anta Catarina é na realidade um Estado com três capitais, uma localizada no litoral, outra no Norte e uma terceira no Sul.”

 

A frase acima encerrava um texto publicado pelo jornal O Estado em 19 de junho de 1975 com a manchete “Oposição não quer Florianópolis como Capital”. O autor era um deputado federal que vivia o quarto mês de seu primeiro mandato em Brasília: Luiz Henrique da Silveira (MDB). Para o emedebista, Santa Catarina precisava de uma capital que “centralize as comunicações com outras cidades, não isolando-as”. Citava também as preferências futebolísticas dos catarinenses, “mais gaúchos” ao Sul ou “um misto de paranaenses e gaúchos, torcendo pelo Coritiba e o Atlético”, ao Norte. De acordo com a reportagem, a bancada estadual do MDB estaria disposta a desencadear uma campanha pela transferência da capital.

A reportagem ganhou destaque de capa e, no dia seguinte, um editorial em que o jornal criticava a posição do deputado. Em pleno regime militar, a publicação ligada à governista Arena espezinhava um expoente da oposição. Na mesma edição, Luiz Henrique negava com veemência que tivesse concedido a entrevista publicada na véspera.

 

“Jamais fiz tais afirmações, tratando-se inegavelmente de maldade de quem, com o interesse de desmerecer-me e desmerecer o meu partido, forjou a informação.”

Luiz Henrique nunca se livrou da pecha de que era contra Florianópolis. Isso não impediu que 27 anos depois fosse eleito governador do Estado. Aliás, é possível que tenha ajudado. O grande mote da campanha do peemedebista era a necessidade de descentralizar a administração e desconcentrar o poder político acumulado em Florianópolis. No cargo, criou 27 secretarias espalhadas pelo interior e priorizou obras de acesso a pequenos municípios. Foi reeleito governador e chegou ao Senado, sempre discursando pela descentralização, sempre com o voto no interior do Estado, especialmente Joinville, compensando derrotas em Florianópolis.

A eficácia eleitoral do discurso foi garantida pelo contexto histórico e econômico catarinense, em que diferentes regiões cresceram de forma independente em relação à capital. Florianópolis não é a maior nem a mais rica cidade de Santa Catarina, requisitos praticamente obrigatórios na relação entre capital e interior. Em todo o país, apenas Vitória, no Espírito Santo, também não é a cidade mais populosa do Estado que comanda. Com uma diferença importante: a cidade capixaba é a quarta em população, mas as três primeiras fazem parte de sua região metropolitana.

 

Em Santa Catarina, Florianópolis teve que conviver com o fato de não ser a principal força econômica nem a maior população – o espaço foi ocupado na história primeiro por Lages, no Planalto Serrano, e depois por Joinville, no Norte. Uma situação que tornou permanente certa rivalidade entre a Ilha de Santa Catarina e o interior do Estado e uma discussão que ressurge de tempos em tempos: a tal mudança da capital, citada e negada por Luiz Henrique ao jornal O Estado. Uma ideia que já esteve muito próxima de se concretizar algumas vezes com o passar do tempo.

 

m virtude de sua situação na Ilha, Florianópolis está fatalmente condenada a ficar para trás, tanto como em outros ramos da economia social, pois é sabido que só prosperam amplamente as capitais que ocupam o centro de suas regiões. Em futuro próximo a capital terá forçosamente de ser deslocada para qualquer ponto do continente, talvez para o município de São Francisco, talvez para Lages.”

A previsão do escritor Virgílio Várzea em 1900 ainda não se concretizou – e talvez nunca se concretize. Mas registra um histórico sentimento de inadequação entre catarinenses e a capital. Foi justamente no começo do período republicano que a mudança da capital para o interior esteve mais fortemente em pauta. A declaração do escritor era o senso comum: seja pela falta de segurança de uma ilha isolada frente a possíveis ataques, seja pela incapacidade de se constituir como grande polo econômico do Estado, por rivalidades regionais e ou pelo preconceito entranhado em cidades que enxergam na Ilha de Santa Catarina o destino improdutivo de impostos arrecadados em outros rincões, Florianópolis estava fadada a deixar de ser a capital de todos os catarinenses.

