reportagem | CAROL MACÁRIO
caroline.macario@diariocatarinense.com.br
Protótipo da nave (cobertura da igreja) da
Sagrada Família, inspirado na copa de uma árvore
Inspiração no grande
livro da natureza
a
natureza é onde o ser humano se sente melhor. E na natureza não há linhas retas. Se Deus, como dizem, continuou sua criação pelo homem, Antoni Gaudí (1852-1926) buscou ser digno desse ato ao elevar o concreto à grandeza das formas orgânicas. Até hoje, 90 anos depois de sua morte, é chamado de inventivo e ousado porque nada mais fez do que observar o entorno: ele não inventou nada, estava tudo pronto. Apenas teve coragem de procurar.
Gaudí, Barcelona 1900, exposição inédita no Brasil, apresenta no Museu de Arte de Santa Catarina (Masc), em Florianópolis, o universo artístico de uma época e os processos de criação de um arquiteto que instaurou uma estética moderna única, que marcou definitivamente a cidade de Barcelona e transcendeu o tempo.
Em busca da verdade absoluta e da beleza mais autêntica, Gaudí encontra resposta na forma das flores, na geometria das ondas e das montanhas, na curva imperfeita das plantas e na estrutura das árvores, com seus troncos, galhos, frutos e animais que coabitam o mesmo espaço. Ainda que tenha projetado apenas 17 obras em 48 anos de carreira, cinco das quais foram, de fato, concluídas quando ainda vivo, o que faz dele tão singular não é a quantidade, mas a complexidade de seu legado.
– A natureza tem solução para tudo. Você só tem que encontrar. Os planos octogonais, não. São artificiais. Ele dizia: ‘não invente soluções, mas observe como a natureza se organiza. Uma árvore aguenta todas as folhas. Como eu faço em pedra esse organismo?’ – explica um dos curadores da mostra, o pesquisador de história da arte Raimon Ramis.
Na medida em que se conhece melhor a natureza, vê-se que Gaudí não estava equivocado. Até porque suas obras continuam – e muito bem – de pé.
Gaudí é filho de um tempo. Sua evolução como arquiteto reflete claramente a história social e artística da Catalunha da virada do século 19 para o 20. Na época, Barcelona começava a crescer para além das velhas muralhas para se transformar numa das mais estonteantes cidades da Europa. A cidade vivia o êxtase da prosperidade, graças aos efeitos da revolução industrial. A burguesia ostentava o luxo e financiava as artes, como poucas vezes se fez.
Antoni Gaudí
No fim da vida, abriu
mão da riqueza mundana
Gaudí beneficiou-se dessa bonança. Graças ao olhar visionário de Eusebi Güell (1846-1918), rico empresário que investiu no arquiteto, Gaudí deu vasão à criatividade em projetos cujas cifras são difíceis de traduzir em valores atuais. Foi, no entanto, uma figura contraditória. Se viabilizou o luxo alheio com suas ideias, ele, ao contrário, gozou da simplicidade, principalmente no fim da vida. Chegou a dizer que riqueza não está ligada a bens materiais, mas à dignidade das pessoas.
– Ele se afasta dos amigos e vira quase um ermitão. Vive sozinho, às voltas com pesquisas e à construção da Sagrada Família. A partir de 1914 até o ano de sua morte, em 1926, dedica-se com exclusividade à construção. Ele se aproxima cada vez mais da religião e da clausura. Faz votos de ficar sem comer e abraça a sacralidade da pobreza –diz Priscyla Gomes, pesquisadora do Instituto Tomie Ohtake, instituição parceira da mostra.
O episódio de sua morte, aliás, é emblemático do quanto abdicou da vida mundana. Em 17 de junho de 1926, um bonde o atropelou quando caminhava pela rua. Velho e mal vestido, foi confundido com um mendigo. Taxistas recusaram-se a levá-lo ao hospital e o auxílio médico tardou. Morreu três dias depois. O corpo foi enterrado na Cripta da Sagrada Família, a única parte do templo que ele viu construir junto à Fachada do Nascimento.
“Se a natureza é um
feito do Criador e as formas
arquiteturais derivam da
natureza, isto significa que
o trabalho do Criador
estará sendo continuado.”
