Augusto Ittner

O alemão de Joinville é mais discreto, não é tanto de falar dessa ancestralidade e tradição germânica na família. Não que ele não fale, mas a diferença está no tom, na forma de exteriorizar isso.

 

dilney cunha

Diretor do patrimônio histórico da Fundação Cultural de Joinville

Impactos da guerra

As consequências da Segunda Guerra Mundial – antes, durante e depois – também são aspectos que foram determinantes no que diz respeito à diferenciação entre os alemães de ambas as cidades. Enquanto em Joinville o fechamento de clubes tradicionais e a proibição da língua nativa foram fatores encarados mais facilmente em Blumenau houve resistência, justamente pelo fato de a cidade ter nú­cleos do partido nazista – algo que antes da guerra era totalmente permitido. O bairrismo blumenauense imperou, segundo Dilney Cunha, o que, embora tenha trazido alguns problemas à população – com pessoas presas, por exemplo – resultou em um sentimento de valor aos antepassados, independentemente da questão ideológica. Isso passado de pai para filho garantiu a continuidade dos costumes mesmo sete décadas depois da derrota do Eixo. Darlan Schmitt, mestre em História, aponta o que chama de “pseudogermanismo” como fundamental no contexto de diferenciação entre o joinvilense e o blumenauense.

– Muito embora tenha havido modismos específicos em Blumenau, como rodízio de pizzas, de sushi, e agora, por exemplo, com a onda gourmet, algumas coisas se mantêm, como comer uma cuca ou algo de origem alemã. Acho que a Oktoberfest tem papel fundamental nesse contexto. É um produto trabalhado muito bem ano a ano, que garante a continuidade desse modo germânico mesmo que o seu sobrenome seja o mais brasileiro possível. Joinville não conseguiu fazer isso – explica Schmitt.

Não há casas construídas no estilo enxaimel dando boas-vindas, não há um clube de caça e tiro em cada esquina nem descendentes de alemães falando dialetos alternativos no rádio pela manhã. Muito embora sejam resultado de uma análise mais superficial, essas três situações mostram os diferentes caminhos seguidos por Joinville na comparação com Blumenau como consequências de uma construção histórica desenrolada desde o fim do século 19.

Dizer que a hoje maior cidade catarinense é uma irmã mais nova que quis tomar outro rumo na vida para enriquecer pode até parecer uma analogia esdrúxula. Mas se encaixa perfeitamente no que ocorreu com a cidade. As duas colônias germânicas, que, embora tenham sido construídas com base nas mesmas políticas, tomaram caminhos distintos não só em seus objetivos como também no comportamento dos habitantes.

Enquanto os imigrantes que vinham para a Manchester catarinense, logo no início da colonização, a partir da década de 1850, eram principalmente de Hamburgo, região da Pomerânia, ao norte da Alemanha, os de Blumenau eram predominantemente da Saxônia, ao leste. A informação é do pesquisador e diretor do patrimônio histórico da Fundação Cultural de Joinville, Dilney Cunha. Pode parecer algo pouco relevante, já que ambos traziam as mesmas características étnicas, porém a maneira de viver era diferente. Essa origem, aliada à nova localização geográfica e à influência de brasileiros vindos de outros Estados – até mesmo do sul de Santa Catarina e de São Francisco do Sul –, fez o joinvilense lentamente perder a ligação com as tradições germânicas, diferentemente do blumenauense.

– O alemão de Joinville é mais discreto, não é tanto de falar dessa ancestralidade e tradição germânica na família. Não que ele não fale, mas a diferença está no tom, na forma de exteriorizar isso. É claro que existe o discurso da germanidade, mas ele é muito mais discreto em comparação com outros pontos. Aqui a família gosta da cultura, reconhece, mas é indiferente, não faz questão de mostrar isso para o mundo – analisa Cunha.

As regiões de onde vieram os primeiros habitantes de ambos os locais também ditaram qual seria o foco do desenvolvimento econômico. Os que chegaram à Região dos Príncipes tinham como especialidade a agricultura, madeira e erva-mate – que depois gradativamente foram se encaixando com a indústria metalmecânica. Já os que vieram para o Vale do Itajaí conheciam melhor a produção têxtil – o que se mantém até hoje. Essa abertura do leque de Joinville atraiu pessoas de fora. Mesmo a cidade sendo um ano mais jovem do que Blumenau, conseguiu garantir uma expansão populacional e a liderança no Estado. O crescimento permitiu a mistura com outras culturas de diversas tradições na cidade.

