Na rua, o fim é a prisão ou o cemitério

Ana Paula da Silva viveu por mais de 15 anos nas ruas. Graças ao esforço próprio e ao trabalho do poder público, há seis meses está empregada e longe das drogas


Publicao em 16 de julho de 2016

Texto

Carolina Klóss

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Imagens

Diogo Sallaberry

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Infografia

Guilherme Ferrari

'Na rua,

o fim é a prisão ou o cemitério'

Tirar alguém das ruas, e fazer com que permaneça fora, é um processo lento e intenso. Muitas vezes, é frustrante para quem trabalha com isso: tentar ajudar, mas não conseguir, já que a pessoa não quer se ajudar. Nossa abordagem está mais incisiva e seguiremos nessa linha.
Julio Cezar Chaves, diretor do Acolhe Caxias e do Pop Rua



Ana Paula da Silva fala alto e abraça forte. Tem o riso frouxo, mas na maioria das vezes mostra os dentes para esconder o nervosismo e talvez mascarar lembranças ruins que guarda de um passado nem tão distante. Hoje, sabe que a rua não é lugar para ninguém morar, mas conta que só viu essa opção ao decidir sair de casa, aos 12 anos, depois de inúmeras desavenças com o pai, com quem nunca mais teve contato. Lembra que foi influenciada por uma irmã, que até hoje vive pelas ruas, mas culpa o vício no crack e a falta de perspectiva como fatores que a fizeram ficar perambulando sem destino por mais de 15 anos.

Hoje, aos 29 anos, Ana Paula é considerada um caso raro por quem trabalha para tirar pessoas dessa condição. Das 7,2 mil abordagens anuais feitas pela rede organizada pela Fundação de Assistência Social (FAS) para ajudar cerca de 200 moradores de rua em Caxias do Sul, ela se superou. No meio de um mundo visto como marginalizado, quis tomar as rédeas de seu futuro e, há um ano, é acompanhada por serviços da prefeitura. Também está longe das drogas — fuma três carteiras de cigarro por dia, mas já considera uma vitória. Desde janeiro, trabalha como auxiliar de limpeza na Casa de Passagem São Francisco de Assis, entidade que a acolheu, ainda no ano passado, em um dos momentos que resolveu tomar coragem — e um rumo na vida. É a primeira vez que tem a carteira de trabalho assinada e uma conta no banco.



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— Na rua, o fim é a prisão ou o cemitério. Ninguém pode dizer o contrário. Queria ter um futuro e resolvi buscar ajuda. Recebi ajuda e sei que quem quer sair, sai — resume.



Foi também na entidade mantida pela Associação Mão Amiga com recursos da FAS que Ana Paula conheceu o atual companheiro, com quem divide uma casa alugada no bairro 1° de Maio. O relacionamento, sem brigas, a ajuda esquecer as péssimas experiências que teve com homens enquanto vivia nas ruas — Ana recorda com detalhes das vezes em que apanhou e foi estuprada por desconhecidos. Uma das relações mais traumáticas, segundo ela, trouxe como consequências dois filhos, um gerado aos 14 anos e o outro aos 17. Crianças que nunca foram amamentadas nem acarinhadas por ela, já que foram colocadas para adoção assim que nasceram. Esse assunto é o único que substitui o sorriso da Ana pelas lágrimas:

— Um dos meus sonhos era ser mãe. Fiquei alguns dias com o primeiro, mas fazia ele sofrer sem querer. Fumava perto dele, soltava fumaça na cara dele. Queria ter um bebê, mas não tinha condições de criá-lo. Não seria boa mãe. Preciso pensar em mim, ficar bem por mais tempo. Dói falar disso.

A luta para ficar fora das ruas é diária, segundo Ana Paula. Ela recebe acompanhamento de assistente social e psicóloga e paga parte do tratamento com o salário que recebe como auxiliar de limpeza, e se orgulha disso. Há pouco tempo, só tinha moedas nos bolsos quando ganhava esmolas para cuidar de carros nas ruas ou revendendo drogas. Era sempre muito pouco, já que usava o que tinha para sustentar o vício no crack. Agora, pretende poupar para comprar uma moto e voltar a estudar. Debruçada nos livros, quer esquecer o que passou, superar o trauma com as noites frias, as surras e o medo de morrer queimada.

