Ao Pé da Letra
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Vitor Ramil - Loucos de cara
A música sempre foi muito aberta, essas imagens provocam
as pessoas a pensar", acredita Vitor
"Louco de cara é o cara que é doido sem droga", explica Vitor Ramil, lembrando que ele mesmo era um desses malucos quando escreveu a canção. Loucos de Cara é uma de suas canções mais simbólicas: tanto pelo que representa na discografica do pelotense, quanto pelas imagens, às vezes surrealistas, que se sucedem ao longo de quase sete minutos de música. Última faixa do disco Tango, de 1987, a canção também encerra a série multimídia Ao Pé da Letra, que destrinchou 15 clássicos do cancioneiro gaúcho ao longo de 2013.

Vamos sumir!
Vem, nada nos prende, ombro no ombro
Vamos sumir!
Não importa que Deus
Jogue pesadas moedas do céu
Vire sacolas de lixo
Pelo caminho
Se na praça em Moscou
Lênin caminha e procura por ti
Sob o luar do oriente
Fica na tua
Não importam vitórias
Grandes derrotas, bilhões de fuzis
Aço e perfume dos mísseis
Nos teus sapatos
Os chineses e os negros
Lotam navios e decoram canções
Fumam haxixe na esquina
Fica na tua
Vem, anda comigo pelo planeta
Vamos sumir!
Vem, nada nos prende, ombro no ombro
Vamos sumir!
Não importa que Lennon
Arme no inferno a polícia civil
Mostre as orelhas de burro
Aos peruanos
Garibaldi delira
Puxa no campo um provável navio
Grita no mar farroupilha
Fica na tua
Não importa que os vikings
Queimem as fábricas do Cone Sul
Virem barris de bebidas
No Rio da Prata
Boitatá nos espera
Na encruzilhada da noite sem luz
Com sua fome encantada
Fica na tua
Poetas loucos de cara
Soldados loucos de cara
Malditos loucos de cara
Ah, vamos sumir!
Parceiros loucos de cara
Ciganos loucos de cara
Inquietos loucos de cara
Ah, vamos sumir!
Vem, anda comigo pelo planeta
Vamos sumir!
Vem, nada nos prende, ombro no ombro
Vamos sumir!
Se um dia qualquer
Tudo pulsar num imenso vazio
Coisas saindo do nada
Indo pro nada
Se mais nada existir
Mesmo o que sempre chamamos real
E isso pra ti for tão claro
Que nem percebas
Se um dia qualquer
Ter lucidez for o mesmo que andar
E não notares que andas
O tempo inteiro
É sinal que valeu!
Pega carona no carro que vem
Se ele não vem, não importa
Fica na tua
Videntes loucos de cara
Descrentes loucos de cara
Pirados loucos de cara
Ah, vamos sumir!
Latinos, deuses, gênios, santos, podres
Ateus, imundos e limpos
Moleques loucos de cara
Ah, vamos sumir!
Gigantes, tolos, monges, monstros, sábios
Bardos, anjos rudes, cheios do saco
Fantasmas loucos de cara
Ah, vamos sumir!
Vem, anda comigo pelo planeta
Vamos sumir!
Vem, nada nos prende, ombro no ombro
Vamos sumir!
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O Ian, meu filho, tinha nascido, e eu estava na época com 23 anos, por aí. De noite, eu ficava muito com ele, quando ele chorava. Então ficava com ele no braço, na sala, deixava aquele cassete tocando (com a música que Kleiton havia composto para que Vitor colocasse a letra) e ficava trabalhando na letra, até que um dia me veio essa frase: vem, venha comigo. Eu pensei, opa, que interessante, encontrei um mote legal.
Na época eu estava lendo Maiakovski (poeta da Revolução Russa) e Allen Ginsberg. (...) Eu acho que a música tem essa aspiração coletiva. Eu sei que sou um cara isolacionista, sou só, mas eu curto as pessoas, sou afetivo. Me comovo com as mobilizações sociais, faço parte delas à minha maneira.
Tem uma coisa de Dylan, dessa coisa de um mote que se desenvolve, a que vão se somando imagens. (...) A letra sempre foi muito aberta, essas imagens provocam as pessoas a pensar coisas.
A letra é um apanhado de assuntos da época. Nem todas as imagens fazem sentido.
O Ney Matogrosso queria gravar essa música, e me perguntou justamente sobre essa imagem do John Lennon. Na época, Lennon deu entrevistam que ele disse algo do tipo, que os EUA tinham despejado um monte de dinheiro no Peru e o país nunca tinha deixado de ser uma droga. Eu achei uma declaração muito burra. E ele tinha feito uma doação em armas para a policia de Nova York e era um pacifista. Eu não tinha como chamar meu maior ídolo de burro (por isso escrevi dessa forma).
Aí já é uma imagem meio surrealista, mesmo, porque a música começa e eu começo a colecionar imagens que vão ficando mais simbólicas, de significado aberto, misturando tempos, vikings com Rio da Prata, quero dar uma noção de mundo, de espacialidade, nem todas imagens tem um sentido… Mas estou dizendo pra pessoa, fica na tua, vamos embora.
Nós (eu e meu interlocutor) somos os loucos de cara. Na época, se falava bastante. Se bem que é interessante porque até hoje as pessoas não sabem o que significa fora daqui. De cara é o cara que é doido sem droga. O cara não precisa estar chapado para estar maluco ou dizer coisas doidas.
No final, faço uma espécie de análise, uma previsão do que vai acontecer, deixa pra lá, deixa pra lá. Se um dia qualquer tudo pulsar num imenso vazio, ter lucidez for o mesmo que andar. Faço uma leitura do que pode acontecer com a gente, com os que estão indo comigo.