Em menor escala, os descendentes de alemães de Joinville que insistem em manter os hábitos dos antepassados são mais raros. Um deles é William Huch, integrante do Grupo Folclórico Windmühle. Com um estande montado em plena Bierville, ele quer incentivar pessoas de todas as idades, inclusive as novas gerações, a preservar a cultura germânica com danças e jogos tradicionais. Um trabalho difícil: competir com a tecnologia e as opções de diversão que os jovens de hoje em dia têm.

– A gente acaba nadando contra a maré. Sem dinheiro e sem apoio, temos que fazer milagres para conseguir pessoas que tenham vontade de dar prosseguimento às tradições – diz Huch, que lamenta ha­ver apenas dois grupos de dança germânica em Joinville.

Esportes tradicionais também têm pouca adesão, como é o caso do bolão – ou kegeln, para os alemães. Originária da Alemanha, a modalidade (que muito se assemelha ao boliche) tem tradição em cidades como Rio do Sul, Indaial e Blumenau, inclusive com trabalhos de renovação, coisa que não acontece em Joinville. Eduardo Krueger, que joga pela Sociedade Glória, é uma exceção e conta que nas últimas três décadas o esporte perdeu praticantes e força na cidade.

— Renovação é algo bem complicado, até porque a população em geral desconhece. A cidade cresceu bastante, a cultura se misturou e o bolão, que não é popular, acabou decaindo, já que surgem outras opções de lazer para as pessoas. Mesmo assim temos resistido bravamente — pondera Krueger.

os povoados que deram origem a Joinville e Blumenau foram fundados com apenas um ano de diferença. Sob o comando do Dr. Blumenau, a comunidade do Vale do Itajaí ocupou o posto de maior colônia da América do Sul. Com o tempo, a irmã menor do Norte tornou-se mais rica e populosa.

O caderno Nós trocou repórteres entre as cidades para descobrir como as raízes germânicas influenciaram a personalidade desses catarinenses típicos

Alemão discreto

TEXTO | Marina Andrade

Há competição entre as nossas cidades desde o início da colonização. Dr. Blumenau já

se preocupava com os imigrantes que deveriam ir para sua colônia, mas acabavam habitando Joinville.

 

sueli petry

historiadora

Uma cidade que virou marca

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Mesmo com uma cultura bem diversificada, a imagem do alemão é a que mais costuma vir à cabeça de quem não é do Estado quando se fala em Santa Catarina. Isso é consequência do nosso contexto histórico e da forma como os germânicos construíram a colonização por aqui. Os imigrantes daquele país chegaram às terras catarinenses em 1829, loucos por uma vida nova, e encontraram o lugar ideal para isso. Começaram habitando São Pedro de Alcântara, na Grande Florianópolis, e depois, quando o governo brasileiro permitiu a migração interna, em 1836, espalharam-se por todos os cantos. Eram tantas opções de terras inexploradas, com rios, próximas ou não do mar, com morros ou mangues, que foi amor logo de cara.

A colonização de onde hoje é Blumenau começou antes do que a de onde atualmente fica Joinville. Dr. Blumenau, responsável pela criação da cidade que hoje leva seu nome, chegou a São Pedro em 1846 e conheceu as terras no Vale do Itajaí dois anos depois, em janeiro de 1848. Alguns alemães já moravam onde hoje está a cidade de Gaspar. Apaixonado, Blumenau comprou terras com um sócio – que depois abandonou o projeto – requereu outras por meio de uma lei que estimulava a colonização e voltou para a Alemanha para buscar umas 250 pessoas que ajudariam no projeto particular, patrocinado por uma sociedade de colonização do seu país. Voltou com 17 aventureiros – um deles era seu sobrinho.

E foi em meio à realidade de ter de lidar com a terra para sobreviver com menos recursos do que nos países de origem que começou a disputa por quem consegue mais que quem – que até hoje vivemos e de forma bem saudável. A historiadora Sueli Petry, que é de Blumenau, morou em Joinville e ainda tem parentes na cidade do Norte do Estado, conta, ou melhor, dá uma aula, sobre como a forma com que alemães desenharam as duas colônias nos explica muito de cada um dos municípios.

– Há competição entre as nossas cidades desde o início da colonização. Dr. Blumenau já se preocupava com os imigrantes que deveriam ir para sua colônia, mas acabavam habitando Joinville. Os colonizadores de Blumenau não eram agricultores. Eram mão de obra qualificada, como marceneiros, veterinário... e tiveram que aprender a lidar com a terra por aqui – explica a historiadora.

Sueli considera que as diferenças geográficas também contribuíram para a formação dos dois povos. Blumenau, que fica em um vale, era de mais difícil acesso. Assim a população acabou tendo contato mais restrito com outras colônias. Em Joinville, a área mais plana, com saída para o mar e para a serra, além do rio, estimulava a vinda de pessoas de outras regiões.

