Mercado das ocupações
Pagamentos a advogados e venda de lotes irregulares até mesmo pela internet tornam as invasões de áreas um negócio
Porto Alegre viu nascer pelo menos uma ocupação urbana a cada 45 dias no último ano. Nestes terrenos incertos, há quem deposite esperanças e economias de uma vida. São, na maioria dos casos, pessoas humildes - algumas vivendo em situação de pobreza extrema - que se arriscam em áreas insalubres e carentes de infraestrutura, movidas pelo sonho da casa própria. Um sonho que pode virar pó a qualquer momento, bastando apenas a Justiça dar a ordem para a reintegração de posse.
A explicação para o boom de invasões verificado especialmente nos últimos três anos vai muito além do déficit habitacional, calculado em 38,6 mil unidades na Capital. Percorrendo comunidades e conversando com dezenas de líderes e moradores nas últimas semanas, ZH constatou que este pode ser um negócio bastante lucrativo: o mercado das ocupações tem potencial para movimentar milhões de reais com a venda ilegal de lotes - feita inclusive através de anúncios na internet - e contratos com escritórios de advocacia, que chegam a R$ 100 mil em uma única invasão. Cada família chega a desembolsar R$ 200 por mês para bancar o serviço.
Por trás da bandeira da luta pela moradia, um grupo composto por supostos líderes comunitários, amparado por advogados, capitaneia a tomada de áreas públicas e privadas sob o argumento de que seriam "vazios urbanos", o que, segundo eles, legitimaria as invasões.
Organizado, o grupo trabalha com fila de espera e faz a divisão dos lotes com o auxílio de imagens de satélite. Fundadores do Fórum das Ocupações Urbanas da Região Metropolitana são os principais responsáveis por constituir novas invasões nos últimos anos, agindo inclusive por encomenda. Eles atuam com o suporte da Defensa Assessoria, dos advogados Paulo René Soares Silva e Rafael Menezes. O escritório, apesar de se apresentar como "voltado para a prestação de assessoria empresarial", diz ter mais de 40 ocupações como clientes.
De acordo com um levantamento do Departamento Municipal de Habitação (Demhab), 289 mil pessoas residiam em áreas invadidas em 2009, o equivalente a 20,7% da população de Porto Alegre. Na época, existiam 486 ocupações irregulares na Capital - algumas delas com décadas de existência. O órgão não dispõe de dados atualizados, mas ZH apurou que, nos últimos três anos, surgiram pelo menos 17 novas ocupações - dessas, os líderes atuaram em 10 -, onde moram quase 4 mil famílias.
É o caso de Gian Cunha, 24 anos. Pai de seis filhos e vivendo de bicos, ele e a mulher, Patrícia, 30 anos, vinham enfrentando dificuldades para pagar os R$ 500 de aluguel. Quando soube que famílias estavam construindo casas em um terreno baldio no seu bairro, também resolveu arriscar. Financiou por R$ 9 mil uma casa pré-fabricada. O sonho durou pouco. Depois de seis meses na invasão batizada de Cruzeirinho, veio a reintegração de posse. Pouco sobrou da residência de dois quartos, sala, cozinha e banheiro. Sem ter para onde ir, a família encontrou abrigo na ocupação Três Pinheiros, em Alvorada. Lá, com a ajuda de vizinhos, Cunha ergueu um casebre de duas peças com materiais doados e algumas poucas tábuas que restaram da casa que já não existe, mas que terá de pagar pelos próximos quatro anos.


Silvonei Almeida, o Gateado, conta como nasce uma ocupação.




Invasões por encomenda
Foto: Tadeu Vilani
Em julho de 2014, o grupo que viria fundar o Fórum das Ocupações Urbanas da Região Metropolitana - uma entidade que formalmente não existe - foi procurado para invadir uma área em Capão Novo, praia de Capão da Canoa. Um dos líderes, o aposentado Silvonei Almeida, conhecido como Gateado, conta que foi acionado por uma mulher chamada Rose, que comandava uma ocupação nas proximidades, com cerca de 400 famílias:
Essa menina estava desesperada, porque ela tinha outra área para ocupar, mas não tinha gente - conta.
Gateado pediu ajuda de líderes de três áreas ocupadas em Porto Alegre: Leandro Otenir Ribeiro Ribas, o Careca, e Maria Helena Alves, a Índia, ambos da São Luiz; Arduíno Balduíno, da 21 de Abril (hoje Treze de Abril); e Neusa Souza Mattos, da Dois Irmãos. Conseguiram encher um ônibus, que seguiria para o Litoral assim que o terreno fosse invadido.
