A ADORAÇÃO PELA NATUREZA

Quando menino, Gaudí teve uma doença reumática que o impediu de brincar com outras crianças e o obrigou a passar muitos dias na casa de campo da família. Foi então que aprendeu a contemplar as formas naturais, já que não podia experimentá-las fisicamente, e desenvolveu um modo particular de interpretar a luz e o mundo à sua volta.

– A partir da juventude, começa a observar muito a geometria e as estruturas naturais. Vemos que ele já havia intuído que aí estava alguma coisa e que essa forma com a qual ele trabalhava estava presente no mundo natural. Ele era contrário à arquitetura octogonal. Se entrasse aqui [no Masc], não iria gostar – brinca o curador Raimon Ramis.

Gaudí também buscou recuperar o trabalho artesanal. Ele entendia que os artesãos eram herdeiros de uma tradição ancestral. As formas parabólicas que ele criava, por exemplo, remetem às cabanas de campo dos pastores, que eram arcos parabólicos, ou seja, uma abóbada feita com arco autossustentado.

Ainda que tenha nascido na época do modernismo catalão – e seja seu maior representante –, Gaudí desvincula-se do movimento.

– É um artista de muitas coisas: é simbolista antes do simbolismo, é barroco, é romântico, é modernista. Ele agrega todas as características e as leva ao extremo – ressalta Raimon.

UM ARQUITETO NA DA USUAL

A principal característica de Gaudí é o trabalho com formas volumétricas. Diferente de outros arquitetos, não começava um projeto a partir de desenhos e cálculos, mas a partir do volume. Diziam que ele era mais escultor do que arquiteto, porque modelava a ideias antes de executá-las.

– Ele desenvolve um processo de estudo pouco usual para um arquiteto e também para a época. Observava a natureza para extrair a ideia da base estrutural. As maquetes eram determinantes, porque era a partir delas que estudava a estrutura de seus projetos – explica Priscyla Gomes, pesquisadora do Instituto Tomie Ohtake.

Até encontrar a solução definitiva, inclusive as soluções decorativas, produzia uma série de modelos. Na exposição Gaudí, Barcelona 1900 há marcações para cores e ornamentos que ele fazia nas miniaturas.

As maquetes originais se perderam nos anos posteriores à sua morte, devido a incêndios e conflitos (Guerra Civil Espanhola, Segunda Guerra Mundial). O que está em Florianópolis são reconstituições a partir do pouco que sobrou. As peças são do acervo do Museu do Templo Expiatório da Sagrada Família, da Fundação Catalunya-La Pedrera Gaudí e do Museu Nacional de Arte da Catalunha.

Gaudí, Florianópolis e a arquitetura como construção da identidade

A exposição que abre neste sábado, iniciando-se no Brasil por Florianópolis com trabalhos do arquiteto Antoni Gaudí e artistas catalães da Barcelona de 1900, cria um momento importante para refletir sobre o poder transformador da arquitetura nas cidades. Barcelona, nesta época, era uma cidade portuária marcada pela cultura mediterrânea introduzindo na Catalunha as novas correntes artísticas europeias.

Além disso, era, já no final do século 19, o grande polo industrial da Espanha com uma burguesia em ascensão que empenhava-se em promover a cultura regional catalã, diferenciando-se do resto do país. No âmbito histórico em que Gaudí viveu, o mundo também experimentava a construção de edifícios e pavilhões de exposições universais que condensavam os avanços da nova sociedade industrial e o que entendiam por modernidade.

 Ao mesmo tempo, Gaudí participava da Renaixensa catalã, que foi um movimento artístico das artes e ofícios que no âmbito político procurava restabelecer um tipo de vida que tinha sido suprimido pelo governo centralista de Madrid, ao longo dos séculos 18 e 19.

O arquiteto do final do século, no contexto de Gaudí, é um artista excêntrico que rivaliza com outros arquitetos o protagonismo de seus edifícios na cidade como se fossem quadros que são erguidos nas avenidas como em uma galeria de arte.

 Tendo em vista este cenário urbano, Gaudí representou com perfeição o papel do arquiteto modernista catalão, criando todo excesso que buscava representar a vida de seus clientes e também de sua cidade, a pujante Barcelona do início do século.

 O início da exposição pela capital catarinense é um momento propício para ampliar, através da obra de Gaudí, a consciência sobre o papel da arquitetura em uma perspectiva histórica de cidade. O exemplo de Barcelona desde Gaudí até os dias atuais é percebido caminhando pelas ruas da capital catalã e sentindo esse nacionalismo associado aos avanços constantes daquela cidade no planejamento urbano e arquitetura.

 Aliás, a importância e o reconhecimento do trabalho dos arquitetos catalães são refletidos em centenas de edifícios implantados por toda a cidade, criando uma rede sólida de espaços públicos bem articulados com os espaços privados.

 Ver a obra de Gaudí em Florianópolis é uma experiência inusitada que permite uma reflexão sobre a capacidade que a arquitetura tem de representar uma sociedade criando uma identidade local. Qual a identidade arquitetônica de Florianópolis e como projeta-se para o futuro? Esta é uma pergunta que pode ser feita e encontrar profundos desdobramentos através de uma análise do passado e um exercício de projetar mentalmente as próximas décadas.

 Tendo vivido mais de três anos em Barcelona e experimentado a cidade como arquiteto e cidadão, posso afirmar que a arquitetura é assumida com uma importância que se revela na seriedade com que são construídas as praças, as ruas, a borda d’água, os edifícios públicos e o mobiliário urbano, por citar alguns pontos de destaque.

 Não apenas Gaudí, mas também vários arquitetos catalães do passado forjaram uma cultura de respeito e admiração pela arquitetura, que é o resultado de projetar a cidade com critério e uma certa dose de atrevimento, que é um ponto de consenso sobre a obra do próprio Gaudí.

 Esta exposição desafia nosso contexto local a refletir sobre construir sua identidade arquitetônica a partir da valorização do profissional arquiteto e o benefício de sua atuação para a cidade. Considero que Florianópolis recebe o início dessa exposição no Brasil permitindo ao público conhecer as obras do passado catalão como uma provocação que não está vinculada aos atributos estéticos da obra de Gaudí, e sim a princípios universais de criação e inovação que são desafios para a transformação dos lugares, mesmo a partir de projetos pontuais como a Casa Batlló, Casa Milà ou a Sagrada Família, por citar três exemplos que pertencem ao legado da humanidade deixados por Gaudí.

 Marcos Jobim
Sócio da Jobim Carlevaro Arquitetos e ARK7 Arquitetos, realizou doutorado em Barcelona.