Os protestos e confrontos nas ruas da Venezuela, que eclodiram em fevereiro, após uma tentativa de estupro em um campus universitário em San Cristóbal, se espalharam para outras cidades, resultaram em pelo menos 31 mortes até meados de março e atraíram a atenção do mundo.

Protagonizadas por moradores de bairros de maior poder aquisitivo, as manifestações são fruto da insatisfação com a violência urbana, o desabastecimento e o aumento da inflação, mas têm raízes na tensão social que faz parte do cotidiano de um país transformado por 15 anos de bolivarianismo.
Para entender o contexto que levou à explosão da violência nas ruas, precisamos resgatar episódios da história recente e conhecer algumas características que fazem da Venezuela de hoje um lugar tão peculiar.

Afinal, que país é esse?

Nosso vizinho do norte ocupa uma área pouco maior que a de Mato Grosso e tem população equivalente à Região Sul do Brasil.

Por observadores menos atentos, a Venezuela é lembrada como o saco de pancadas dos torneios sul-americanos de futebol...

... polo exportador de misses...

... e terra da maior queda d'água do mundo

Mas é claro que não é por isso que a opinião pública internacional é tão sensível a mudanças na ordem política venezuelana. O buraco é mais embaixo. A centenas de metros no subsolo.

A Venezuela tem as maiores reservas comprovadas de petróleo do mundo.

A produção e a exportação de petróleo são a base da economia local e garantem a entrada de bilhões de dólares no país todos os anos.

Por décadas, essa riqueza foi distribuída de modo desigual entre a população, o que cavou um abismo social que apartava dos petrodólares um grande contingente de pobres e miseráveis.

A eleição de Hugo Chávez para a presidência, em 1998, marcou uma mudança no uso desses recursos pelo Estado. Iniciando o primeiro de seus três governos num período de alta na cotação do petróleo, Chávez tirou dos petrodólares o financiamento de diversos programas de inclusão social.

Tenente-coronel do Exército que ganhou notoriedade internacional ao comandar uma tentativa frustrada de golpe de Estado em 1992, Chávez implantou no governo, a partir de 1999, uma linha político-ideológica de esquerda que chamou de bolivariana - em homenagem a Simon Bolívar, celebrado no país como o grande herói da independência

As medidas sociais de Chávez - chamadas Misiones Bolivarianas - basearam-se, sobretudo, na oferta gratuita de serviços públicos e reduziram consideravelmente o percentual de pobres e miseráveis na população.

Se no Brasil a importação de médicos cubanos para trabalhar nas periferias desassistidas virou debate nacional entre 2013 e 2014, na Venezuela a atuação de profissionais de Cuba nas favelas já produzia efeitos desde o início da década, como parte da Misión Barrio Adentro.

A parceria com Cuba, aliás, representa outra dimensão da política chavista: a busca pelo alinhamento com nações periféricas e a franca oposição à influência dos Estados Unidos.

O gráfico abaixo mostra o peso dos negócios com Cuba e com países das Antilhas Holandesas na balança comercial venezuelana.

Mas as mesmas políticas que atraíram apoio massivo entre as classes mais baixas e garantiram a Chávez a vitória em quatro eleições presidenciais (ele morreu em 2013, pouco depois de vencer a última) também lhe trouxeram inimigos.

Acusado de autoritário e ditador por seus rivais, o líder controvertido, que resistiu a uma tentativa de golpe de Estado em 2002 e derrotou os partidos de oposição nas urnas, comandou a elaboração de uma nova Constituição para a Venezuela e mudou a lei do país para permitir que o presidente se candidate à reeleição indefinidamente.

Ele também enfrentou forte oposição da imprensa. Desde o final da década passada, mais de 30 estações de rádio e TV venezuelanas tiveram de encerrar as atividades. Um dos casos mais notórios foi a não renovação da concessão da Globovisión, uma das principais emissoras de TV.

Chávez nacionalizou algumas das empresas mais importantes do país, como a gigante do petróleo PDVSA, a CANTV (principal empresa de telecomunicações) e a CADAFE, do setor energético.

Mesmo após sua morte, em 2013, Chávez continuou a interferir nos rumos políticos da Venezuela.

Seu sucessor, Nicolás Maduro, usou e abusou da imagem do comandante bolivariano na campanha eleitoral e derrotou, por uma margem de votos muito pequena, o principal político de oposição, o governador do Estado de Miranda, Henrique Capriles.

Sem o carisma de Chávez, Maduro começa a enfrentar forte oposição dos setores descontentes com a economia e com a insegurança nas ruas do país. O índice de homicídios da Venezuela é um dos mais altos do mundo. Dados de 2010 das Nações Unidas apontam uma taxa de 45,1 assassinatos a cada 100 mil habitantes, mas análises de institutos independentes dizem que hoje o número passa de 70 mortes violentas por 100 mil habitantes em Caracas.

Além disso, o índice de inflação no país mais que dobrou no primeiro ano do governo Maduro e o desabastecimento chega a 28% dos itens da cesta básica, privando os consumidores de produtos básicos.

Falta até papel higiênico - e a escassez já atinge os Mercais, estabelecimentos populares criados por Chávez para baratear a oferta de bens de consumo à população mais pobre.

Jornais também enfrentam falta de matéria-prima - mas por decisão presidencial. Pelo menos 12 periódicos deixaram de circular porque o governo recusou-se a lhes vender os dólares de que necessitavam para importar papel - e o El Nacional, principal diário do país, tem sido impresso com 40% menos páginas pelo mesmo motivo.

Pelo menos 19 jornalistas venezuelanos e estrangeiros disseram ter tido seus equipamentos retirados por forças de segurança e quase 80 profissionais da imprensa foram agredidos durante a cobertura dos protestos, segundo o Sindicato Nacional de Trabajadores de la Prensa.

A economia vive momentos de desconfiança e intranquilidade. Nas ruas, o dólar paralelo vale pelo menos 10 vezes mais que o câmbio oficial, fixado pelo governo em pouco mais de 6,3 bolívares - e até o preço da gasolina, um dos mais baixos do mundo graças aos pesados subsídios do governo, está para ser reajustado.

Para onde vai a Venezuela?

O futuro é uma incógnita e as tensões sociais não desaparecerão por decreto nem pela via da violência. O mandato de Maduro, que será submetido a um referendo revocatório em 2016, pode durar até 2019 - a menos que ele seja alijado do poder pela força ou por um golpe constitucional, o que não seria uma novidade na história do país e do continente.


Créditos:

Texto: Eduardo Nunes
Pesquisa: Eduardo Nunes e Léo Gerchmann
Arte: Diogo Fatturi
Programação: Michel Fontes