A Rede da Legalidade está no ar
Dione Kuhn
Um comando monta guarda em frente ao estúdio / A dica de Fidel  / Comando recorreu a armas dos anos 30 / Milícia não teve o que fazer em Constantina  / Carazinhense coordenou resistência no Interior
Entra no ar a Rede da Legalidade

Acervo Museu Hipólito José da Costa, Reprodução/ZH

   No segundo dia da série sobre os 40 anos da Legalidade, Zero Hora conta como foi montada a operação destinada a garantir a posse de João Goulart na Presidência em 1961 e que mobilizou o Rio Grande.

A manhã de domingo, 27 de agosto, selou o destino da Campanha da Legalidade.
O governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, chamou o secretário de Justiça, João Caruso, e determinou a redação de uma portaria requisitando a Rádio Guaíba para o governo do Estado.
Não adiantaram as ponderações do advogado e presidente do PTB de que não havia cobertura legal para tal iniciativa. Na mesma hora, saiu do elevador o secretário da Fazenda, Gabriel Obino. Era quem Brizola precisava para levar a determinação. Amigo do proprietário da Caldas Júnior, Breno Caldas, Obino foi designado interventor.
A madrugada de domingo tinha sido de tensão. No dia anterior, o marechal Henrique Teixeira Lott - candidato à Presidência derrotado por Jânio Quadros na eleição de 1960 - havia lançado um manifesto contra a tentativa de golpe dos ministros militares e imediatamente caíra preso no Rio.
O manifesto foi colocado no ar pelas rádios Gaúcha e Farroupilha. Não demorou para vir a primeira represália contra o movimento liderado por Brizola para garantir a posse de seu cunhado João Goulart na Presidência da República. Os cristais dos transmissores foram confiscados por ordem do chefe do Estado-Maior do 3º Exército, general Antônio Carlos Muricy.
Das rádios com alcance em todo o Estado, a Guaíba era a única que havia se recusado a divulgar o documento. Caldas aceitou entregar os equipamentos, desde que as transmissões fossem feitas de dentro do Piratini. Com a ajuda do engenheiro da Guaíba, Homero Simon, a Rede da Legalidade foi montada nos porões do palácio e entrou no ar pela primeira vez no domingo, às 14h20min, com Brizola denunciando a trama para impedir a posse de Jango.
Voz conhecida dos ouvintes, Lauro Hagemann, o Repórter Esso da Rádio Farroupilha, de repente se viu desempregado. Simpatizante da causa legalista, decidiu oferecer sua voz para a equipe de imprensa do palácio. Foi agarrado com as duas mãos.
- Pela primeira vez o rádio foi utilizado como alavanca popular. Depois da Legalidade, a idéia de um sindicato de radialistas começou a tomar corpo - conta Hagemann, ex-vereador pelo PPS (antigo PCB).
Era para ser um domingo de Gre-Nal. O locutor Armindo Antônio Ranzolin, 22 anos, da Rádio Difusora, há dias não conseguia conter a ansiedade. Seria sua estréia na narração de uma partida entre Grêmio e Internacional. Mas o Rio Grande começava a entrar em clima de guerra. O jogo foi cancelado.

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Um comando monta guarda em frente ao estúdio

Banco de Dados/ZH - 21/08/1961
   Noite de sábado, 26 de agosto.
O governo do Estado começa a pôr em prática uma operação militar contra um possível ataque das tropas federais.
Cerca de 15 homens do grupo de choque da Guarda Civil deixam o QG 3 de Outubro, na Rua Riachuelo, e são levados ao Theatro São Pedro, na Praça da Matriz. Lá recebem ordem da cúpula da área de segurança pública: revidar caso o 3º Exército atacasse o Palácio Piratini.
Getúlio Adamatti, 27 anos, ex-cabo do Exército, sabe que ele e seus colegas pouco têm a fazer na hipótese de uma investida militar. Sugere, então, que ninguém reaja, proposta aceita por todos. O grupo passa a noite no primeiro andar do teatro sob clima de tensão. No terraço do prédio são colocados coquetéis molotov. A sede do Tribunal de Justiça também está tomada de policiais.
Manhã de domingo, 27 de agosto. O grupo é levado para a 2ª Delegacia, na Avenida Azenha. Por volta das 11h30min, seis policiais, entre eles novamente Adamatti, são selecionados para nova missão. Deixam o prédio da delegacia, embarcam num caminhão e seguem rumo à Rua Caldas Júnior, no centro de Porto Alegre. Lá recebem ordens para subir até o 2º andar do prédio onde está localizada a Rádio Guaíba. Por cerca de uma hora os policiais armados ficam de prontidão na entrada do estúdio. Enquanto isso o governo do Estado requisita os equipamentos de transmissão da emissora para montar a Rede da Legalidade.
Uma das imagens gravadas na memória de Adamatti, hoje advogado, é a do jornalista Mendes Ribeiro olhando surpreso para aqueles homens armados. Mendes, que havia terminado de apresentar o noticiário do meio-dia, diz ao grupo sorrindo:
– Meus amigos, boa sorte que eu já vou.

