Há um ano, o olhar cabisbaixo, a carequinha e o semblante desesperançado de um garoto de cinco anos de idade começaram a dar lugar a bochechas rosadas, topetes com gel e uma alegria de quem já não tem mais limitações para correr, pular, brincar. Sem saber ao certo o que era o câncer, João Vitor Loch, de Palhoça (SC), aprendeu cedo a lutar contra a doença. Exames, internações e quimioterapias eram parte do dia a dia do menino desde os três anos até que, no dia 20 de agosto de 2014, um transplante de fígado marcou um recomeço. João Vitor e a doadora Tatiana Solonca, de 34 anos – que mesmo sem conhecer o pequeno aceitou o desafio de emagrecer 30 quilos para doar parte do seu fígado – , hoje têm uma vida normal.

 

Unidas em um momento de dificuldade, as histórias desses dois catarinenses seguem entrelaçadas. O pedaço de Tatiana que vive dentro de João os torna mais fortes, suas vidas são compartilhadas e o laço formado entre eles vai além das marcas no corpo. Um ano depois do transplante, os dois constroem novas memórias e dividem momentos felizes, como uma caminhada ao ar livre, um passeio no parque de diversões e o primeiro dia de aula de João Vitor.

 

Saiba como vivem João Vitor e Tatiana Solonca hoje, relembre a trajetória deles e entenda como se tornar um doador de órgãos.

Reportagem

GABRIELA WOLFF

 

Edição

ANA PAULA BITTENCOURT,

DINA FREITAS E

INGRID SANTOS

 

Design e desenvolvimento

FÁBIO NIENOW

 

Fotos e vídeos

BETINA HUMERES

Relembre a história de luta

 

João Vitor e Tatiana percorreram um longo

caminho de superação juntos

Ouça os depoimentos das jornalistas

 

A história de João Vitor e Tatiana foi contada por:

Gabriela Wolff,

do jornal Hora de Santa Catarina

Kíria Meurer,

da Rede Globo

Laine Valgas,

da RBS TV

SC se destaca em doações,

mas enfrenta desafios

SC tem taxa

de doação de 30,6 pmp, enquanto o Brasil registrou 13,4 pmp

no primeiro semestre

de 2015

anta Catarina, sob o comando do médico Joel de Andrade, que está à frente da SC Transplantes, tem se destacado na taxa de doação. Enquanto a média brasileira de doadores efetivos por milhão de população (pmp) é de 13,4, em SC o índice é de 30,6 – semelhante ao de países com as maiores taxas do mundo, de acordo com dados divulgados no Registro Brasileiro de Transplantes de julho.

 

O coordenador da SC Transplantes explica que a mudança começou em 2005, com a reestruturação do sistema e mudanças no modelo de gestão. Atualmente, em todos os 40 hospitais de alta complexidade do Estado atuam membros da Comissão Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos e Tecidos de Santa Catarina. São médicos, enfermeiros e assistentes sociais preparados para agir com eficiência, porém, sem perder a sensibilidade ao lidar com as famílias dos potenciais doadores.

A grande filosofia é oferecer para as famílias a possibilidade de doação. Não é uma obrigação ou responsabilidade. A gente precisa ter delicadeza e sensibilidade, ou então perde o processo.

Explica Joel

Apesar do excelente sistema, Santa Catarina enfrenta dificuldades semelhantes ao restante do país. A recusa familiar é o principal obstáculo para a efetivação das doações. Além disso, não há no Estado equipes capacitadas para realizar cirurgias que envolvam todos os tipos de órgãos. A operação de João Vitor e Tatiana, por exemplo, foi feita em São Paulo, uma vez que Santa Catarina não realiza transplantes pediátricos. Nesses casos, em que o procedimento não pode ser feito em SC, os órgãos são enviados para outros Estados.

A taxa pmp registra o número de doadores a cada milhão de população. A meta da Associação Brasileira de Transplantes é alcançar o número de 20 pmp até 2017. A Espanha, por exemplo, país que mais registra transplantes no mundo, tem taxa de 37 pmp.

Brasil em sinal de alerta

De 4.714 potenciais doadores em 2015, foram efetivadas 1.356 doações

até junho

de 2015

e janeiro a junho de 2015, foram realizados 3.759 transplantes de órgãos, 16.601 de tecidos e 907 de medula óssea no Brasil, números que estão longe de atender à demanda. Pela primeira vez, desde 2007, houve uma diminuição no número de doadores efetivos, na taxa de potenciais doadores e também nos casos de transplante de rim, fígado e de pâncreas.

 

A meta inicial da Associação Brasileira de Transplantes (ABTO) para 2015 era uma taxa de 17 doadores efetivos por milhão de população (pmp), no entanto, devido aos baixos resultados do semestre, a meta passou a ser de 15 a 15,5 pmp. Na opinião do médico Paulo Pêgo Fernandes, diretor da ABTO, os principais desafios para reverter esse quadro são: a melhora da rede de saúde pública e o acesso da população a informações sobre o assunto.