Advogado dessas três ocupações, Paulo René Soares Silva acompanhou de perto a tentativa em Capão Novo, a qual acabou sendo contida pela Brigada Militar, que soube dos planos com antecedência. Fontes que acompanharam a operação relatam que, munido de documentos, o advogado tentava convencer os policiais de que a área que queriam invadir faria parte da mesma matrícula do local já ocupado por famílias, do outro lado da rua. René confirma a informação. Logo após esse episódio, René e lideranças, orientados por um assessor do PT, decidiram criar o Fórum.
— Conversando com o Avelange (Antônio Avelange Bueno, assessor da bancada do PT), pela expertise de articulação e de movimento, resolvemos criar uma identidade para essas ocupações transitarem. Era uma luta em comum — disse René durante reunião do Fórum acompanhada por ZH em abril.
Avelange conta que sugeriu a criação de um "mecanismo de contato, um espaço de discussão", pois as ocupações estavam desorganizadas. Ele afirma que participa do Fórum como militante da causa e nega que a entidade promova a invasão de áreas. Segundo Avelange, "quem faz as ocupações são lideranças que eventualmente estão no Fórum".
O caso de Capão Novo não foi a única tentativa frustrada e de invasão por encomenda. Em fevereiro, Lucineia Alves, outra líder, foi detida enquanto ajudava a desmatar um terreno que o grupo havia invadido a pedido de uma igreja de Alvorada. Segundo Gateado, um pastor "entrou em contato com o Fórum" porque queria fundar uma comunidade com 48 famílias de fieis. Os planos não deram certo, mas o projeto não chegou ao fim.
Agora, (o pastor) achou uma área, me ligou para pesquisar. Vou ajudar - diz Gateado.


Gateado e Lucineia Alves contam que o fórum foi acionado para invadir área para uma igreja.
Atuando hoje na Três Pinheiros, em Alvorada, o líder conta que pesquisa os chamados "vazios urbanos" por imagens de satélite e que também usa o recurso para fazer o loteamento do terreno. Assim, já entram na área sabendo exatamente quantas famílias podem ser alojadas. Um novo terreno está na mira.
Temos um cadastro, tem fila de espera. Chamamos aquelas pessoas que não têm casa. A gente sabe a hora de entrar, como entrar e como se manter em cima da área. A gente tem estratégia - relata Gateado.


Ocupações têm lista de espera, contam Gateado, Echelen Pedroso e Pablo Lippert.
O líder, assim como parte do grupo, não mora em ocupação, mas diz ter passado por três no último ano e que considera esse o seu trabalho. Na área da Três Pinheiros, onde hoje vivem 700 famílias, Gateado calcula que é possível colocar mais 875, e orienta os ocupantes a guardar R$ 1 mil até o final do ano para o caso de a área vir a ser negociada.
Se trabalhar com esta mentalidade, doutrinando o povo que o negócio não é teu e tu vai pagar, fica fácil. O povo tem que ter mais confiança e pensar: eu vou comprar, então, vou fazer uma casa boa. Senão, faz uma maloquinha.
Coordenador do Fórum, Luciano Ilha acompanhou a reunião, em abril, em que Gateado e outras lideranças afirmaram que a entidade faz invasões, e não contestou. Procurado pela reportagem, deu outra versão. Disse que "isso é uma possibilidade, mas ainda não aconteceu". Em um terceiro momento, nova explicação: o Fórum não faz ocupações.
A atuação de grupos não é nova para o Departamento Municipal de Habitação (Demhab). De acordo com a superintendente de Ação Social e Cooperativismo, Maria Horácia Ribeiro, trata-se de supostas lideranças que migram de um local para outro, "vendendo ilusões", e que se valem da morosidade do Judiciário. Em setembro, último levantamento do Tribunal de Justiça, pelo menos 65 ocupações enfrentavam esse tipo de processo.
No fundo, não deixa de ser uma forma de negócio. Uma pessoa demarca um terreno e consegue pegar uma outra criatura realmente necessitada, com pouca informação, que tem um dinheirinho - diz Horácia. Conforme a superintendente, as famílias que invadem as áreas não costumam permanecer no local. Levantamentos de junho de 2012 e abril de 2013 mostraram que 28 das 104 famílias originárias continuaram em uma ocupação próxima da Avenida Manoel Elias.
