Desfolha-se o outono de 2013. É tempo de introspecção. A família de Iracema e Dirceu reflete nos costumes a forte ligação com a natureza

Terezinha nasceu e foi criada no mato. O umbigo dela nutriu um pé de erva-mate, em uma troca com a planta que com seu cultivo garantia trabalho para os pais recém-casados. Assim sucedeu-se com Isaura, Sebastião, Catarina, Amélia, Maria de Lourdes e João Maria. Todos têm ligação com a terra, representada em pés de araucária, cedro, imbuia, canela, araçazeiro, peroba. Prática que se seguiu com a chegada de Moisés, José, Mateus, Silvana e Vitória. Como em um pomar, em forma de pessegueiro, joão-bolão, coqueiro, bergamoteira, laranjeira.

 

Um pouco adiante da casa da família, um imponente eucalipto guarda por Dalva, sete anos, a penúltima filha. Um limoeiro próximo à casa da família também é símbolo desse costume. A planta é a protetora do caçula Isaque. Foi ali que há seis anos, Dirceu enterrou o umbigo e o "companheiro".

RAÍZES| Um imponente eucalipto representa Dalva

CRENÇA | Um pé de limoeiro guarda o caçula Isaque

INSTRUMENTO | Dirceu usou a tesoura para cortar o umbigo no parto dos filhos mais novos

Nesses partos mais recentes, Dirceu usou uma tesoura. Diferente do nascimento de Terezinha e dos filhos mais velhos, tempos em que cortava o cordão umbilical com facão.

 

Naquela época, viviam nos campos trabalhando nas plantações de erva-mate e a ferramenta era a única disponível. Para evitar doenças como tétano, passava a lâmina no fogo da lenha. Até incandescer.

 

Na hora do corte do umbigo, colocava em prática outro aprendizado:

 

– É um palmo, dois dedos e um nó com barbante.

 

Assim, a saúde do filho estaria garantida.

Há consenso sobre as reais necessidades da família. Comida e material escolar são prioridades. Com eles não se encontram roupas de marca, camisetas de grife, aparelhos eletrônicos.

 

Os meninos nunca entraram em um shopping center. O que possuem é comprado pelos pais no acanhado comércio da cidade, onde não existem produtos de luxo.

 

Também passam à margem de eventos divulgados pela mídia. É o que demonstra Mateus, 12 anos. Em 9 de junho de 2013, a Arena do Grêmio, em Porto Alegre, tinha sido palco de um amistoso entre as seleções do Brasil e da França. A partida antecipava a Copa do Mundo, no ano seguinte.

 

A Seleção venceu por três a zero com transmissão para todo o país. Três dias depois, Mateus, no sexto ano escolar, nem sabia da partida.

 

– A gente não vê muita TV para economizar luz.

 

 

 

Só vai à cidade em situação de muita necessidade. Como fez na véspera do feriado de 1º de maio de 2013. Iniciava-se o quinto mês sem que os benefícios do Programa Bolsa Família fossem depositados naquele ano. Os Canofre estavam em apuros. A renda dependia da lavoura.

 

Entre 2011 e 2012 uma estiagem tinha maltratado a agricultura em Santa Catarina. Faltou alimento para as vacas, a produção de leite caiu e os preços na cidade dispararam.

 

Sem produção na roça, Dirceu não conseguia trocar mercadorias no comércio local. A prática do escambo estava suspensa. O benefício era mais urgente que nunca. Titular do cartão do programa, Iracema convenceu-se de que somente ela poderia minimizar a situação.

 

Junto com o marido e o filho caçula, foi para a cidade. Buscou o prédio do Bolsa Família, onde outras mães e filhos esperavam. Saiu desapontada. O  sistema fora do ar não permitia a leitura do cartão. Iracema seguiu para a agência lotérica e entrou na fila.

 

Aparentava nervosismo. Não saberia o que fazer quando chegasse sua vez. Em uma das mãos, o cartão; em outra, um pedaço de papel dobrado. Iracema tinha que digitar a senha, mas informou a atendente que não sabia como fazer. Pelo buraco do vidro entregou-lhe um papel com os números. A funcionária explicou que não poderia fazer isso por ela:

 

– Mas eu não sei escrever os números – respondeu Iracema.

 

Atrás, uma mulher se dispôs a ajudá-la. O sistema informava que o cartão era inválido. Iracema recebeu nova orientação: ir até a agência da Caixa, um pouco adiante.

