Tirar alguém das ruas, e fazer com que permaneça fora, é um processo lento e intenso. Muitas vezes, é frustrante para quem trabalha com isso: tentar ajudar, mas não conseguir, já que a pessoa não quer se ajudar. Nossa abordagem está mais incisiva e seguiremos nessa linha.
Julio Cezar Chaves, diretor do Acolhe Caxias e do Pop Rua
Ana Paula da Silva fala alto e abraça forte. Tem o riso frouxo, mas na maioria das vezes mostra os dentes para esconder o nervosismo e talvez mascarar lembranças ruins que guarda de um passado nem tão distante. Hoje, sabe que a rua não é lugar para ninguém morar, mas conta que só viu essa opção ao decidir sair de casa, aos 12 anos, depois de inúmeras desavenças com o pai, com quem nunca mais teve contato. Lembra que foi influenciada por uma irmã, que até hoje vive pelas ruas, mas culpa o vício no crack e a falta de perspectiva como fatores que a fizeram ficar perambulando sem destino por mais de 15 anos.
Hoje, aos 29 anos, Ana Paula é considerada um caso raro por quem trabalha para tirar pessoas dessa condição. Das 7,2 mil abordagens anuais feitas pela rede organizada pela Fundação de Assistência Social (FAS) para ajudar cerca de 200 moradores de rua em Caxias do Sul, ela se superou. No meio de um mundo visto como marginalizado, quis tomar as rédeas de seu futuro e, há um ano, é acompanhada por serviços da prefeitura. Também está longe das drogas — fuma três carteiras de cigarro por dia, mas já considera uma vitória. Desde janeiro, trabalha como auxiliar de limpeza na Casa de Passagem São Francisco de Assis, entidade que a acolheu, ainda no ano passado, em um dos momentos que resolveu tomar coragem — e um rumo na vida. É a primeira vez que tem a carteira de trabalho assinada e uma conta no banco.
— Na rua, o fim é a prisão ou o cemitério. Ninguém pode dizer o contrário. Queria ter um futuro e resolvi buscar ajuda. Recebi ajuda e sei que quem quer sair, sai — resume.
Foi também na entidade mantida pela Associação Mão Amiga com recursos da FAS que Ana Paula conheceu o atual companheiro, com quem divide uma casa alugada no bairro 1° de Maio. O relacionamento, sem brigas, a ajuda esquecer as péssimas experiências que teve com homens enquanto vivia nas ruas — Ana recorda com detalhes das vezes em que apanhou e foi estuprada por desconhecidos. Uma das relações mais traumáticas, segundo ela, trouxe como consequências dois filhos, um gerado aos 14 anos e o outro aos 17. Crianças que nunca foram amamentadas nem acarinhadas por ela, já que foram colocadas para adoção assim que nasceram. Esse assunto é o único que substitui o sorriso da Ana pelas lágrimas:
— Um dos meus sonhos era ser mãe. Fiquei alguns dias com o primeiro, mas fazia ele sofrer sem querer. Fumava perto dele, soltava fumaça na cara dele. Queria ter um bebê, mas não tinha condições de criá-lo. Não seria boa mãe. Preciso pensar em mim, ficar bem por mais tempo. Dói falar disso.
A luta para ficar fora das ruas é diária, segundo Ana Paula. Ela recebe acompanhamento de assistente social e psicóloga e paga parte do tratamento com o salário que recebe como auxiliar de limpeza, e se orgulha disso. Há pouco tempo, só tinha moedas nos bolsos quando ganhava esmolas para cuidar de carros nas ruas ou revendendo drogas. Era sempre muito pouco, já que usava o que tinha para sustentar o vício no crack. Agora, pretende poupar para comprar uma moto e voltar a estudar. Debruçada nos livros, quer esquecer o que passou, superar o trauma com as noites frias, as surras e o medo de morrer queimada.
— Ninguém vai me empurrar para rua de novo. Tem quem diga que não vou aguentar, que é por pouco tempo. Mas digo que não é, é para vida toda. Quero envelhecer desse jeito que estou.