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Geral  | 03/11/2012 09h01min

Em um década, 28 milhões de brasileiros deixaram a condição de extrema pobreza

Família de Pelotas é exemplo da efetividade dos programas de redução da miséria implantados pelo governo federal

Joice Bacelo / Pelotas  |  joice.bacelo@zerohora.com.br

Aos cinco anos, Niquele Lucas era o retrato da miséria no Brasil. A menina de futuro incerto foi fotografada em novembro de 2002 sob uma lona onde morava com os cinco irmãos e comia sobras que a mãe encontrava no lixo ao perambular pelas ruas centrais de Pelotas, no sul do Estado. Dez anos depois, a lona virou casa. O lixo, carne fresca. Adolescente, Niquele conquistou a dignidade. Da infância, restou só a timidez. A miséria se transformou em ascensão social para ela e 28 milhões de brasileiros que, na última década, deixaram a condição de extrema pobreza.

Em 2002, a família de Niquele sobrevivia com os R$ 30 por mês que a mãe ganhava do governo por manter duas das crianças na escola. Menos da metade dos R$ 70 de renda per capita, limite do Ministério do Desenvolvimento Social para definir miséria e ponto de partida para o lançamento do programa Fome Zero, que prometia estancar os níveis de indigência no país.


Há dez anos, família de Niquele (de amarelo) vivia em condições precárias
Foto: Nauro Júnior, Agência RBS

Nove meses depois de ser lançado em um município do Piauí onde a maioria das pessoas comia farinha nas três refeições do dia, o projeto declinou. Ou, como diz o governo, se transformou. Passou da promessa de um fundo de recursos contra a fome para programa de distribuição de renda. Conforme o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o Bolsa Família foi responsável por 13% da queda da desigualdade no Brasil.

A maior parte da mudança, porém, foi pelo aumento do trabalho remunerado. Pesquisas do Ipea mostram que 76% do crescimento da renda no país foi produzido pelo avanço na geração de emprego. Só no Rio Grande do Sul, de acordo com a Fundação de Economia e Estatística (FEE), o índice de pessoas em extrema pobreza hoje é de 19% — caiu pela metade em 10 anos.

Cadastrada em programas sociais desde o extinto Fome Zero, a família de Niquele hoje soma os R$ 204 concedidos via Bolsa Família aos R$ 356 que Carla — a chefe da família Lucas — ganha trabalhando em uma cooperativa de reciclagem. Ainda é pouco, mas o suficiente para superar a linha de corte da extrema pobreza. No Estado, segundo dados da FEE, mais de 2 milhões de pessoas — 20% da população — vivem com renda de até meio salário mínimo (R$ 311) atualmente. O percentual chega a 34,7% no Brasil.

Mas para muitos, como a família Lucas, a vida melhorou. Eles trocaram a barraca por uma casa de tijolos obtida por meio de um projeto habitacional do governo, na periferia de Pelotas. Têm água encanada e luz — que permitem a Niquele fazer o que mais gosta: assistir a novelas. E o mais importante: sempre tem arroz e feijão à mesa, carne aos finais de semana e, às vezes, torta de bolacha na sobremesa.

— Eu gosto de carne assada no forno. Antes a gente não comia isso — lembra Niquele, que ainda encara a vida olhando para o chão, como sempre fez.

O novo cardápio da família Lucas é um retrato do aumento progressivo na renda mensal. Entre os gaúchos, os índices de segurança alimentar vêm crescendo consistentemente. Na última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), de 2009, o percentual de adultos que respondeu que em algum momento havia ficado sem alimentação caiu de 6% para 3,1%. Entre as crianças, o índice baixou de 4,2% para 2%. No Brasil, a compra de alimentos pelas famílias beneficiadas com o Bolsa Família, de acordo com estudo da Universidade de Brasília, teve aumento de 79% nos últimos anos.

Atualmente, o programa tem 13,7 milhões de famílias cadastradas. O investimento anual é de R$ 20 bilhões — 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB) do país. O índice, segundo o Ipea, é pequeno e torna o programa um projeto de baixo custo e, ao mesmo tempo, de grande impacto social. Mas para especialistas, a fase da distribuição de renda já passou. É preciso avançar em outras esferas sociais.

ENTREVISTA: Ely Mattos, pesquisador da FEE

O pesquisador da Fundação de Economia e Estatística (FEE) Ely Mattos constata que os programas de complemento de renda cumpriram seu papel de retirar milhares de pessoas da condição de extrema pobreza. Mas frisa que agora é necessário priorizar a criação de oportunidades e investir em educação. Niquele é a perfeita ilustração da tese de Mattos.

