astrônomo Brazilício e Anuário Astronômico Catarinense 2015. Para o primeiro, fez uma pesquisa sobre os apontamentos de Brazilício e repetiu, mais de 100 anos depois, as mesmas observações.

Concluiu que nem todas são hoje possíveis de serem feitas dos mesmos locais. Principalmente pela urbanização da cidade, tomada por prédios, mas, sobretudo, por causa da iluminação. Algumas ainda sim, como a conjunção que na última semana deste agosto de 2016 vai envolver três planetas:

— Essa conjunção entre Mercúrio, Vênus e Júpiter tem um valor histórico especial, pois há 131 anos, em 5 de agosto de 1885, na capital da então Província de Santa Catarina, o mesmo fenômeno foi observado e registrado por José Brazilício de Souza numa configuração muito semelhante. Por isso, resgatar esse personagem é valorizar a história de Santa Catarina e da própria astronomia brasileira — explica.

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O céu desliza vagarosamente sobre nossas cabeças, e os olhos
não se fartarão de contemplar as belezas que ele encerra.

José Brazilício de Souza