Na direção da vida

No ano de 2016, a cada semana, em média, uma pessoa tirou a própria vida em Joinville. A prevenção da tragédia está no diálogo com quem a gente ama, na observação de sinais de que algo não está bem e no tratamento de doenças como a depressão

Imagine que você sofreu um acidente e fraturou um braço ou quebrou o pé. O caminho natural é ir ao hospital, fazer exames e, por meio de radiografias, identificar o problema. A dinâmica é semelhante no caso de uma doença – uma gastrite ou uma pneumonia, por exemplo. A depressão, no entanto, não aparece quando o paciente é exposto ao raio X, nem é detectada com uma amostra de sangue, mas é uma doença que precisa de tratamento como todas as outras. Ignorar os sintomas é arriscado e, em alguns casos, pode ser fatal: o agravamento no quadro de depressão e de outros transtornos psíquicos e emocionais é a principal causa de suicídios. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), cerca de 300 milhões de pessoas sofrem de depressão no mundo, e pelo menos 800 mil tiram a própria vida a cada ano. Ou seja, uma a cada 40 segundos. No ano passado, Joinville registrou o mais alto número de suicídios da história da cidade: 53 pessoas tiraram a própria vida. Em 1996, quando estes dados começaram a ser computados, foram 22 pessoas e, dez anos depois (em 2006), 21 mortes deste tipo entraram na lista anual da Secretaria Estadual de Saúde. Até agora, o ano com registro mais alto havia sido 2013, com 48 suicídios em Joinville. O tabu criado em torno da morte voluntária, com a convicção de que a vítima tem total consciência para compreender e calcular o resultado, é o mais perigoso elemento entre todas as combinações de causas para o suicídio. A falta de conhecimento é, por isso, a primeira que precisa de “recuperação”: a depressão e os outros transtornos devem ser compreendidos por toda a sociedade para que o número de vítimas desta doença diminua e, por consequência, o número de suicídios também. As mortes por suicídio são atos doentios, sem glamour ou heroísmo. Abalam famílias, desestruturam lares e multiplicam o sofrimento dos que ficam. Histórias de indivíduos que tenham tirado a própria vida sempre envolvem tristeza, revolta e culpa. Afinal, alguém só comete um ato tão brutal quando está em intenso sofrimento, a ponto de não ver mais salvação. Falar sobre suicídio ainda é um tabu. Mas conversar sobre o assunto, entender o fenômeno e estar atento a quem a gente ama são o jeito mais eficaz de se evitar a tragédia. Só com a percepção dos sintomas a tempo para o diagnóstico e o apoio das pessoas mais próximas do paciente é possível que as políticas públicas para tratamento de doenças como a depressão se tornem efetivas. Para que isso aconteça, é importante entender que o suicídio não é uma escolha racional, assim como as tentativas de suicídio não são uma forma irresponsável de chamar a atenção. – A pessoa que comete suicídio ela quer “se matar”, mas não quer morrer. A morte em questão é da dor. Ela quer acabar com um sofrimento insuportável – explica a psiquiatra Regina Martins Pinto. Ela é autora do livro Depressão: uma Abordagem Prática, lançado em parceria com o psiquiatra Ataíde do Nascimento, e atua há 35 anos como psiquiatra da infância e da adolescência, boa parte deste período em Joinville. – A depressão é a doença do século 21. Neurocientistas se basearam em estudos estatísticos e epidemiológicos para fazer esta previsão, e é verdade: temos hoje pessoas deprimidas em todos os cantos do planeta – afirma Regina. Em 2017, a morte por suicídio no mundo já é maior do que a soma de mortes em guerras, homicídios e desastres naturais. E a perspectiva da OMS para o futuro não é nada animadora: a estimativa é de que, em 2020, este número chegue a 1,2 milhão – um suicídio a cada 20 segundos. Texto Claudia Morriesen Edição Genara Rigotti ilustrações Robson Brüning design Juliano de Souza

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Sinais Como identificar sintomas que, combinados, podem ser indícios de depressão e de comportamentos suicidas Crianças n Choro fácil. n Pensamento negativo. n Lapsos de memória. n Pensamentos catastróficos. n Baixa autoestima. n Disfunção alimentar. n Desregulação do sono. n Dificuldades de interação. Adolescentes n Mentiras e infrações compensatórias. n Ausência nas aulas. n Provocação aos professores e outras 
figuras de autoridades. n Baixo limiar/frustração. n Dificuldades para ouvir não. n Automutilação. n Colocar-se em situações de risco. n Isolamento. n Mudança abrupta de comportamento. Adultos n Sentir-se triste, durante a maior parte do dia, 
quase todos os dias. n Perder o prazer ou o interesse em atividades rotineiras. n Irritabilidade. n Desesperança. n Queda da libido. n Disfunção alimentar e do sono 
(perda ou aumento de peso). n Sensação de cansaço e fraqueza o tempo todo. n Baixa autoestima. n Ansiedade excessiva. n Dificuldade de concentração, de tomar 
decisões e de memória. n Pensamentos frequentes de morte e suicídio.
