A variedade de línguas em Santa Catarina se deve principalmente à presença dos índios e à chegada dos imigrantes. Proibidos pela ditadura Vargas de se expressar se não em português, esses grupos viram os falares de seus antepassados quase desaparecer e ficar restrito ao meio rural. Mas a ideia de um país plurilíngue voltou a ser valorizada e cada vez mais municípios oficializam uma segunda forma de se comunicar

os 87 anos, o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Biguaçu, Leonídio

Zimmermann, prepara-se para lançar seu terceiro livro. Histórias do Passado irá se juntar a uma bibliografia que começou em 2011, com Minha Língua e Minha Alma, e continuou com Uma Carta para o Futuro, em 2015. Todos foram escritos em uma vertente abrasileirada do hunsrückisch (pronuncia-se “runsríquish”), trazido pelos colonos que em 1829 chegaram à região, na Grande Florianópolis, e até hoje falado em comunidades de Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Paraná e Espírito Santo.

 

— É para preservar a língua de nossos pais e avós — diz o autor dos já esgotados (no título original) Main Sprach und meine Seele e Ein Prief fir die Zukunft.

 

Muitos daqueles pioneiros que se estabeleceram em São Pedro de Alcântara vinham da região de Hunsrück, no Oeste da Alemanha. Entre eles, os Zimmermann, que depois se instalaram em Rio Farias, na vizinha Antonio Carlos, onde plantavam mandioca, laranja, banana, e cana-de-açúcar. Pertencente à quarta geração da família, Leonídio cursou apenas as duas primeiras séries do ensino fundamental. Mas o português ficava restrito à escola. Em casa, comunicava-se em hunsrückisch. Passar para o papel o dialeto aprendido com a mãe é que era complicado. Não há consenso nem sobre seu nome — alguns o chamam de hunsrik, outros preferem hunrisqueano —, quanto mais em como o grafar.

 

Em 2002, o jornalista Ozias Alves Jr. ofereceu ao ex-agricultor uma coluna em hunsrückisch no jornal local, do qual é um dos sócios. Não foi fácil convencê-lo. Segundo Alves, que assina cinco livros publicados na França sobre essa e outras línguas minoritárias (nheengatu, talian, xocleng e uchinaaguchi), os falantes das redondezas achavam que se expressavam errado, tanto que rezavam, cantavam e (se sabiam como) escreviam em hochdeutsch, o alemão oficial. Após relutar, Leonídio topou o desafio. E não parou mais de registrar suas memórias, pensamentos e causos, perpetuando um dialeto que estava fadado ao esquecimento. De seus 11 filhos, só três o falam.

O hunsrückisch incorporou fonemas e expressões do português, pomerano e italiano. Sua variação gaúcha (riograndenser) apropriou-se de diversos verbos em português, acrescentado-lhes terminações em alemão: embrieren, namorieren, realisieren, ofendieren, respondieren. Para escrevê-lo, Leonídio empresta noções de gramática e palavras inexistentes devido à estagnação da língua. A convite de um leitor de Jaraguá do Sul, ele visitou a Alemanha em 2011. Lá, seu falar tinha semelhanças com o encontrado em Mainz, capital da Renânia-Palatinado, à serra de Hunsrück, no mesmo Estado. Apesar de algumas dificuldades, quando abriu a boca Leonídio entendeu e foi entendido.

 

Já seus escritos podem ajudar a aumentar não só a compreensão, como o alcance do hunsrückisch. Se padronizado e subordinado a regras gramaticais, o dialeto terá condições de integrar o currículo escolar. Uma das cidades mais interessadas em que isso aconteça é Antonio Carlos, a primeira do país a adotá-lo como segunda língua oficial. Cerca de 80% de seus 8 mil habitantes descendem de alemães. O hunsrückisch sobrevive graças aos mais velhos, principalmente moradores das “linhas” e “travessões” da zona rural. A ideia é reverter esse quadro.