– Acredito que isso ajudou a desenvolver um senso comunitário muito forte em Blumenau. A dependência entre as pessoas que moravam naquela colônia era gigantesca. Em Joinville, era mais fácil ter acesso a outros locais, ter mais contato com outras culturas – diz Sueli.

Outro ponto levantado por ela é o fato de Blumenau ter sido uma colônia particular por cerca de 10 anos.

– Só entrava na colônia quem o Dr. Blumenau permitia e ele fez um livro de recomendações nesse sentido. Entre as curiosidades está o fato de que as moças que fossem morar na cidade não poderiam vir em busca de luxo e diversão, mas sim de trabalho, sendo boas esposas e mães. Também é importante destacar a situação das enchentes, que unia ainda mais o povo nos momentos de dificuldade – relata.

A força do associativismo blumenauense é percebida desde os primórdios da colônia. Foi desta forma que os colonizadores compraram o Vapor Progresso e criaram a sociedade de atendimento médico – que hoje é um hospital –, por exemplo.

Esta força da mobilização comunitária acompanhou a evolução da cidade e pode ser constatada em iniciativas cotidianas. Quem visita a cidade aos sábados pela manhã tem grandes chances de ser parado em um pedágio solidário. A prática, que ocorre em semáforos de todo o país, é muito recorrente em Blumenau. Nesses dias, quase sempre é possível ver grupos arrecadando recursos para diferentes entidades de apoio a crianças, doentes ou animais.

Disputa histórica

Comparar é mexer com egos. Ainda mais quando se olha para cidades tão bem-sucedidas como semelhantes. Tanto o alemão de Blumenau quanto o alemão de Joinville sempre vai defender sua cuca, seu marreco e o seu chope geladinho. Mas hoje, a principal diferença entre as

duas cidades é a forma como elas trabalham a marca do ser alemão. Blumenau expõe muito mais o fato. Especialmente na questão turística, basta lembrar que a cidade foi sede do Encontro Brasil Alemanha no ano passado.

A blumenauense Kátia Rossi Maes foi rainha da Oktoberfest 2010. Criada em uma família muito ativa nos clubes de caça e tiro – a mãe dela já foi rainha do tiro, o que significa que é a mulher com melhor pontaria da comunidade –, ela chega a se emocionar quando fala de como se sente por ser de Blumenau.

– Tenho muito orgulho da nossa cultura – diz.

Ela confirma o que a historiadora Sueli Patry afirma: em Blumenau, há um culto maior ao fundador, um sentimento muito intenso de pertencimento à cidade.

Norberto Mette, que é produtor de eventos e teve papel fundamental na mudança de perfil da Oktoberfest, acredita que esse ponto pode ser percebido na quantidade de clubes de caça e tiro na cidade. Segundo a federação, hoje são 11 cadastrados em Blumenau – em Joinville aparecem listados apenas três, mesmo número de Jaraguá do Sul.

– As diferenças entre o povo de Blumenau e o de Joinville são muito pequenas. Ambos são trabalhadores e sérios. O que percebo é que blumenauenses vão mais aos clubes de caça e tiro, o que faz deles mais festeiros – comenta Mette, que neste ano organizou a segunda edição da Bierville, festa que tem o propósito de recolocar Joinville no calendário das festas de outubro.

O empresário Ulrich Kuhn acredita que apesar de trabalhar a marca “ser alemão” de forma mais contundente, Blumenau ficou mais independente da Europa um pouco mais cedo. Ele, que tem um tio já falecido joinvilense, conta que antigamente os moradores da cidade do Norte eram mais apegados à cultura germânica no seu dia a dia, lendo jornais e acompanhando o cotidiano de lá com mais frequência.

– Via no joinvilense um alemão que fazia mais questão de manter as características europeias, como forma de ser e agir. Acredito que isso seja coisa do passado. Hoje vejo essa questão quase que equacionada. Blumenau trabalha mais a marca de ser alemão, mas isso pelo fato de Joinville ter também fortes influências de outros países. Blumenau teve a colonização feita predominantemente por alemães – diz.

Trabalhar a marca ajuda Blumenau a diversificar a economia. Com a crise têxtil, a cidade que tinha nesta indústria grande força desde a colonização, precisou vislumbrar novas possibilidades e acabou seguindo a tendência internacional de gerar mais vagas e negócios nos setores de serviço e tecnologia.

– Se é para comparar, vamos lá: o trânsito é caótico igual! – afirma de forma bem-humorada o empresário.