 

Naqueles tempos, um dos defensores da ideia era o governador Hercílio Luz. Durante o primeiro mandato, em 1895, a Assembleia Legislativa chegou a aprovar sem maiores discussões um projeto para transferir a capital. Inicialmente, a proposta era para a formação de uma comissão que escolhesse um lugar para edificar a nova cidade “no Vale do Rio Itajaí, entre a raiz da Serra Geral e a cidade de Blumenau”. Durante a tramitação, a localização mudou para o Planalto Serrano, onde hoje fica Curitibanos. Estava posta a divisão econômica do Estado da época: a rural Lages, com a maior população, e a industrial Blumenau – cidades que Florianópolis via desenvolverem-se à distância. Curitibanos levou a melhor porque estava no centro de Santa Catarina.

 

A nova capital seria construída em um modelo que hoje chamaríamos de parceria público-privada. Seria dada uma concessão ao empreiteiro Pedro de Freitas Cardoso para fazer a estrada de ferro ligando Florianópolis à futura localidade, assim como a construção da cidade. Em troca, administraria a ferrovia, teria isenções fiscais e poderia vender lotes e imóveis na nova capital. O projeto não deu certo. O contrato foi rescindido em 1904.

 

A experiência malsucedida fez Hercílio Luz mudar o caminho. Em vez de transferir a capital, decidiu transformar a acanhada Florianópolis em uma cidade digna de abrigar o comando do Estado. O plano foi posto em ação quando ele voltou ao governo, em 1918, e deu início a importantes obras de urbanização e saneamento, como a canalização do rio da Bulha e construção da avenida que até hoje leva seu nome no centro da cidade. O mais ambicioso ponto do plano era a construção da ponte Independência, ligando a Ilha de Santa Catarina ao continente.

– Foi um processo de consolidação da Capital, com as obras de urbanização e a construção da ponte. Os planos de Hercílio Luz previam também a construção de ferrovias ligando Florianópolis às principais cidades do interior – afirma o historiador Jali Meirinho.

 

Iniciada em 1922, a ponte pênsil foi concluída quatro anos depois, após a morte de Hercílio Luz, e recebeu seu nome, contra vontade manifesta em vida pelo idealizador. Na época, foi gasto o equivalente ao orçamento anual do Estado com a construção da ponte, em um financiamento internacional quitado apenas nos anos 1970. Gastos que devem ter reforçado o senso comum nas demais cidades de que trabalhavam para bancar os luxos de uma ilha de servidores públicos. Até hoje é citada em Joinville como lenda a resposta mal-educada que o governador Adolfo Konder, que levou adiante as obras de urbanização de Florianópolis, teria dado ao prefeito joinvilense Max Colin após um pedido por recursos.

“Bebam menos chope e paguem mais impostos.”

 

Para o folclore político e construção das rivalidades, pouco importa que Konder e Colin não tenham sido contemporâneos nos cargos. De qualquer forma, Florianópolis se consolidou como capital ao final da República Velha. A ideia da transferência adormeceu, mas não morreu.

 

construção de Brasília, no final dos anos 1950, reacendeu debates sobre cidades planejadas como capitais. Ao mesmo tempo, a industrialização do país transformava Santa Catarina. No Censo de 1960, Lages ainda aparecia como cidade mais populosa do Estado, com 120 mil habitantes. Florianópolis vinha em seguida, com 97 mil e certa vantagem sobre Joinville e Blumenau, ambas com pouco menos de 70 mil. Os joinvilenses eram um fenômeno recente: 10 anos antes, a cidade não estava entre as mais habitadas do Estado.

O município do Norte do Estado manteve taxas de crescimento e ganharia a condição de maior população de Santa Catarina nos anos 1970, a bordo do crescimento da indústria metal-mecânica. A força econômica e o volume do colégio eleitoral deram a Joinville protagonismo político que ainda não tivera. Apenas dois governadores com base na cidade foram eleitos em todo o período republicano: Luiz Henrique nos anos 2000, Pedro Ivo Campos (PMDB) nos anos 1980.

 

Assim como havia acontecido com Lages, que entrou em decadência durante o processo de industrialização, o fortalecimento de Joinville se deu à margem da capital Florianópolis. O próprio plano rodoviário nacional a partir dos anos 1940 ajudou a desarticular as regiões catarinenses ao dar maior atenção às rodovias que cortavam o Estado, como as BRs 116 e 101. Para os catarinenses do interior, era mais fácil chegar a Porto Alegre ou Curitiba.