 

— O idioma é um forte elo com nossas origens. Se nada fizermos para resgatar, preservar e desenvolvê-lo, corremos o risco de, em mais uma ou duas gerações, testemunharmos o seu desaparecimento. A oficialização foi o primeiro passo para que sua manutenção não dependa somente da tradição oral — analisa o secretário municipal de Educação e Cultura, Altamiro Antônio Kretzer.

 

Filósofo, doutor em História e professor, ele era vereador quando propôs o projeto, em 2010. Além das motivações lógicas, havia uma razão afetiva para tal:

 

— Minha avó só falava em hunsrückisch. Lembro dela muito triste porque não conseguia mais se comunicar com os netos mais novos — conta Kretzer, garantindo que ainda consegue falar alguma coisa no dialeto.

pesar de ser um dos países mais multilíngues do mundo, o Brasil sempre reconheceu e deu visibilidade apenas ao português. As primeiras vítimas foram as línguas indígenas. A estimativa é de que havia 1.078 delas na época do descobrimento; atualmente giram em torno de 200, muitas das quais faladas por populações ínfimas e com poucas chances de resistir ao avanço do idioma dominante. Conforme o antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997), 67 foram extintas só na primeira metade do século 20 — mais de uma por ano.

 

As línguas dos imigrantes permaneceram relativamente intactas até o presidente Getúlio Vargas baixar um decreto coibindo sua fala e manifestações culturais e posse de materiais que aludissem aos países de origem dos estrangeiros, em 1938. No artigo “Pluringuismo no Brasil: Repressão e Resistência Linguística”, o professor Gilvan Müller de Oliveira, do Instituto de Investigação e Desenvolvimento da Política Linguística (Ipol), explica que essa “campanha de nacionalização” promovida pelo Estado Novo (1937-1945) atingiu maior dimensão em Santa Catarina e do Rio Grande do Sul.

 

Nesses dois Estados, a estrutura minifundiária e a colonização homogênea de certas regiões asseguraram a reprodução do alemão e do italiano. Por meio do conceito jurídico de “crime idiomático”, o governo federal fechou escolas, jornais e clubes e mandou queimar livros em línguas que não o português. Usar qualquer outra língua era expressamente proibido, sob pena de perseguição, prisão e tortura. Esse processo ameaçava um bocado de gente: dos 50 milhões de habitantes do Brasil verificados pelo Censo de 1940, 650 mil eram fluentes em alemão e 460 mil em italiano.

 

Inibidas pelo terror e pela vergonha, essas línguas foram perdendo sua forma escrita e seu lugar nas cidades, tornando-se sobretudo orais e praticadas nas zonas rurais. Na gestão do governador e depois interventor Nereu Ramos em Santa Catarina, surgiram as “áreas de confinamento”, eufemismo para os campos de concentração que recebiam os descendentes de alemães que insistissem em falar seu idioma. Um desses campos funcionou dentro do que hoje é a Prefeitura Universitária, no campus da UFSC, em Florianópolis.

 

A repressão era tanta que, em Jaraguá do Sul, o prefeito de então chegou a censurar inscrições estrangeiras em lápides e mausoléus — medida depois estendida para todo o Estado. Nem o inofensivo “hier ruht in frieden” (“aqui descansa em paz”) para acompanhar a última morada do defunto era permitido. Em 1942, o 32o Batalhão de Caçadores do Exército, composto em sua maioria por soldados transferidos do Nordeste, foi deslocado para Blumenau para “ensinar os catarinenses a serem brasileiros”. Como se não bastasse, a corporação ainda estimulava crianças a denunciar os pais que falassem alemão ou italiano em casa, criando sequelas psicológicas para esses cidadãos que, em sua grande maioria, eram e se consideravam brasileiros, ainda que se expressando em outro idioma.

redemocratização do país e a Constituição de 1988 abriram espaço para o ressurgimento, embora tímido, de um Brasil plurilíngue. Dois artigos da Carta Magna conferem aos índios o direito às suas línguas, pelo menos no âmbito escolar. Em 2002, o município de São Gabriel da Cachoeira (AM) cooficializou três dos dialetos falados no seu território: o baniwa, o nheengatu e o tukano, criando um precedente para o multilinguismo brasileiro.