Para a defensora pública Adriana Schefer do Nascimento, o cadastramento das famílias dessas áreas - tarefa do Demhab - ajudaria a coibir práticas irregulares. O Demhab diz fazer levantamentos socioeconômicos nas áreas públicas invadidas e que, nas particulares, precisaria de aval dos proprietários.


Líderes migram de invasões. Relato de Lucineia Alves, ex-Cruzeirinho,
área que teve reintegração de posse, mas deve ser retomada.



Gateado e Echelen falam sobre articulação entre líderes e projeto de nova invasão.


Primeira ocupação feita pelo fórum teria sido a Bela Vista (Fazendinha).
Prática antiga, venda de casas chega à internet
Reprodução da Internet
A poucos metros da entrada da ocupação Três Pinheiros, em Alvorada, letras escritas com giz denunciam uma prática ilegal e corriqueira nas áreas invadidas na Região Metropolitana: a venda de lotes e casas construídas nos terrenos que são alvo de ações de reintegração de posse. A maioria dos líderes comunitários alega desconhecer tais negociações, mas relatos de moradores e de vizinhos das ocupações evidenciam o contrário.
Na zona sul da Capital, em um área de 11 hectares que até a década de 1990 abrigou um lixão, casas de alvenaria seriam vendidas por até R$ 15 mil, conforme um comerciante que mora próximo da invasão que recebeu o nome de Morada dos Ventos. Em abril, o terreno invadido há quase um ano ainda parecia um canteiro de obras: pilhas de tijolos, tábuas e montes de areia faziam parte do cenário. A vice-presidente da Cooperativa Habitacional Morada dos Ventos, Daiane Wolski, afirma, no entanto, que é preciso atender a critérios para ocupar lotes, como não ser proprietário de imóvel e receber até dois salários mínimos.
A ocupação tem uma rua principal e sete travessas, identificadas por letras. Todos os lotes são numerados - alguns deles ainda estão vagos. Parte das construções do local são pequenos casebres de madeira, mas há também casas de alvenaria de até dois andares. Em algumas há carros populares.
No bairro Sarandi, o comerciante Marcelo Júnior da Silva conta que pagou R$ 4 mil pelo espaço onde construiu um bar e minimercado. O valor teria sido cobrado por Jocimar Cardoso de Mello, o Carioca, antigo líder comunitário da ocupação Progresso. Famílias de haitianos também dizem ter pago entre R$ 1 mil e R$ 4 mil para Carioca, que nega as acusações. Ele concorreu a vereador pelo PSOL em 2012 e também chegou a fazer parte do Fórum das Ocupações Urbanas da Região Metropolitana, mas se afastou do movimento. Em abril, o proprietário do minimercado estava ampliando a área construída e dizia não se arrepender do investimento:
Antes, eu pagava R$ 2 mil de aluguel, mais água e luz. Então, compensou.
Ex-líder da ocupação Rincão/Belém Velho, Ravena Kalinca Flores também admite ter comprado um lote no local. Foi pela janela do ônibus, a caminho do trabalho, que a barista viu serem erguidos os primeiros barracos. Resolveu procurar os invasores e foi informada que teria que pagar R$ 3,5 mil para poder ocupar a área com a filha e o marido aposentado por invalidez. Como era a sua chance de sair do aluguel, não pensou duas vezes: juntou economias e fez o negócio.
A grande maioria das pessoas que pegaram um terreno no começo, pegaram por pegar porque já tinham casa, tinham uma estabilidade. Só queriam vender no futuro, porque vai dar um bom dinheiro - diz Ravena.
Pulsante, o mercado informal de venda de terrenos e casas em áreas invadidas cresce na medida em que surgem novas ocupações. Os anúncios estão inclusive na internet, e os negociantes não se intimidam, deixando claro no título ou descrição do classificado: "terreno de invasão" ou "casa em ocupação".
O risco de ser despejado, no entanto, não afasta investidores. ZH ligou para cinco anunciantes, cadastrados entre os dias 27 de abril e 24 de maio, e três já tinham vendido seus imóveis. Todos confirmaram se tratar de áreas invadidas. Moradora da ocupação Sete de Setembro, na zona norte de Porto Alegre, uma mulher está vendendo uma casa de madeira de três peças, construída em um terreno de 10m x 12m, por R$ 17 mil. O motivo é que ela e o marido querem investir em um outro terreno na mesma vila. Perguntada sobre o risco de reintegração ela tenta tranquilizar a repórter que se passou por compradora:
Acho que não tem risco porque já tem bastante gente investindo em casa de material, e mora bastante gente lá. Acho que vai ser difícil - disse ao prometer contrato de gaveta.