— Ninguém vai me empurrar para rua de novo. Tem quem diga que não vou aguentar, que é por pouco tempo. Mas digo que não é, é para vida toda. Quero envelhecer desse jeito que estou.

Precisamos acreditar no ser humano e não desistir de ajudá-los a sair das ruas. A FAS oferece caminhos, mas quem está na rua precisa de vontade para sair. A demanda é grande, mas hoje afirmamos que nossa rede está completa.
Marlês Andreazza, presidente da Fundação de Assistência Social (FAS)



Por preferirem a liberdade às regras necessárias para a entrada em casas de acolhimento, os moradores são insistentemente abordados por funcionários da FAS. Mas, muitas vezes, aceitam apenas a oferta de banho e refeição disponíveis no Pop Rua. Foi o que aconteceu com Ana Paula. A primeira abordagem, lembra Julio Cezar Chaves, diretor do Acolhe Caxias e do Pop Rua, ocorreu há mais de cinco anos. Ela frequentou o Pop Rua, chegou a fazer oficinas, mas deixou de ir depois de um tempo. Meses depois, foi abordada novamente e preencheu uma das vagas do antigo albergue municipal. Sem um acompanhamento mais rigoroso, e por não ter como ser obrigada a ficar no espaço, Ana Paula voltou para as ruas. Chegou a receber tratamento para se livrar das drogas no Centro de Atendimento Psicossocial (Caps), mantido pela secretaria da saúde, mas voltou às vias um tempo depois. Somente há pouco mais de um ano foi encaminhada para a Casa de Passagem São Francisco de Assis, onde resolveu buscar uma vida nova. Ou seja, a rede pode ajudar, mas sem a força de vontade da pessoa, não é suficiente.

— Nos últimos cinco anos de trabalho, sei de 15 pessoas que realmente ficaram fora das ruas. É um número pequeno. Precisamos insistir muito, como o que ocorreu com a Ana Paula. Chegamos a pensar que nada seria solução para ela, mas não desistimos. E ela conseguiu — comemora Chaves.

Pesquisa realizada pela FAS entre março e maio apontou que 190 pessoas dormem ao relento em Caxias. O número, porém, é menor do que o levantado pelo Cadastro Único do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), que mostra 233.

— Existem muitos que voltaram para as suas cidades e estavam aqui apenas de passagem, em busca de oportunidade. Desde o final do ano passado, registramos um aumento de 10% no número de moradores de rua. O desemprego desencadeou essa situação maior de vulnerabilidade. Monitoramos todos de alguma forma — lamenta Chaves.

Existem vários fatores que explicam o quanto é difícil fazer com que as pessoas saiam das ruas. O principal é pensar no tratamento que elas devem receber. Precisam ser acolhidas, respeitadas, e ter um projeto de qualidade de vida. Assim elas serão estimuladas a buscar uma nova vida.
Everson Furtado, coordenador da Casa de Acolhida São Francisco de Assis



Investir em projetos de vida — Everson Furtado, coordenador da Casa de Passagem São Francisco de Assis, entidade que abrigou e hoje emprega Ana Paula, afirma que o processo de tirar uma pessoa das ruas é complexo. Para ele, mostrar bons caminhos a serem seguidos ajuda muito:

— Muitos chegam a ser acolhidos aqui na Casa, mas retornam para as ruas. Mas seguimos acreditando no trabalho porque lidamos com pessoas que, às vezes, não acreditam nem em si. Não acolhemos morador de rua, usuário de droga: acolhemos o ser humano.

— É preciso ter paciência e acreditar no ser humano. É difícil tirá-los da rua, mas vibramos com cada um que segue uma vida fora das vias. São dois ou três só que saem? Ok, são duas ou três histórias de vida que mudamos. E assim vamos seguindo — diz a coordenadora da Fas.