 

— Havendo falante, não importa quantos, é língua e tem que ser reconhecida — observa a coordenadora do Ipol, Rosângela Morello.

 

A reboque, outras cidades passaram a valorizar os dialetos de seus colonizadores. O mais recente dos 19 municípios brasileiros a ingressar nesse movimento é Nova Erechin, no oeste catarinense, que desde agosto do ano passado tem como segunda língua o talian — resultado das conversas entre os italianos que se dirigiram à região Sul no final do século 19, dos quais 95% eram provenientes do Vêneto e da Lombardia.

 

— É um vêneto aportuguesado — simplifica a especialista.

 

Como Santa Catarina recebeu imigrante de tudo quanto é lugar, língua é o que não falta para recuperar. Derivada do italiano há também o trentino, em Nova Trento. Do alemão, aparecem o vestfaliano (no Sul do Estado, em torno de Braço do Norte), o pomerano (de Pomerode, que preferiu adotar o alemão como idioma cooficial), o plattdeutsch (Grande Florianópolis) e o suábio (em Entre Rios, no Oeste do Estado) — além do hunsrückisch, cuja variação gaúcha monopoliza a comunicação em São João do Oeste.

 

Entre os indígenas, estão o mbyá-guarani, kaingang e xocleng. Este último, de acordo com Ozias Alves Jr., “o único 100% catarinense, pois esse povo vive no Estado há séculos”.

 

— Pode existir mais. De repente alguém descobre que a família tal, que mora lá no cafundós do morro de não sei onde, no interior de determinada cidade, fala um dialeto diferente, que eles não sabem o nome e que nunca foi estudado pela linguística — cogita o pesquisador.

 

Inclusive por isso, a equipe do Ipol não se arrisca a estimar o número de falantes que haveria de cada língua — ou seria dialeto? Para Rosângela, essa distinção é movida mais por critérios geopolíticos:

 

— O que a gente acharia se alguém decidisse acabar com o português para privilegiar outros idiomas mais falados no mundo? — questiona.

 

De fato, ensina o professor Felício Wessling Margotti, que coordenou o Atlas Linguístico do Brasil em Santa Catarina, o português era um dialeto do norte da península ibérica, fruto da fusão do latim vulgar do invasor romano com o galego local (falado na região onde hoje é a província da Galícia, Espanha). Só virou língua oficial em 1290, quando Portugal já estava com quase todas as suas fronteiras definidas.

 

 

Opróprio alemão formal (hochdeustsch), a raiz do hunsrückisch, foi “inventado” por Martinho Lutero, o pai da reforma protestante na fé cristã. Para traduzir a Bíblia do latim no século 14, ele misturou o vocabulário de três vertentes faladas no Norte e centro da Alemanha, já que não havia uma língua unificada no país. Ou seja, Lutero verteu o livro sagrado para um “alemão” que nem ele mesmo falava, elevado nos séculos seguintes ao status de idioma nacional.

 

— É como se alguém usasse português, espanhol e francês para traduzir um livro. Não viraria uma nova língua? — provoca Alves.

 

O hunsrückisch, mesmo mais antigo, acabou perdendo espaço para o alemão de Lutero. Agora, arrisca reviver em Antonio Carlos. O secretário Kretzer informa que está sendo feito um censo em parceria com o Ipol para identificar a real situação do dialeto na cidade. Depois de pronto, o levantamento servirá de base para uma tentativa de padronizar a língua escrita e integrá-la à rede municipal de ensino. Tomara que não demore muito, para Leonídio ter mais gente com quem conversar.

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