A adolescente estuda. Aos 15 anos, deveria estar no Ensino Médio. Com dificuldade de aprendizado, cursa a 6ª série do Ensino Fundamental em uma escola pública próxima de casa. Ela própria reconhece que a dedicação aos estudos é o próximo degrau para transformar outra vez seu futuro.

Com 1m60cm e 54 quilos, Niquele diz não ter sonhos. Mas o olhar de quem guarda muito sofrimento na memória emana uma certeza: não quer passar pelo que a mãe encarou para criar os filhos.

— Com estudo a minha filha vai conseguir um bom emprego. Eu já consigo enxergar isso. A Niquele não vai precisar do lixo para colocar comida na boca dos filhos dela — sonha a mãe, Carla, quebrando o silêncio diante da timidez da filha.

Zero Hora – De que maneira os programas sociais impactaram na vida dos brasileiros nesses últimos 10 anos?

Ely Mattos – Eu não conheço nenhum país com processo de desenvolvimento um pouco mais estabelecido que não tenha lançado mão de programas assistencialistas. É uma maneira de começar, é uma maneira de sair da inércia. No Brasil, o complemento de renda resolveu muitos problemas: as pessoas conseguiram comprar remédio, comer melhor e pensar de maneira mais adequada, como conseguir um emprego, por exemplo. Mas não dá mais para ficar só nisso, o Brasil tem feito o dever de casa nesses últimos anos, mas agora está na hora de mudar o nível de dificuldade do exercício.

ZH – O que deve ser feito a partir de agora?

Mattos – O Bolsa Família precisa deixar de ser manchete. A manchete agora tem que ser qualificação e não mais o complemento de renda, como ainda acontece. Estudos mostram que — diferentemente da discussão que se formou logo no início do programa — as pessoas que são beneficiadas não se acomodaram, hoje se pode dizer que isso é mito. O Bolsa Família criou uma energia, só que essa energia precisa ser reforçada daqui para frente. Está na hora de o Brasil eleger a sua prioridade.

ZH – E qual é essa prioridade?

Mattos – A prioridade tende para a educação. A primeira infância define todo o processo de cognição da criança. Então se a pessoa passou por necessidade na infância, se estudou em uma escola muito ruim, se não aprendeu direito a tabuada ela provavelmente não conseguirá se tornar um profissional de ponta. Nos últimos cinco anos tem surgido estudos de avaliação de oportunidade, e aí estamos mal na foto. Ainda é muito fugaz, estamos criando emprego com pouca qualificação. Por isso a necessidade de estabelecer uma rede de qualificação infantil.

A transformação dos programas sociais, em 10 anos:

Fome Zero - Inspirado em uma iniciativa norte-americana dos anos 30, nasce o Fome Zero. O programa elaborado no primeiro ano do governo Lula surge com a pretensão de erradicar a pobreza no país. Lançado no Piauí, teve como primeira ação um cartão alimentação que disponibilizava R$ 50 a 1,9 milhões de famílias cadastradas. A ideia do presidente era a de que todos tivessem direito a, pelo menos, três refeições por dia.

Bolsa Família - Em outubro de 2003, o recém-lançado cartão alimentação do Fome Zero, assim como outros programas de transferência de renda lançados no governo FHC (bolsa-alimentação, vales luz e gás e bolsa-escola) são substituídos pelo Programa Bolsa Família - programa de transferência direta de renda. O valor repassado pelo governo depende da situação de cada família - renda, número de filhos e as idades das crianças —, pode variar de R$ 32 a R$ 306 por mês. Atualmente beneficia 13,5 milhões de famílias em todo o país.

Brasil Sem Miséria - Lançado no primeiro ano do governo Dilma para substituir o Fome Zero. Amplia os serviços de assistencialismo do governo, com o foco nas famílias que vivem em condições de extrema pobreza - com renda mensal de até R$ 70. Ao todo, 16 programas estão incluídos no Brasil Sem Miséria, entre eles o Bolsa Família (que já existia) e o Brasil Carinhoso (lançado em junho deste ano).

Brasil Carinhoso - Uma das ações do Brasil Sem Miséria, desde junho fornece auxílio à segurança alimentar de crianças de zero a seis anos. A concessão do benefício é automática. Como já estão inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais, famílias com renda de até R$ 70 por membro passaram a receber um valor adicional ao que já recebiam de Bolsa Família.

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