Advogado cobrou R$ 100 mil
Advogado Paulo René (direita) e lideranças como Pablo Lippert (de boné) participaram de tentativa de invasão em Capão da Canoa em 2014.
Foto: Luis Cáceres
Embora vivam em condições precárias, famílias de ocupantes pagam mensalidades de até R$ 200 para contratar os serviços do advogado Paulo René Soares Silva, da Defensa Assessoria. René, que se apresenta como "especialista em direito urbanístico", diz atender a mais de 40 ocupações na Região Metropolitana. Algumas delas, como a Marcos Klassmann, no Rubem Berta, onde moram 450 famílias, têm contratos que chegam a R$ 100 mil. Segundo Júnior Bittencourt, um dos coordenadores da Marcos Klassmann, os moradores já quitaram 77% do valor.
Fundada há três anos, a São Luiz, na zona norte da Capital, teria sido uma das primeiras clientes de René. Presidente da cooperativa habitacional que leva o nome da ocupação, Leandro Otenir Ribeiro Ribas, o Careca, diz que é o responsável por ter "colocado" René em quase todas as ocupações. Na São Luiz, cada uma das 300 famílias pagou para o advogado duas parcelas de R$ 200, o que daria R$ 120 mil. O valor global do contrato, no entanto, não foi confirmado.
As pessoas que chegam na ocupação pagavam R$ 600 de aluguel. Pô, tu pagava R$ 600 de aluguel e não vai ter condições de pagar R$ 200 por mês para a cooperativa e mais o advogado? - afirma Careca, ressaltando que a meta é a compra da área de 12 hectares, a exemplo dos ocupantes da Dois Irmãos, que, após 10 meses no local, negociaram o terreno por R$ 1,4 milhão.
Mas arcar com os custos da assessoria jurídica não parece ser assim uma tarefa tão fácil. Ex-líder comunitária da Rincão/Belém Velho e moradora da comunidade, Ravena Kalinca Flores, 30 anos, conta que teve de fazer um remanejamento, chamando famílias carentes para ocupar lotes de quem teria comprado áreas apenas para revendê-las. O contrato com René, segundo ela, era de R$ 70 mil, sendo que R$ 13 mil foram pagos pelos moradores. O advogado teria sido contratado após um estagiário procurar os líderes oferecendo os serviços do escritório de René. Hoje, um núcleo jurídico da UFRGS faz atendimento gratuito.
A gente começou a conversar com outros advogados e viu que ele estava cobrando um valor absurdo e, na verdade, não estava tendo movimentação no processo - diz Ravena.
Em uma reunião no dia 22 de abril, na Assembleia, o próprio René confirmou que lideranças do Fórum visitam ocupações para ver se os moradores "querem ajuda, se querem brigar" - referência aos processos de reintegração. Um dos responsáveis por esse trabalho seria Pablo Lippert, apresentado à reportagem como líder da ocupação Capadócia, no Rubem Berta. ZH ligou para a Defensa e foi informada que Lippert trabalha para René "fora do escritório". Questionado, René disse que ele não possui "nenhum vínculo" com o escritório e que pode ter ocorrido confusão, pois Lippert tem trânsito na Defensa.
Mas nem sempre o investimento na assessoria jurídica se traduz em uma garantia de permanência. Em Sapucaia do Sul, 150 pessoas que ocupavam uma propriedade de 1,8 hectares do município foram despejadas em março depois de 11 meses no local. De acordo com o metalúrgico Alexandre Dionísio, 33 anos, as famílias pagaram pelo menos R$ 6,4 mil para o advogado.
O mesmo ocorreu na Cruzeirinho, em dezembro. Seis dias antes da reintegração de posse, a página da ocupação no Facebook avisava: "Pagamento do Dr. Advogado hj ás 21:00 até amanhã o mesmo horário". Em novembro, um mês antes do despejo das cerca de 200 famílias, uma postagem dava demonstração de confiança: "Juntos com A Defenda Assessoria Dr. Paulo René venceremos essa luta". Não foi o que aconteceu.