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A dica de Fidel

• Repórter do jornal Última Hora, Flávio Tavares também era correspondente da agência de notícias cubana Prensa Latina. Do Piratini, transmitia em espanhol os acontecimentos do movimento.

• O levante armado no sul do Brasil não demorou a chegar aos ouvidos do líder revolucionário cubano Fidel Castro. Num discurso, Fidel fez uma convocação:
– Governador Leonel Brizola, vá para as montanhas!

• Desconhecedor da geografia dos pampas, Fidel imaginava que a insurreição capitaneada por Brizola deveria seguir os passos da revolução de Cuba. Foi nas montanhas de Sierra Maestra que Fidel e Che Guevara deram início à guerrilha que destituiu do poder, em 1959, o ditador Fulgencio Batista.

• De volta ao Palácio do Planalto, Jânio reúne Quintanilha, Geraldo, Horta e seu secretário particular, José Aparecido de Oliveira, para fazer a comunicação oficial da renúncia. Pede ao chefe da Casa Militar que convoque os ministros militares Odílio Denys, da Guerra, Gabriel Moss, da Aeronáutica, e Sílvio Heck, da Marinha.
No gabinete presidencial, os três ouvem pasmos o anúncio de Jânio.

• O pronunciamento não foi ao ar pela Rede da Legalidade. O funcionário do palácio João Brusa Neto selecionava as dezenas de mensagens diárias de solidariedade. Com a triagem, evitava que a resistência legalista fosse interpretada como um movimento comunista. Qualquer manifestação que pudesse incitar à desordem e à violência era vetada.

• Brizola tinha reservas em relação ao PCB. Na Legalidade, porém, os comunistas foram os principais articuladores da mobilização popular.
• Os comitês de resistência, responsáveis pelo recrutamento de voluntários, eram controlados pelo PCB. O comitê central localizava-se na Avenida Borges de Medeiros com Rua Andrade Neves, num pavilhão de exposições conhecido como Mata-Borrão. Para lá convergiam pessoas de todas as idades e profissões. Era comum ver grupos de tradicionalistas pilchados se oferecerem para o combate ou mulheres dispostas a prestar serviços de enfermagem.

 

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Comando recorreu a armas dos anos 30