Crianças e jovens sofrem com a depressão Como ajudar Saiba o que fazer se alguém 
falar sobre cometer suicídio* O que fazer n Ouvir atentamente, ficar calmo. n Entender os sentimentos da 
pessoa (empatia). n Dar mensagens não verbais 
de aceitação e respeito. n Expressar respeito pelas 
opiniões e valores da pessoa. n Conversar honestamente 
e com autenticidade. n Mostrar sua preocupação, 
cuidado e afeição. n Focalizar nos sentimentos 
da pessoa. O que não fazer n Interromper muito frequentemente. n Ficar chocado ou muito emocionado. n Dizer que você está ocupado. n Tratar o paciente de maneira que o coloca numa posição de inferioridade. n Fazer comentários invasivos 
e pouco claros. n Fazer perguntas indiscretas. pedido de socorro Centro de Valorização da Vida n Telefone: 141 ou (47) 3422-0800 n E-mail: joinville@cvv.org.br n Endereço: rua Jaguaruna, 13, Centro n Site (para chat e skype): www.cvv.org.br n Horários: todos os dias, das 
7h30 às 11h30, e de segunda 
a sexta das 19 às 23 horas. A paciente mais jovem que a psiquiatra Regina Martins Pinto já atendeu em seu consultório com depressão ainda não tinha completado dois anos. Ela utiliza o exemplo para reforçar que a doença não precisa estar ligada apenas a acontecimentos tristes ou a situações de estresse para ser desenvolvida. É por isso que é possível encontrar pessoas que passaram por grandes tragédias que, apesar do sofrimento, não apresentam o distúrbio; e outras que, mesmo sem problemas atípicos, podem ficar deprimidas e até buscar o suicídio. O rosto do bebê atendido por Regina nunca saiu da sua memória: era de imensa tristeza, como se ela não conseguisse aprender a sorrir. A percepção de que uma criança que ainda nem sabe falar está com depressão exige conhecimento e atenção dos pais, professores e pediatras. No caso desta paciente, ela tinha dificuldades para desenvolver a capacidade de brincar e imunidade baixa. – O mundo dela era restrito à mãe, ela só queria viver naquele círculo. E, pelo menos uma vez por mês, era internada com infecções graves, por causa da baixa imunidade – recorda a psiquiatra. Há poucos casos de histórias de suicídio ou de tentativas entre crianças com menos de dez anos e, nos episódios já registrados, raramente elas acontecem sem indução de outra pessoa mais velha. Isso porque é só a partir desta idade – entre os nove e os 11 anos – que a noção de morte fica realmente compreensível. Mesmo assim, Regina chama atenção para outros comportamentos perigosos entre as crianças, como colocar-se em situações arriscadas e provocar autolesões. Se perceberem os sintomas, é importante que os pais e responsáveis tirem produtos químicos, como os de limpeza e medicamentos, e utensílios cortantes, como facas, do acesso das crianças. Na adolescência, a taxa de suicídio tornou-se tão alta que esta faixa etária faz parte do grupo considerado com potencial de risco, junto com a população indígena e os moradores de rua. Entre os jovens de 15 a 29 anos no mundo, há mais mortes por suicídio do que por HIV e doenças respiratórias. Para as meninas de 15 a 19 anos, é a principal causa de mortes em todos os continentes, exceto na África. Meninos da mesma idade morrem