Para o presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da seccional gaúcha da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RS), Fábio Scherer de Moura, se de fato procurou ocupações para oferecer seus serviços, mesmo que através de terceiros, o advogado Paulo René feriu o estatuto e o código de ética da entidade, conduta passível de sanção. Apesar de uma resolução da OAB afirmar que a remuneração do advogado deve ser compatível com "a capacidade econômica do cliente", Moura afirma não ter elementos suficientes para avaliar se o valor de R$ 100 mil para atender a uma única invasão é ou não abusivo.
Advogado Paulo René fala sobre reintegrações de posse e visitas a ocupações.
Entrevista | Paulo René Soares Silva
Advogado, assessor jurídico do Fórum das Ocupações Urbanas da Região Metropolitana
Resolução da OAB afirma que a remuneração deve ser compatível com a capacidade econômica do cliente. O senhor não acha abusivo cobrar R$ 100 mil de famílias pobres?
Não, porque o contrato se perpetua em cinco, seis anos. Começa o trabalho com a contenção da reintegração de posse, depois passa por uma organização interna, por meio de associação ou cooperativa, e o contrato fala sobre acompanhamento até a última instancia. No meio do caminho, ainda existe a assessoria no sentido da conciliação. Posteriormente, há a assessoria para aquisição dos imóveis e, depois, junto à prefeitura para regularização. É um trabalho de oito anos. Se fizer o cálculo para uma ocupação com 250 famílias, vai dar R$ 10, R$ 8, R$ 5 por mês. Isso é quase que uma defensoria pública.
Ex-líderes comunitários relatam que tiveram que colocar mais famílias na área para conseguir fazer o pagamento.
Trabalho com mais de 40 ocupações. Inadimplência todas têm. Nunca rescindi contrato por falta de pagamento. A OAB norteia até um ponto, porque isso é contrato entre particulares. Os contratantes não são obrigados a assinar nada. Tem gente que gosta de Defensoria Pública, de advocacia particular, de advogado com certo status. Não tenho queixa, até porque eles têm a disposição um aparato, e isso custa caro. Mal comparando, (quem quer) cirurgia com o (cirurgião plástico Ivo) Pitanguy tem que mexer um pouco no bolso, e hoje sou referência em direito urbanístico.
Há relatos de que funcionários da Defensa procuram invasões para oferecer serviços.
Não, não. Está bem equivocado. Na verdade, somos procurados para resolver problemas das pessoas. Mas como nós participamos do movimento, ou seja, o escritório é um escritório que também trabalha junto ao movimento, eles têm o escritório como um defensor. Não vejo nenhuma prática ilegal. Outra, vou ser bem sincero: o estatuto da OAB está muito defasado. É o único que proíbe publicidade de advogados.
Integrantes do Fórum das Ocupações afirmam que o grupo costuma ser acionado para realizar invasões. Essa conduta é correta?
Não. O Fórum não é chamado para realizar nenhuma ocupação. Pelo menos, que eu saiba não. As ocupações são feitas por líderes comunitários.
Mas essa declaração foi feita inclusive na sua frente, durante uma reunião do Fórum.
Não. Pode mudar esse texto. O fórum é acionado para manter as pessoas nas áreas, e não para promover. Até porque não existe nenhum ilícito nisso: o Fórum ajudar os ocupantes a promover uma área que é um vazio urbano. Mas o fórum não trabalha dessa maneira. Pelo que eu sei, não. Pode ser que alguns líderes comunitários ali tenham esse viés. A ideia de todos os líderes é: lugar vazio, vamos botar gente para morar. E, graças a Deus, o Judiciário está sensível. Se não for área de risco, vamos botar gente para morar. Chega de especulação imobiliária no nosso país.


Divergências e rachas no Fórum das Ocupações
Foto: Tadeu Vilani
Em dezembro, integrantes do Fórum das Ocupações Urbanas da Região Metropolitana fecharam os dois principais acessos à Capital, gerando mais de 10 quilômetros de congestionamento. Ao protestar pelo direito à moradia, a organização atingiu o auge de sua visibilidade. Quatro meses antes, o grupo já havia trancado a Avenida Assis Brasil para reivindicar a suspensão das reintegrações de posse e a criação de uma vara específica no Judiciário para tratar da regularização fundiária.