Antoni Gaudí
Esqueleto de uma serpente, inspiração para os estudos estruturais de Gaudí para a construção de arcos
A adoração
pela natureza
Um arquiteto
nada usual
Quando menino, Gaudí teve uma doença reumática que o impediu de brincar com outras crianças e o obrigou a passar muitos dias na casa de campo da família. Foi então que aprendeu a contemplar as formas naturais, já que não podia experimentá-las fisicamente, e desenvolveu um modo particular de interpretar a luz e o mundo à sua volta.
A principal característica de Gaudí é o trabalho com formas volumétricas. Diferente de outros arquitetos, não começava um projeto a partir de desenhos e cálculos, mas a partir do volume. Diziam que ele era mais escultor do que arquiteto, porque modelava a ideias antes de executá-las.
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Gaudí fez estudos estruturais com cordas e
pesos para modelar os arcos da Sagrada Família
OPINIÃO
"Ver a obra de Gaudí em Florianópolis é uma experiência inusitada que permite uma reflexão sobre a capacidade que a arquitetura tem de representar uma sociedade criando uma identidade local."
Marcos Jobim, arquiteto
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Antoni Gaudí:
vida e obra
1852
Nasceu em 25 de junho em Reus, a 92 quilômetros de Barcelona, na Espanha.
1860
Filho de um latoeiro, começou no mundo dos artesanatos na oficina do pai, aos oito anos.
1868
Desde criança mostrou interesse pela arquitetura. Mudou-se para Barcelona, então centro político e intelectual da Catalunha e cidade mais moderna da Espanha.
1873
Ingressa na Escola de Arquitetura e trabalha como assistente em estudos de arquitetos e oficinas de carpintaria, vidraçaria e serralheria. Estudante regular, destacava-se em projetos, desenho e cálculo.
1878
Já formado, começa a projetar de acordo com um estilo Vitoriano. Desenvolveu uma maneira de compor por meio de justaposições de massas geométricas, até aí nunca usadas, cujas superfícies eram animadas com pedra ou tijolo modelado, painéis cerâmicos de cores vivas e estruturas de metal utilizando motivos florais ou repteis. Conhece Eusebi Güell, empresário e principal financiador de suas obras.
1878/ 1880
Projeta a Casa Vicens, construída em estilo Mudéjar – mistura especial da arte muçulmana com a cristã.
1883
Assume o projeto do Templo Expiatório Sagrada Família e toca a obra junto com outros trabalhos. Até então, era uma catedral neogótica na qual fez profundas transformações. Trabalhou por 43 anos no templo, até a sua morte em 1926.
1883/ 1885
Elabora o projeto de El Capricho, entre 1883 e 1885, assim como a propriedade e o Palácio de Güell.
1887/ 1893
Obra no Palácio Episcopal de Astorga.
1898/1904
Obra em estilo barroco na Casa Calvet, em Barcelona.
1900/ 1914
Começa a construção do Parque Güell e da igreja da Colonia Güell. Reflete a plenitude artística de Gaudí, com referências de sua fase naturalista. Em 1984 foi classificado pela Unesco como Patrimônio da Humanidade.
1902
À exceção de alguns edifícios em que é clara representação simbólica da natureza ou da religião, os edifícios de Gaudí se transformam em representações da sua estrutura e dos materiais que os constituem.
1904/ 1906
Assume a renovação da Casa Batlló, com transformação na fachada e espaços internos, desenvolveu iluminação e ventilação natural, adicionou dois andares e remodelou o terraço.
1905/ 1910
Projetou a Casa Milà – edifícios são metáforas da paisagem montanhosa e marítima da Catalunha. O imóvel é conhecido hoje como La Pedrera e é Patrimônio Mundial da Unesco.
1906
Muda-se para a casa-modelo do Parque Güell, onde vive quase 20 anos. Em 1963, foi transformada na Casa-Museu Gaudí.
1914
Decide deixar todos os projetos em andamento para dedicar-se apenas à obra da Sagrada Família.
1926
Em 7 de junho de 1926 é atropelado por um bonde. Idoso e vestido de forma simples, foi confundido com mendigo. Morreu três dias depois no hospital. O cortejo fúnebre percorreu a cidade até a Sagrada Família, onde seu corpo foi enterrado na cripta.