   A Brigada Militar guardou por mais de duas décadas um armamento ignorado pelas autoridades civis. No final de semana após a renúncia do presidente Jânio Quadros, finalmente veio a revelação.
   O comandante da corporação, Diomário Moojen, reunido com o governador Leonel Brizola, contou que havia no Serviço de Material Bélico da BM fuzis e metralhadoras contrabandeados da Tchecoslováquia pelo general Flores da Cunha quando interventor do Rio Grande do Sul nos anos 30.
   A notícia surgiu como uma dádiva para Brizola, que recém começava a montar uma operação de resistência contra as unidades do Exército, aparentemente fechadas com a posição da cúpula militar de impedir a posse do vice-presidente João Goulart.
   As comunicações entre o palácio e o QG do 3º Exército haviam cessado desde a última conversa por telefone, ainda na sexta-feira, 25 de agosto, entre Brizola e o general José Machado Lopes, aumentando o clima de incerteza. No diálogo, Machado Lopes deixara clara sua posição de cumpridor das ordens do ministro da Guerra, Odílio Denys.
   A carga encomendada pelo general Flores da Cunha na década de 30 havia entrado em solo gaúcho via Lagoa dos Patos, por caminhos desconhecidos. As condições do armamento eram boas. O problema estava na munição, deteriorada pelos anos. De cada três ou quatro tiros, apenas um disparava. Mas isso não chegou a arrefecer o ânimo de Brizola, que queria mesmo era impressionar o Exército.
   A primeira atitude foi pedir permissão ao arcebispo dom Vicente Scherer para posicionar duas metralhadoras nas torres em construção da Catedral, à direita do palácio. Da Cúria Metropolitana ecoou um rotundo "não". O pedido não passava de mera formalidade. Brizola mandou instalar o armamento do mesmo jeito.
   O governador e o arcebispo não se bicavam. Dom Vicente achava o inquilino do palácio um agitador. Durante os 13 dias de tensão, a Cúria foi transformada em abrigo dos dissidentes do movimento legalista. Adversários como Peracchi Barcellos, derrotado por Brizola na eleição para o governo, lá ficaram em vigília.
   Do lado esquerdo do palácio funcionava a Assembléia Legislativa (a sede abriga hoje as subchefias da Casa Civil), que ficou desde as primeiras horas da renúncia de Jânio até o desfecho da crise em sessão permanente. A ampla maioria dos deputados estava solidária à causa legalista.
   Outros pontos estratégicos, como a Usina do Gasômetro, a rede ferroviária e a Companhia Telefônica, também foram guarnecidos com rolos de arame farpado, sacos de areia e um punhado de brigadianos. Quando o 3º Exército aderiu ao movimento e deslocou tropas para essas áreas, já era tarde. Totalmente coesa, a Brigada Militar estava orientada a não arredar pé em hipótese alguma. Por pouco soldados da BM e federais não se confrontaram.
   Pneus e combustível foram requisitados pelo governo. À indústria Taurus foram exigidos 3 mil revólveres, entregues à população nos comitês de alistamento e para a multidão de jornalistas, políticos, funcionários que se encontravam no palácio, já transformado em cidadela da Legalidade. Aulas de manuseio eram dadas na mesma hora, inclusive para mulheres.
   O silêncio do 3º Exército levou Brizola a pedir ajuda ao coronel Roberto Riedel Osório, professor da Escola Preparatória de Cadetes e muito ligado ao Piratini. O oficial foi chamado por outro colega, coronel Argemiro de Assis Brasil – que durante a crise foi um dos informantes do palácio dentro do QG - para uma missão: ir até Santiago sondar o general Oromar Osório, comandante da 1ª Divisão de Cavalaria e tio de Roberto. Prontamente o oficial aceitou, voando num teco-teco do Departamento Aeroviário do Estado. Retornou no mesmo dia com a informação de que seu tio não só defendia a posse de Jango como já estava com tropas sobre rodas, rumando para o Paraná. O recado de Oromar veio com um pedido: de que o governo arranjasse caminhões e 11 trens - para serem deslocados até São Borja, Santiago, São Luiz Gonzaga e Santo Ângelo. A Polícia Civil e a Brigada Militar foram incumbidas de interceptar caminhões nas estradas, retirar as cargas e levá-los em direção às tropas.
   De Santa Maria também chegou a notícia de que a poderosa 3ª Divisão de Infantaria, sob o comando do general Pery Bevilaqua, estava pelo cumprimento da Constituição e pela posse de Jango.

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Milícia não teve o que fazer em Constantina

   Um rádio a válvulas, um punhado de munição e muitas lembranças são o que restou do movimento da Legalidade em Constantina, município do norte do Estado.
Quarenta anos depois, um dos líderes da campanha na localidade recorda a época como uma das mais efervescentes na região.
   O então prefeito Hermeto Araújo, na época com 26 anos, defensor ferrenho das idéias do governador Leonel Brizola, decidiu aderir ao chamado do líder petebista. Organizou uma milícia contra as forças que pretendiam impedir o vice-presidente João Goulart de assumir a Presidência.
   No município, apenas dois partidos - PTB e PSD - polarizavam a vida política. Com a renúncia do presidente Jânio Quadros, no dia 25 de agosto de 1961, a campanha pela manutenção da legalidade e pela posse de Jango uniu as facções rivais.
Cerca de 40 homens armados de revólveres passaram a patrulhar as ruas da pequena Constantina diuturnamente, se revezando em turnos de duas horas. O prédio do escritório de Araújo, no centro da cidade, foi transformado em comando central.
   – Acompanhávamos as notícias transmitidas de Porto Alegre pelo rádio. E discutíamos as ações, de acordo com a evolução do caso - diz Araújo, hoje presidente da Câmara Municipal de Constantina pelo PMDB.
O grupo formado na cidade para defender a posse de Jango chegou a ter uniforme e distintivo. Uma tarja branca com uma fita verde identificava os integrantes da milícia. Logo que o movimento foi formado, o ex-prefeito dirigiu-se a Passo Fundo, onde comprou mais de 20 revólveres calibres 38 e 32, além de muita munição.
   – Tínhamos de estar preparados para o pior. E estávamos dispostos a isso, se fosse necessário – afirma o ex-prefeito.
Um dos aliados de Araújo era o ex-cabo do Exército Telvino Santini, que serviu em 1951. Hoje com 69 anos, Santini ainda guarda o velho rádio Semp, de 1922, pelo qual as informações chegavam à cidade.
   – Foi um tempo em que ninguém saía às ruas à noite. A cidade ficava deserta depois do cair do sol. As pessoas tinham medo de que houvesse alguma confusão - diz Santini, que hoje é alfaiate.
Embora o intervalo entre a renúncia de Jânio e a posse de Jango tenha sido de apenas 13 dias, a desconfiança quanto a um possível golpe militar fez com que os legalistas mantivessem a milícia por cerca de um mês.
   – O país estava em perigo e teríamos lutado até o fim se fôssemos convocados - acrescenta o vereador.
Passado o episódio, o grupo tratou de se desfazer de qualquer indício que pudesse ligá-lo ao movimento. As armas, por exemplo, foram jogadas no Rio da Várzea. A medida se mostrou acertada. Três anos depois, em 1964, com a instauração do regime militar, muita gente acabou presa, inclusive o ex-prefeito. O período de cárcere durou pouco. Restaram as lembranças.