 

– Não se efetivou uma ligação mais forte da capital com o interior do Estado, que permanecia isolada dos grandes centros regionais. Conformou-se um sistema econômico que não se integrou ao nível do Estado, mas que desenvolveu uma dinâmica de interligação das cidades-polo regionais com os outros Estados do país – avalia o economista Lauro Mattei, professor da UFSC.

Ao mesmo tempo, os bônus que colheu por ser capital do Estado deram a Florianópolis condições de desenvolvimento equiparável ao das outras regiões. Mattei destaca que durante quase 50 anos, a cidade foi a única a ter uma universidade federal no Estado, além de concentrar toda a administração pública. A partir dos anos 1970, a capital também se consolidou como destino turístico por causa das praias e belezas naturais.

– Isso foi possível, em grande parte, pela existência dessa infraestrutura anterior – aponta Mattei.

 

São justamente esses benefícios que a cidade tem por ser capital do Estado que renovaram o chamado “movimento centralista”, que defende a transferência do poder estadual para uma cidade na região central. A localização seria semelhante à do frustrado projeto aprovado pela Assembleia Legislativa em 1895: a região de Curitibanos. Os motivos, desta vez, seriam opostos. Se antes a ideia era levar a capital para mais perto de uma região mais rica, os novos defensores pleiteiam o oposto: levar desenvolvimento para uma região que empobreceu diante das outras. Exatos 100 anos depois, o tema voltaria a ser votado pelos deputados estaduais catarinenses.

 

 

Constituição de Santa Catarina traz em seu texto como uma espécie de cicatriz uma determinação que marca a estranha relação entre os catarinenses e sua capital. Está lá, no terceiro artigo das disposições constitucionais transitórias, que um plebiscito seria realizado em 7 de setembro de 1993 para decidir se o centro político e administrativo do Estado continuaria instalado em Florianópolis ou seria transferido para Curitibanos.

 

Os catarinenses nunca foram às urnas decidir onde queriam que morasse o seu governador, mas estiveram muito perto disso. Na legislatura seguinte à dos deputados constituintes, Sérgio Grando (PCB) conseguiu aprovar um projeto para impedir a realização do plebiscito, mantendo a capital na Ilha. Acabaria eleito prefeito de Florianópolis na eleição seguinte, em parte graças ao feito.

 

Os centralistas não desistiram. Em 1995, Onofre Agostini (PFL) apresentou proposta para que o plebiscito fosse realizado. Tinha convicção na aprovação, mas viu o projeto ser arquivado em uma das comissões temáticas da Assembleia. Inconformado, levou ao plenário o pedido de desarquivamento. O resultado foi emblemático: um empate em 16 a 16. Coube ao então presidente Pedro Bittencourt (PFL) desempatar a questão. Ele votou pelo arquivamento do projeto.

– Não houve derrota, só empate. Se não estivessem ausentes outros companheiros que são favoráveis à mudança, teríamos vencido – disse Agostini ao Diário Catarinense após a votação, citando Ivan Ranzolin (PPB), Adelor Vieira (PFL) e Reno Caramori (PPB).

 

O tema voltou a ecoar nas galerias da Assembleia Legislativa em 2011, em pronunciamento em plenário do deputado estadual Romildo Titon (PMDB) – um dos 16 centralistas de 1995. A defesa da mudança havia ganhado um novo argumento: as dificuldades de mobilidade urbana em Florianópolis e os gastos previstos para solucioná-los, incluindo a proposta de construir-se uma outra ponte.

“É um valor realmente muito grande, que dava para se pensar um pouquinho se não seria um custo menor mudar a capital realmente para o meio do Estado de Santa Catarina, para locais que tenham condições perfeitamente de abrigar uma nova cidade, uma nova capital.”

 

Titon tentava reavivar o tema, talvez para retomá-lo quando assumisse a presidência da Assembleia Legislativa, que se preparava para disputar dois anos depois. Ele seria eleito mas, denunciado pelo MP-SC como integrante de uma suposta quadrilha especializada em fraudar licitações para construção de poços artesianos, não conseguiu impor uma agenda legislativa. Desde então, o tema não frequentou mais o parlamento catarinense.

 

 

desejo de ver a capital catarinense longe da Ilha de Santa Catarina ainda vive em pequenos grupos organizados e em diversas pessoas espalhadas pelo Estado. Em 2011, o jornalista Edenir Silva lançou a Comissão Pró-Transferência da Capital. Era um grupo de pessoas saindo das sombras após dois anos de discussões para fomentar o debate. Os constantes anúncios de grandes obras em Florianópolis eram o estopim do novo movimento pela mudança, que calculava em R$ 15 bilhões os gastos futuros para continuar viabilizando a cidade como capital – fruto de obras sempre citadas, mas nunca iniciadas, como túneis subaquáticos, novas pontes, teleféricos etc.