Uma exposição
pouco convencional
a
ara entender a densidade da obra de Gaudí é preciso entender o contexto cultural que ele viveu e como isso repercutiu em sua criação. A exposição Gaudí, Barcelona 1900, que abre ao público neste sábado, 27 de agosto, e segue até 30 de outubro, é inventiva porque leva para dentro de Museu de Arte de Santa Catarina (Masc) o universo artístico de Barcelona na virada do século 20, então uma das mais prósperas cidades do Mediterrâneo, com obras de artistas que simbolizaram o luxo burguês do modernismo catalão.
É inventiva também porque apresenta detalhes a partir da perspectiva de dentro do olhar do arquiteto. Já que não seria possível, claro, transportar para o Brasil um prédio inteiro, os curadores Raimon Ramis e Pepe Serra Villalba optaram por mostrar detalhes (para Gaudí, maçanetas das portas e detalhes ínfimos da mobília eram tão importantes quanto a fachada) e o processo de criação dele. Esses trabalhos somam 71 peças, dos quais 46 são maquetes (quatro em escalas monumentais) e 25 objetos e mobiliário. Parte desse acervo veio de navio e outra parte de avião.
A exposição é dividida em etapas não cronológicas: o modernismo catalão; Gaudí como criador e observador das formas da natureza, com móveis desenhados por ele; e finalmente o processo construtivo a partir das maquetes e estudos volumétricos. A imensa paleta de cores, tão evidente quando se visita in loco as edificações de Gaudí, não aparece tanto. O branco do gesso das miniaturas sugere que o visitante use a imaginação a partir, por que não, do próprio ponto de vista do criador.
Florianópolis é a primeira cidade do Brasil a receber a exposição. Depois, a mostra segue para São Paulo e Brasília. A vinda das obras é graças à parceria do Masc com o Instituto Tomie Ohtake, que no ano passado trouxe para a cidade exposição inédita de outro ilustre catalão, Joan Miró (1893-1983). Tem o patrocínio da Arteris e apoio do Governo do Estado, por meio da Secretaria de Turismo, Cultura e Esporte e da Fundação Catarinense de Cultura (FCC).
– Essa exposição é diferente, porque vai trazer um público acadêmico e interessado em engenharia e arquitetura. Tem relevância para arquitetos que estão se formando, afinal são eles que também influenciam no espaço urbano – diz a presidente da FCC, Maria Teresinha Debatin.
Pelo governo do Estado, foram investidos pelo menos R$ 500 mil em segurança, custos de manutenção e melhoria nas instalações do Masc e contratação de uma equipe de
arte-educadores para atuarem como guias. Se no ano passado o público pôde conhecer
a diversidade de formas e tonalidades de Miró, desta vez a experiência será diferente.
No lugar de quadros e cores, será uma imersão no universo criativo e racional de um gênio da arquitetura.
GUIE-SE PELO MUNDO DE GAUDÍ
Veja alguns dos destaques do que você vai encontrar na exposição Gaudí, Barcelona 1900
A virada do século, a burguesia e as artes
O Masc cedeu sua área de exposição permanente para que fossem apresentadas 42 obras, entre pinturas e objetos decorativos, feitos por artistas e artesãos da Catalunha. Esses trabalhos são como uma “fotografia” da época de Gaudí.
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O modernismo catalão e o luxo
A burguesia de Barcelona ostenta poder financiando a cultura. Já nas artes, artistas não pintam segundo o “real”, mas segundo a própria percepção. Artesãos passam a ter status de artistas. Há mudança do contexto cultural e também da cultura visual. É o modernismo catalão a serviço do luxo. O mobiliário exposto nesta seção sugere o tom da burguesia da época. Junto a elas, telas de Isidre Nonell (1872-1911), pintor que traz o conceito de efêmero e retrata não o luxo, mas a pobreza e o conceito de efemeridade.
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O belo é o útil
Gaudí propõe, sem saber, um modelo de fazer novo e acredita que o belo está associado ao uso.
Nessa área, estão expostas cadeiras ergonômicas, que se adequam às curvas do corpo humano.
Tem também portas de armários originais da Casa Batlló, puxadores e maçanetas.