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Carazinhense coordenou resistência no Interior


Arquivo pessoal/ZH
No dia 25 de agosto de 1961, o carazinhense Romeu Barleze, 33 anos na época, foi chamado às pressas a Porto Alegre.
A convocação partiu do governador e amigo pessoal Leonel Brizola, que começava a articular a campanha da Legalidade, em defesa da posse do vice-presidente e cunhado João Goulart.
Barleze foi escalado para ser um dos coordenadores da campanha no Interior.
   – Centenas de voluntários se alistaram, todos dispostos a lutar, se fosse preciso. O então prefeito de Carazinho, general Ernesto José Anoni, insistia em obter a adesão do Exército para bancar a rede da Legalidade. Então tomamos a prefeitura - lembra Barleze.
Postos de combustível, lojas de ferragens e outros estabelecimentos passaram a ser guardados pela Brigada Militar. Até a rádio local foi encampada. A mobilização popular foi tão rápida e eficiente que a Legião Brasileira de Assistência (LBA) abriu postos de inscrição para mulheres, que atuariam como enfermeiras em caso de guerra civil.
   – A Brigada Militar deveria assaltar o quartel do Exército em Passo Fundo, porque precisávamos de armas. Entretanto, sabíamos que a tomada do quartel levaria de três a quatro horas. Seria preciso conter as tropas que sairiam de Cruz Alta para socorrer o quartel passo-fundense - acrescenta Barleze, que hoje é assessor da prefeitura de Carazinho.
   Divididos em grupos, os legalistas procuraram impor obstáculos em todos os trechos por onde o Exército provavelmente passaria. Trilhos da estrada de ferro foram besuntados com azeite, uma ponte sobre o Rio Jacuizinho ficou abarrotada de dinamite e as mulheres da cidade decidiram preparar um suculento lanche, para atrasar os soldados. Estava armada a resistência.
   O reforço mais importante não demorou. O 3º Exército - comando do Exército no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e no Paraná - aderiu à campanha pela posse de Jango.
   – Acredito que o sentimento de cidadania despertado com o episódio tenha contribuído para o crescimento do povo. Temos hoje muito mais respeito como Pátria do que teríamos se o golpe tivesse obtido êxito naquele ano - analisa Barleze.
O servidor público aposentado lembra que golpes militares já haviam sido tentados em 1954, contra Getúlio Vargas, e em 1955, contra Juscelino Kubitschek, sem sucesso. A ditadura só foi instalada em 1964, na terceira investida, como efeito da ação frustrada de anos anteriores.
   – A tomada do poder era uma questão de honra para os militares da época. Mas até que resistimos bem - comenta.
Expulso do país no dia 24 de agosto de 1970, Barleze foi morar no Uruguai, onde Brizola vivia desde 1964. Quando o governo do país vizinho se preparava para extraditar o trabalhista, Barleze negociou a proteção americana a Brizola. Foi no Opala de Barleze que o ex-governador, a mulher, Neusa, e os filhos João Otávio e José Vicente chegaram à embaixada dos Estados Unidos, no departamento (Estado) de Maldonado, no dia 20 de setembro de 1978. De lá, Brizola seguiria para Nova York. Barleze seguiu-o, e só retornou ao Brasil em 1980.

Claudio Medaglia Jr.
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