 

O grupo queria que a futura sede fosse localizada no eixo compreendido entre as cidades de Lages, Correia Pinto, Ponte Alta e Curitibanos, o que permitiria a todos os catarinenses ficar à mesma distância da capital. Prometeram iniciar uma série de debates em diversas cidades do Estado e fazer uma campanha pela eleição de deputados estaduais comprometidos com a causa em 2014. Nada aconteceu.

– Tivemos um grande baque porque um empresário tinha garantido dinheiro para a gente tocar isso, mas na hora ele negou fogo – relembra Edenir Silva.

 

Sem o oculto braço empresarial, a Comissão Pró-Transferência da Capital promete reorganizar-se este ano e reiniciar, em tons mais modestos, a campanha pelo plebiscito determinado pela Constituição e nunca realizado. Se tiver sucesso, pode contar com o voto do servidor público Francisco Venção, de São Bento do Sul. Há anos ele tenta arregimentar adeptos para a causa – entre  família, amigos e colegas do PT, partido a que é filiado. Aos 64 anos, não acredita que verá o sonho realizado, mas continua tentando.

– Muitas pessoas concordam, muitas discordam porque acham que isso jamais passaria em um plebiscito.

 

Se depender do atual presidente da Assembleia Legislativa, Gelson Merisio (PSD), o plebiscito para decidir sobre o futuro da capital do Estado continua como letra morta na Constituição. Natural de Xanxerê, ele reconhece que boa parte do interior vê a capital como uma cidade de servidores públicos que poderia contribuir mais para o Estado, mas que isso é mais uma avaliação do que um fato concreto, já que hoje Florianópolis conta com um importante polo tecnológico e o turismo. Mudar a sede do poder apenas trocaria o alvo da cobrança.

 

– Projeto de mudança de capital, se existir, é uma bobagem. Os problemas apontados aqui seriam apontados em qualquer outra cidade que fosse a capital. Florianópolis comparada com as demais capitais é uma cidade pequena, é menor do que Joinville, é compatível com outras cidades catarinenses. Entre os iguais, a cobrança é mais forte.

 

Esta aí um fato que nenhum plebiscito pode mudar. Contextos históricos, econômicos e políticos fizeram de Santa Catarina um Estado único no país. Um lugar que tem na prática sete capitais. E uma cidade em que mora o governador.

 

 

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QUEM SOMOS

Dalmo Vieira Filho

(1953)

 

UPIARA boschi

Repórter

 

Nascido em Vacaria (RS), na Grande Lages, foi adotado por Florianópolis aos 12 anos e descobriu a rivalidade entre interior e capital quando morou em Joinville. Ainda tenta entender.

 

upiara.boschi@

diariocatarinense.com.br

Oscar Niemeyer

(1907-2012)

 

Ben Ami Scopinho

Ilustrador e infografista

 

Urbanoide gerado na capital paulista,

decidiu se reaproximar da natureza e adotou Floripa como segundo lar, onde continua explorando as infinitas possibilidades

das linhas e cores.

 

benami.scopinho@

diariocatarinense.com.br

Antoni Gaudí

(1806-1860)

 

EMERSON GASPERIN

 

Na primeira capital em que

morou, era pequeno demais para se preocupar com isso. Na segunda, vivia ocupado demais para se orgulhar disso. Na terceira, está velho demais para ficar pensando nisso.

 

emerson.gasperin
@diariocatarinense.com.br

LIna Bo Bardi

(1914-1992)

 

JULIA PITTHAN

 

Nascida em uma grande

cidade com cabeça de província, aprendeu que ares cosmopolitas costumam soprar nos mais diferentes cantos – e não importa muito se estamos no interior ou numa capital.

 

julia.pitthan
@diariocatarinense.com.br

Le Corbusier

(1887-1965)

 

ALINE FIALHO

 

De todas as expressões que já usou para endereçar seus destinos – capital, interior, fronteira, coração do Estado e tantas outras –, sua favorita é “vou pra fora”, que em gauchês significa ir para a casa do sítio.

 

aline.fialho
@diariocatarinense.com.br