Mas, conforme o Fórum ia se tornando mais conhecido, aumentavam as desavenças internas - racha que começou a se agravar com a aprovação de um projeto, na Câmara de Vereadores de Porto Alegre, que tornou 14 ocupações Áreas Especiais de Interesse Social (Aeis). De autoria dos vereadores do PSOL Fernanda Melchionna e Pedro Ruas (atualmente deputado estadual), a proposta prevê que os locais só poderão ser destinados para habitação popular (em abril, a prefeitura obteve na Justiça liminar suspendendo a lei).
Para as lideranças ligadas ao advogado Paulo René, assessor jurídico do Fórum, o projeto das Aeis era "eleitoreiro" e desmobilizou os ocupantes, já que o grupo trabalha tendo a compra das áreas como meta principal.
A pura realidade é uma só: o projeto não ajudou. Só atrapalhou. O pessoal desistiu de negociar, achando que as áreas estavam ganhas. Atrasou um trabalho de mais de oito meses. A gente tinha 12 áreas a ponto de negociação - relata Silvonei Almeida, o Gateado.
Filiado ao PSOL, o ambulante Juliano Fripp, que respondia pela coordenação do Fórum das Ocupações, passou a não ser mais reconhecido como porta-voz pelo grupo de René, que afirma que Fripp nem mesmo faz mais parte da entidade. Fripp, contudo, diz que segue como um dos coordenadores (o outro seria Luciano Ilha), inclusive fazendo reuniões semanais itinerantes. Já Ilha afirma ser o único coordenador.
Os valores cobrados pelo escritório de René seriam outro motivo de discórdia entre os grupos. Morador da ocupação São Luiz, Fripp evita comentar a questão, limitando-se a dizer que trabalha com um grupo de cinco advogados que seriam "militantes da causa" e cobrariam "valores populares".
Nossa proposta é a luta e o direito à moradia. Não queremos ser explorados por ninguém. Temos uma luta para fazer e, para conquistar a moradia, tem que ser através da mobilização, de agregar as pessoas, de reivindicar aquilo que é de direito e nunca explorar as pessoas que mais necessitam.
Questionado sobre a diferença entre os valores cobrados pelos advogados dos dois grupos, Luciano Ilha, que vive na Morada dos Ventos, rebate:
Muitas ocupações não têm condições de pagar o preço que o Paulo cobra, mas a maioria tem. É uma escolha de cada ocupação. Se não tem condição de pagar R$ 100 para um advogado defender o teu interesse, pelo amor de Deus, então, vai para a fila do Minha Casa Minha Vida.
A origem do fórum, segundo Gateado e Echelen.


Líderes dizem que Fórum não realiza as ocupações
Foto: Tadeu Vilani
Acompanhados pelo advogado Rafael Menezes, sócio de Paulo René Soares Silva na Defensa Assessoria, um grupo de 14 lideranças do Fórum das Ocupações Urbanas da Região Metropolitana foi recebido na redação de Zero Hora, em Porto Alegre, na última sexta-feira.
Menezes ressaltou que o Fórum "não tem partido e não promove ocupações" e apenas auxilia na organização das invasões existentes em Porto Alegre e cidades próximas. Sobre o trabalho da Defensa, o advogado explicou que o escritório busca segurar as reintegrações de posse e, depois, atua focado na mediação da compra, por quem já vive no local, da área invadida. Conforme o advogado, 25 ocupações seriam atendidas pela Defensa, número que diverge do que havia sido informado por René (40).
Os líderes representavam cinco ocupações: Alzira Rosa, Capadócia, Dois Irmãos, São Luiz e Três Pinheiros. Entre eles, estavam Luciano Ilha, coordenador do Fórum; Antônio Avelange Bueno, integrante do Fórum e assessor da bancada do PT na Assembleia Legislativa; Pablo Lippert, da Capadócia; Silvonei Almeida, o Gateado, e Lucineia Alves, da Três Pinheiros; Sinara Zimmermann e Daiane Wolski, da Morada dos Ventos.
De acordo com as lideranças, a venda ilegal de lotes não é uma prática aceita pelo grupo. A orientação do Fórum de Ocupações, segundo Ilha, é a de que os líderes comunitários devem expulsar moradores que forem flagrados negociando casas e terrenos. Eles dizem que Juliano Fripp, morador da São Luiz e que foi candidato a vereador pelo PSOL, teria interesses eleitoreiros, já que as invasões teriam potencial "para eleger um deputado". Fripp também se identifica como coordenador do Fórum, mas não é reconhecido como tal pelo grupo que esteve na redação.


Texto: Cleidi Pereira
Edição: Leandro Brixius
Design e programação: Michel Fontes