mais em acidentes rodoviários, mas o suicídio vem em segundo lugar na lista. Entre os adolescentes, o comportamento de risco pode envolver o uso de álcool e drogas, a automutilação e a prática constante de infrações. Colocar-se em posições de risco, querendo chegar ao extremo em algumas situações, também figuram como ponto de atenção: não foi à toa que uma prática criminosa como o “jogo” Baleia Azul tornou-se fenômeno mundial ao repassar desafios por meio das redes sociais, tendo como desfecho a morte do “jogador”. – O adolescente fica se testando, para ver até onde vai a força dele, física e mental – avalia a psiquiatra Regina. Segundo a médica, existem três situações que podem levar o adolescente a tentar tirar a própria vida: o apelo (quando acreditam que, a com a própria morte, ele servirá de exemplo para sociedade e alguma coisa poderá mudar no mundo); a fuga (quando não enxerga motivos para continuar vivendo e pensa que a morte pode levá-lo a um lugar melhor, sem dor e tristeza); ou o desafio (quando ele testa limites, como no caso do “jogo” Baleia Azul).
Doença do “futuro” Os transtornos mentais são, principalmente, associados a fatores como a química cerebral e mudanças hormonais, mas há outros elementos que podem contribuir para o desenvolvimento destas doenças. Vivenciar experiências traumáticas ou de estresse, como abusos e violências; ter condições de saúde limitantes, dores crônicas, síndromes e tumores; e aspectos sociais, como problemas financeiros, local de moradia e gênero, também estão entre os fatores de risco associados ao comportamento suicida. Privação de sono, sedentarismo, maus hábitos alimentares e a falta de contato com a natureza, quer dizer, hábitos comuns na sociedade atual em que a maior parte da população vive em áreas urbanas, também estão na lista de itens que, em conjunto, podem estar relacionados às causas da depressão. Estas situações ajudam a explicar o porquê de, apesar da conscientização sobre o suicídio como problema de saúde pública, a taxa destas mortes continua aumentando. Para o psiquiatra e professor do curso de medicina da Univille Cláudio Simões, há explicações multifatoriais para o aumento, como condições culturais e sociais. – Há décadas, as estatísticas mostram que em países industrializados o índice é maior. A sociedade globalizada e a grande quantidade de informações que recebemos também influenciam – avalia. Além disso, ele acredita que os registros dos órgãos de saúde mostram números mais altos porque houve aumento no número das notificações. Segundo Cláudio, há pouco tempo era comum que, a pedido das famílias, a causa da morte fosse identificada de outras formas pela perícia, como ingestão excessiva de medicamentos ou acidente. O professor defende que, em certa medida, os dados sobre suicídios mostrem crescimento porque a quebra do tabu permite mais veracidade nos relatórios – uma evolução que agora precisa garantir que os pacientes não cheguem ao limite de doenças como a depressão. – Existem certos preconceitos em nossa sociedade sobre as doenças mentais, em função dos tratamentos psiquiátricos do passado. É um estigma cultural que vem aos poucos se atenuando – avalia ele.