Na espera por uma nova chance

32 mil pessoas esperam por

um órgão

no Brasil

e acordo com dados do Registro Brasileiro de Transplantes, 32 mil aguardam na lista de espera por um transplante no país. Cada Estado possui um sistema individual, organizado pela respectiva Secretaria de Saúde. A ordem de inclusão na fila não garante prioridade no atendimento. Entre os critérios para definição do receptor estão compatibilidade, estado de saúde do paciente, ordem na fila e localização.

 

Em Santa Catarina, após a confirmação da morte encefálica de um potencial doador, paciente de uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI), um profissional conversa com a família para verificar se há interesse na doação, conforme explica o médico coordenador da SC Transplantes, Joel de Andrade.

 

Se a família autorizar, o órgão é transportado para o local onde está o receptor, que é selecionado com base em um banco de dados que interliga informações de todas as regiões do Estado. Caso não exista um receptor em SC, o órgão é inserido no Sistema Nacional, que o disponibiliza para outros Estados. No caso de negativa das famílias, a Central de Transplantes encerra o processo.

iferentemente do transplante feito entre João Vitor e Tatiana – chamado intervivos, em que o doador, mesmo consciente dos riscos, aceita submeter-se à cirurgia –, a maior parte dos transplantes é realizada com órgãos de pessoas que já morreram. Essa situação foi vivida pelo empresário Jócio Martins, de Biguaçu (SC). Quando enfrentava a maior dor da vida e mal conseguia aceitar a morte do filho Tiago Jócio Martins, então com 20 anos, precisou decidir se doaria os órgãos do jovem.

 

Tiago Martins andava de skate com os amigos em Governador Celso Ramos (SC), quando caiu e bateu a cabeça. Foi levado inconsciente para o hospital e, assim que a família chegou ao local, recebeu a notícia de que o jovem havia tido morte cerebral. A mãe do rapaz preferiu não opinar sobre a possível doação dos órgãos e deixou a decisão para o marido. Foram dois dias até que ele desse uma resposta.

 

Na véspera do Natal de 2012, Jócio entrou no Hospital Universitário (HU) em Florianópolis e assinou, com lágrimas nos olhos, o formulário de autorização da doação dos órgãos do filho. O fator decisivo foi uma conversa com a namorada do rapaz, que lembrou ao sogro que Tiago era doador de sangue e que, por isso, provavelmente também seria favorável à doação dos órgãos.

Pai decide doar órgãos do filho

Como funciona a doação após a morte

Como ser um doador

S

D

D

D

Eu digo para as famílias falarem sobre esse assunto, mesmo que não seja agradável. Se alguma vez meu filho já tivesse manifestado esse desejo, acho que seria mais fácil tomar a decisão. Na hora eu mal conseguia pensar direito e, por mais que os médicos explicassem que não tinha mais jeito, a gente pensava que poderia acontecer um milagre.

Diz Jócio

Dois anos e meio depois, a dor pela ausência do jovem permanece, mas o pai diz que se sente aliviado de saber que pessoas foram salvas com os órgãos do filho.

Doação em vida

Após a morte

QUAIS ÓRGÃOS PODEM SER DOADOS

Um dos rins, parte do fígado, parte do pulmão (situações excepcionais), parte do pâncreas (situações excepcionais) e medula óssea.

 

QUEM PODE DOAR

O doador vivo é qualquer pessoa saudável e juridicamente capaz, que concorde com a doação, sem que haja comprometimento de sua própria saúde. O candidato passa por uma série de exames físicos e psicológicos para atestar se está apto a ser um doador. É necessário ter autorização judicial para doar, exceto em casos de parentes até quarto grau ou cônjuges. No caso de medula óssea, o candidato deve cadastrar-se no Banco de Doadores do seu Estado e será consultado sobre a doação caso seja compatível com algum receptor.

 

RISCOS

Ao manifestar o desejo de ser doador em vida, o candidato recebe informações sobre os riscos do procedimento à sua saúde e assina um termo em que afirma estar ciente de possíveis complicações em decorrência da cirurgia, conforme explica o médico Paulo Chapchap, coordenador do programa de transplantes de fígado e superintendente de estratégia corporativa do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo (SP).

QUAIS ÓRGÃOS PODEM SER DOADOS

Coração, pulmão, fígado, pâncreas, intestino, rins, córneas, veias, ossos e tendões.

 

QUEM PODE DOAR

Não é preciso fazer registro em cartório ou no documento de identidade, basta comunicar o desejo à família. Apenas ela pode autorizar a doação, após a confirmação da morte encefálica.

MORTE CEREBRAL OU ENCEFÁLICA

 

A morte encefálica é a incapacidade do cérebro de manter as funções vitais do organismo, e o estado clínico é irreversível. Para não haver dúvidas, existe um rígido protocolo para o diagnóstico. Dois médicos de áreas diferentes – um neurologista e um neurocirurgião – examinam o paciente, que é submetido também a um exame complementar que confirme os testes clínicos.

"

"