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Testes
A exposição mostra como eram os estudos de Gaudí. Embora intuitivo, era bom matemático e por isso suas obras tinham tanta precisão. Há exemplos de testes da curva catenária, que ele aplica na Sagrada Família. Ele colocava cordas em suspensão e as submetia a pesos. Com isso, consegue as curvaturas internas da igreja, só que invertidas.
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Sagrada Família
O Templo Expiatório da Sagrada Família é a obra mais emblemática de Gaudí. A obra começou em 1883 e tinha previsão de término para 1926, quando se completam 100 anos da morte do arquiteto. Foi o projeto a que mais se dedicou. A exposição mostra perspectivas dessa obra-prima: maquetes, miniaturas das torres, uma reprodução da nave (cobertura) e estudos das colunas de duplo giro, que imitam o tronco de uma árvore.
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Maçaneta de artista contemporâneo à Gaudí mostra o trabalho artesanal e a dramaticidade espanhola com um coração partido
Mobília luxuosa da burguesia catalã
Tela de Isidre Nonell: pintor modernista que se recusa a retratar o luxo
Maquete da Casa Batlló
Porta original de armários
embutidos da Casa Batlló
Réplica de cadeira desenhada por Gaudí: para ele, o belo estava
ligado à ergonomia
Maquete da escola construída para filhos dos trabalhadores da construção da Sagrada Família
Parabolóide Hiperbólico: uma das superfícies mais usadas por Gaudí
Forma helicoidal imita ramos e troncos de árvores
Estudos sobre o arco catenário ou arco funicular. Modelo usado por Gaudí para calcular a estrutura das obras por meio de cordas e pesos
Réplica do
Templo Expiatório da Sagrada Família
Modelo das colunas de duplo giro
Miniatura de uma das torres do Templo Expiatório da Sagrada Família. A igreja tem 18 torres: 12 dos apóstolos, quatro dos evangelistas, e as torres dedicados a Jesus e à Virgem Maria. As estruturas são uma das propostas mais inovadoras de Gaudí: cônicas e circulares, foram projetadas com uma torção parabólica e conferem uma tendência ascendente a todas as fachadas.
AGENDE-SE
Exposição Gaudí, Barcelona 1900
QUEM SOMOS
Reportagem
Carol Macário
Edição
Cris Vieira
Edição digital
Cristian Weiss
Design e desenvolvimento
Aline Fialho
Imagens
Betina Humeres
Edição de vídeo
Fernanda Mueller
Quando: de 27 de agosto a 30 de outubro, de terça-feira a domingo, das 10h às 21h
Onde: Museu de Arte de Santa Catarina, no CIC (Avenida Irineu Bornhausen, 5.600, Agronômica, Florianópolis)
Quanto: R$ 10 / R$ 5 (meia). Entrada gratuita às terças-feiras. Venda na bilheteria do Teatro Ademir Rosa, no CIC. Grupos de escolas públicas e projetos sociais terão entrada gratuita mediante agendamento.
Como será a venda
de ingressos
Onde: bilheteria do Teatro Ademir Rosa, no CIC
Horário bilheteria: segundas e terças, das 13h às 20h (só venda antecipada), e de quarta a domingo, das 9h45min às 20h (antecipada ou para o mesmo dia)
Retirada ingresso gratuito: terças, das 9h45 às 20h, para visitação imediata – máximo de dois ingressos por pessoa
Agendamento: segunda a sexta, das 14h às 17h, exclusivamente pelo telefone (48) 3664-2633
Visitas mediadas: para grupos com no mínimo 15 e no máximo 20 pessoas, pelo telefone (48) 3664-2633. As visitas mediadas ocorrem de quarta a sábado. Às terças e domingos não há mediação.
Passeio virtual
por Barcelona
Quem visitar a exposição nos dias 27 e 28 de agosto e entre 1º e 4 de setembro terá a experiência de transitar virtualmente pelas ruas de Barcelona. Uma ação promovida pela Arteris, patrocinadora da mostra, propõe sessões interativas com óculos de realidade virtual dentro de um ônibus. O veículo circulará por Florianópolis, mas os passageiros vivenciarão Barcelona e os edifícios históricos projetados por Gaudí e outros pontos turísticos que fazem referência ao artista. Serão seis sessões gratuitas com duração de 15 minutos por dia. As vagas limitadas são militadas em 40 lugares por ônibus e a entrada é por ordem de chegada.