Onde buscar ajuda - Tratamento pelo SUS Básico Para tratar casos leves a moderados de depressão e transtornos de humor a porta de entrada são as unidades básicas de saúde (UBS), que possuem equipes de saúde mental. O atendimento varia com base no quadro do paciente, que passa inicialmente por uma palestra e escutas individuais, como uma primeira avaliação que irá fazer o encaminhamento para o tratamento necessário, que pode ser com o psicólogo da unidade ou em centros de atenção psicossocial. Tratamento É feito pelo serviço especializado no Pronto-acolhimento Psicossocial, no qual o paciente terá atendimento psicológico e psiquiátrico. Ocorrem três ou quatro encontros e, após avaliação, o paciente pode continuar o tratamento ou ser reencaminhado para o psicólogo da unidade de saúde. A primeira consulta precisa do encaminhamento do psicólogo da UBS. Semi-internação Uma equipe multidisciplinar trabalha com tratamento intensivo em casos de surto ou situação de pré-surto, quando o paciente ainda não precisa ser internado, mas passa todos os dias da semana no Centro de Atenção Psicossocial (Caps) com atividades terapêuticas, atendimento psiquiátrico e encontros com assistente social. A busca pode ser espontânea ou por encaminhamento (exceto o Caps infantil, que atende apenas com encaminhamento). Internação A internação ocorre quando os sintomas psicóticos podem fazer com que a pessoa seja um perigo para si mesma ou para outras pessoas. O objetivo é que a internação seja breve, apenas como contenção do paciente, para depois o tratamento continuar no Caps. Em Joinville, ela ocorre no Hospital Regional Hans Dieter Schmitd e no Hospital Infantil Dr. Jeser Amarante Faria (em caso de menores de 18 anos).
76 tentativas em nove meses A coordenadora da Rede de Atenção Psicossocial de Joinville, Cínthia Friedrich, aponta que o apoio dos pais e responsáveis no tratamento dos jovens pacientes é indispensável, mas que isso nem sempre acontece. – Muitos pais tentam tapar o sol com a peneira. Eles não aceitam e não conseguem ver o tamanho do problema – afirma Cínthia. Nos últimos quatro anos, doze adolescentes entre dez e 19 anos cometeram suicídio em Joinville, segundo informações da Secretaria Estadual de Saúde. Os dados de tentativas e de automutilação só começaram a ser listados em Joinville no segundo semestre do ano passado, mas já correspondem a 76 tentativas entre julho de 2016 e março de 2017, e a 69 casos de automutilação nesta faixa etária. Apesar de receberem notificações para buscar tratamento gratuito no Centro de Atenção Psicossocial (Capsij) Cuca Legal, mais da metade das famílias destes jovens nunca procurou o serviço. – É comum que, diante da tentativa de suicídio de um jovem, as pessoas critiquem dizendo que era só pra chamar a atenção. Está tentando chamar a atenção, sim, e é porque não está bem. É um pedido desesperado para que alguém o ajude – avalia Regina Martins Pinto.

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O maior grupo de risco Segundo as estatísticas, a maior semelhança entre as pessoas que mais cometem suicídio é ter nascido homem. Eles fazem parte do grupo de risco em qualquer idade e situação. Em Joinville, das 53 mortes registradas em 2016 por suicídio, 45 eram homens. Entre 2012 e 2016, a cidade teve 197 suicídios e, destes, apenas 42 eram mulheres. Neste período, dez meninos adolescentes tiraram a própria vida, enquanto uma morte de menina com idade de 15 a 19 anos foi contabilizada. Quando observadas outras cidades da região Nordeste de Santa Catarina, entre 2012 e 2016, todos os suicídios registrados em Araquari, Balneário Barra do Sul, Itaiópolis, Massaranduba e Schroeder foram de homens. No Estado, no ano passado, foram contados 660 casos, dos quais 507 eram de pessoas do gênero masculino. Em todo o mundo, as mortes por suicídio são pelo menos três vezes maiores entre os homens do que entre mulheres. Acredita-se que isso aconteça porque, tanto na cultura ocidental quanto na oriental, o gênero masculino está ligado a papéis e características que impedem a busca por ajuda e a possibilidade de expressão dos sentimentos de tristeza, angústia e medo. As mulheres – que praticam tentativas de suicídio três vezes mais – costumam aceitar mais facilmente a possibilidade de um transtorno emocional, além de ter redes de amizade mais fortes e se engajarem em atividades familiares e sociais até o fim da vida, o que garante sentimento de participação na sociedade até a terceira idade, faixa etária que registra muitos suicídios de homens. – As mulheres tentam mais [o suicídio], mas geralmente utilizam formas menos violentas, como medicamentos, que facilitam o salvamento. Já os homens o praticam com armas de fogo ou enforcamento – afirma o professor e psiquiatra Cláudio Simões Claudio.

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