 

No caminho, encontrou-se com o marido, que a esperava. Entraram na agência, mas a leitura do cartão confirmava o erro. Uma funcionária disse que deveriam voltar ao prédio do Bolsa Família para reclamar: lá foram orientados a esperar mais 10 dias. Iracema parecia se sentir culpada pelas idas e vindas.

 

– Gente xucra como eu se sente muito mal nesse vaivém. Mas faço isso pelas crianças.

 

A família esperou mais um mês para que a situação do cadastro se normalizasse e voltasse a receber o benefício.

Embaraço

Não possuem carrinhos, bonecas, jogos eletrônicos.  Folhas de árvores, gravetos, vasilhas ganham novo sentido. Coisas típicas do universo camponês. Divertem-se entre saltos e correrias. Sobem em galhos, pescam no açude, banham-se no rio.

 

A singularidade do ambiente faz com que vivenciem o desenvolvimento dos animais e das plantas. Do nascimento dos pintinhos à morte por frio das vacas; do florescer do pessegueiro à praga que devastou o canteiro de ervas.

 

Aprendem como os efeitos de fenômenos meteorológicos atingem suas vidas. A geada queima a plantação, o vendaval destelha a casa, a estiagem seca a terra.

 

São ensinadas sobre como acima das vontades existem obrigatoriedades. Igual às meninas, quando formam uma roda a girar no terreiro. Mas que precisam largar-se, quando a mãe a caminho da roça manda que cuidem dos mais novos.

 

Assim como os meninos, quando nas águas barrentas do açude buscam carpas e piavas. Cientes do que lhes diz o pai: na agilidade das mãos depende o alimento da família.

A infância das crianças de Iracema e Dirceu gira num ritmo diferente. Sem comandos industrializados nas mãos, dão novo sentido ao que encontram ao redor

No universo da extrema pobreza, os filhos de Iracema e Dirceu não impõem expressões como "eu preciso disso" ou "eu quero isso". Uma realidade diferente da de outros jovens da mesma idade

Iracema se define como uma mulher do mato. Gosta de ficar em casa, cuidando dos filhos, fazendo pão para a família

OLHAR DE MATEUS

Durante esta reportagem, o menino se mostrava curioso sobre as imagens. A percepção dele se revelou com uma máquina fotográfica nas mãos. O garoto experimenta os recursos de um equipamento digital e revela ângulos do cotidiano da família

a infância difícil, Dirceu guarda também na memória o inusitado de acender o lampião para que a avó, montada a cavalo, saísse no breu da noite a fazer partos. Valeu-lhe de inspiração. Desde que há 31 anos nasceu Terezinha, a primeira filha que tem com Iracema, ele é pai e parteiro. São 14 partos.

 

Não foi só a influência da avó Rosa Pinheiro de Moraes, parteira que era, que tornou Dirceu igualmente parteiro. A vida no meio rural fez de Iracema uma mulher acanhada. Cresceu com vergonha de mostrar o corpo a um estranho. Mesmo que fosse um médico. Por isso, não fez exame pré-natal em nenhuma gravidez.

BOLSA VAZIA | Com problemas no cadastro, Iracema ficou sem receber o benefício

Reportagem

ÂNGELA BASTOS

É repórter especial e há 20 anos trabalha no Diário Catarinense. Para esta reportagem multimídia, dedicou dois anos e sete meses de apuração.

angela.bastos@diario.com.br

Fotografia

CHARLES GUERRA

Repórter fotográfico e há 15 anos atua no Grupo RBS. Registrou em imagens o cotidiano da família protagonista desta reportagem.

charles.guerra@diario.com.br

Edição

JULIA PITTHAN

julia.pitthan@diario.com.br

Design e desenvolvimento

FÁBIO NIENOW

fabio.nienow@diario.com.br

Edição de vídeos

LUCAS AMARILDO

lucas.amarildo@diario.com.br

Direção de vídeos

LÉO CARDOSO

leo.cardoso@diario.com.br

Trilha sonora original

 

WAGNER SEGURA

Trilha sonora

TÁCIO VIEIRA

GUSTAVO RODRIGO DE SOUZA

WAGNER SEGURA

Tradutores

ÂNGELA INÊS RAUBER

CATARINA SIARLI KORMANN

EBERHARD JOSEF ALBERT

E-BOOK

GALERIA

COMPARTILHE

www.diario.com.br

EXPEDIENTE

WEBDOC