LIÇÕES DE

artes e ofícios

O

Caderno em que o professor
registrava as matérias de aula

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gosto por ensinar fez de José Brazilício de Souza um exímio professor. Dava aulas de História, Geografia, Cosmografia. Mas com conhecimento para substituir qualquer professor em diferentes disciplinas. Ungido pela erudição. Um mestre com conhecimento variado e profundo, como mostra o bem conservado caderno em que planejava a exposição dos conteúdos. Com uma letra tão perfeita que parece pintura.

Contemporâneo do chamado Século da Ciência, período marcado por invenções, descobertas e surgimento de teorias como a Evolução das Espécies de Charles Darwin, era mestre no Liceu de Artes e Ofícios. Iniciou na cadeira Música Instrumental para depois assumir Geografia e Cosmografia. Também foi nomeado para o Ginásio Catarinense e, por fim, na Escola Normal Catarinense, onde trabalhou até morrer, em 1910.

Brazilício foi um mestre querido pelos alunos. Sabia e sabia ensinar aquilo que sabia. A respeito disso, o ex-aluno da Escola Normal e que mais tarde seria o escritor Arnaldo S. Thiago, conta que estudavam História Universal, História do Brasil e História de Santa Catarina. O relato está no livro O Sábio e o Idioma, de Abelardo Sousa, neto de Brazilício.

O professor usava método expositivo. Os alunos faziam resumo do ponto estudado e depois devolviam para correções. Nos exames de final de ano, tanto escritos como orais, os conteúdos eram exigidos.

Já naquela época a vida de professor parecia corrida. Brazilício dava aulas de História, Geografia e Cosmologia pela manhã. À tarde, compunha e ensinava piano e violino em domicílio, como mostra em uma correspondência para a senhora Antônia Bell, professora de música em Darmstadt, na Alemanha.

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Em nossa cidade, apesar de pequena, o estudo da música e do piano é muito cultivado pelas mulheres. Tenho algumas alunas que fazem progresso; já executam músicas de Chopin, Mendelssohn, Gottschalk, Prudente e, mesmo, Beethoven. Emprego nas minhas aulas as diferentes coleções de exercícios de C. Czerny, que me dão grandes resultados. Empregais também os exercícios desse compositor ou preferes talvez outros, como Bertini, Clement, Cramer etc?

Brazilício escreve
a Antônia Bell

Uma das cartas que trocou com a
professora de música na Alemanha

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A Nossa Senhora de Desterro, cidade em que vivia Brazilício

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Brazilício foi também um cronista
das ruas da cidade de Desterro

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“O clima da nossa ilha é quente e úmido durante quase todo o ano. O verão prolonga-se muito, enquanto o inverno se manifesta somente durante poucos dias. (...) Nosso mercado é farto em alimentos: boa carne, peixes frescos e gostosos e uma variedade inumerável de excelentes frutas e verduras aparecem aqui diariamente. Além disso, alguns colonos e agricultores alemães do continente vêm, duas vezes por semana, trazendo queijos, farinha, carne de porco, galinhas e muitos ovos. Todos os navios que navegam do Rio de Janeiro ao Rio Grande, Montevidéu, ficam algumas horas em nosso porto. (...) Temos mais de vinte casas comerciais, que negociam a retalho ou a varejo, muitas lojas, três farmácias e assim por diante. Há também alguns estabelecimentos artesanais e industriais e entre esses últimos uma máquina a vapor para a moagem de cana. Temos, mais, quatro tipografias, que imprimem seis jornais, sendo três deles diários. Contudo, esta cidade tem muito poucas distrações. Existem somente dois clubes para dançar: um deles é alemão e o outro, brasileiro. Nosso teatro está quase sempre fechado; temos poucos passeios e nenhum jardim organizado, local que se torna necessário em todos os lugares. Eis, em poucas palavras, o que é a cidade de Desterro.”

Carta enviada a um amigo da Europa que lhe
pediu esclarecimentos a respeito da vida em Desterro

José Brazilício era um homem de cultura geral. Isso está demonstrado nas cartas sobre diversos assuntos que trocou com pessoas diferentes em vários lugares do mundo. Escrevia em inglês, francês, italiano, latim, espanhol. O idioma internacional volapuque, uma espécie de esperanto, ele conheceu em 1887. O volapuque chegou a ser falado e escrito por mais de um milhão de pessoas em todos os continentes e teve seu apogeu nos anos 1889-1890.

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Felizes aqueles que sabem ler, mesmo soletrando, os
caracteres luminosos que a noite esculpiu na abóboda celeste.

J. B. S.

Enlace cultural

A professora e escritora Maura Soares fez uma pesquisa bibliográfica que ajudou a dar forma ao livro O Sábio e o Idioma. Uma das fundadoras do Grupo de Poetas Livres e membro da Academia Desterrense de Letras, ela atendeu a um pedido de familiares de José Brazilício de Souza.

 — Um homem que botou Desterro no centro do mundo — reconhece.

Poeta que é, Maura Soares se deixa inundar pela emoção quando fala de outra paixão de Brazilício, a esposa dele. Não exatamente de Maria Carolina. Mas de Semíramis, pseudônimo usado pela jovem desterrense para revelar seus pendores à poesia e que acabou publicada na imprensa da província.

Casada com um homem de grande cultura e sensibilidade artística, Semíramis participava das tertúlias literárias e musicais que realizavam em casa. Eram encontros concorridos, com a presença de notáveis do mundo da cultura da cidade, como maestros, doutores, poetas. Muitos desses estão eternizados na memória de Florianópolis em placas de ruas, como o maestro Adolfo Melo, o doutor Duarte Schutel, a poeta Delminda Silveira.

Na época, explica Maura Soares, apareceram os versos de Semíramis no jornal Sul-Americano, fundado por José Brazilício de Souza. O curioso é que os poemas costumavam ser colocado sobre a mesa do jornalista, editor do jornal. Mais tarde também foram publicados no suplemento literário O Ideal (1905- 1909), tornando-se um mistério envolvendo a festejada poetisa que ninguém conseguia identificar entre as muitas mulheres da época que se dedicavam a trabalhos literários em prosa e verso.

Maura se emociona ao contar essa passagem. E não consegue chegar ao final dos versos (sem título, mas assinados por Semíramis) que espontaneamente se propôs a declamar:

A professora e escritora Maura Soares ajudou na pesquisa do livro O Sábio e o Idioma, sobre Brazilício

 

Aquela flor perfumosa

que em uma tarde saudosa

me deste como lembranças

tinha a cor das açucenas

filhas das manhãs serenas

porejadas de esperanças.

 

Guardei-a com todo agrado

de meu peito junto ao lado

em que pulsa o coração

vive louca em minh'alma

derramando nela a calma

com seu possante condão.

 

Talvez tu julgues perdido,

para mim de todo esquecido

esse expressivo penhor.

Só se o homem desconhece

que a mulher jamais esquece

da origem do seu amor.

Maria Carolina, a Semíramis

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Aos 56 anos, Maria Carolina morreria em 25 de março de 1910. Por ocasião do velório, Brazilício, comovido, disse a amigos que o cercavam:

– É, meus amigos, lá se foi a nossa Semíramis – desvendando, assim, para muitos, o mistério daquele pseudônimo que intrigou por tempos o mundo literário da cidade.